Marketing de Doria para divulgar Coronavac sai pela culatra e alimenta movimento antivacina
Governador apostou inicialmente por amplificar dados positivos e adiou divulgação dos números globais da pesquisa. Vacina do Butantan já lida com xenofobia anti-China estimulada pelo bolsonarismo
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Uma sucessão de erros de marketing político do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que aposta na vacina contra a covid-19 como um trampolim para sua ambição de se candidatar à presidência do Brasil, vem alimentando o descrédito em torno da Coronavac. Sua estratégia de divulgação saiu pela culatra e vem dando ainda mais fôlego a movimentos antivacina, segundo avaliam renomados cientistas sem ligação com a gestão estadual. Desenvolvido pelo estatal Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac, o imunizante tem uma eficácia global de 50,38%, conforme foi divulgado nesta terça-feira em coletiva de imprensa. O número é considerado bom e dentro dos limites aceitos pela comunidade científica, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Contudo, o Governo estadual havia apostado na semana passada em divulgar apenas os resultados parciais e, à primeira vista, mais positivos. Autoridades anunciaram na última quinta-feira que o imunizante tinha uma eficácia de 78% para prevenir casos graves, moderados ou leves de covid-19, e de 100% para casos graves ou moderados. Os números foram apresentados em coletiva de imprensa com a presença do governador Doria, mas foram ignoradas as cifras de casos muito leves da doença. Considerando também esses casos, chega-se a uma eficácia geral de 50,38%. Isso significa que de um grupo de 4.599 voluntários que receberam placebo nos testes, 3,6% pegaram covid-19. Entre os 4.653 voluntários que receberam a vacina, 1,8% contraíram a doença. Ou seja, a pessoa que foi vacinada tem metade das chances de ficar doente.
Para que esse dado viesse à luz nesta terça-feira, foi necessário pressionar o Governo estadual para que liberasse os dados completos da pesquisa. Mas dessa vez Doria não compareceu à coletiva de imprensa. “Foi extremamente prejudicial essa tentativa de fazer o resultado parecer mais favorável, de anunciar uma eficácia de 78%, que não é a eficácia real. Isso gera insegurança e muita dúvida na população”, explica a médica epidemiologista Denise Garrett ao EL PAÍS. Com isso, o risco é de que o principal fique de fora: “O que temos é uma vacina com 50% de eficácia, que deve ser usada e já vai ajudar. É nisso que temos que estar focando”, acrescentou.
Natalia Pasternak, doutora em microbiologia e presidente do Instituto Questão de Ciência, participou da entrevista coletiva nesta terça-feira e resumiu a questão da seguinte maneira: “Temos uma boa vacina. Não é a melhor vacina do mundo, não é uma vacina ideal, é uma boa vacina que tem a sua eficácia dentro dos limites do aceitável”, explicou a pesquisadora. Ela enfatizou que a vacinação não é o fim da pandemia, mas o começo de seu fim. “Eu quero essa vacina, eu quero que meus pais tomem essa vacina, essa é uma vacina possível para o Brasil, compatível para nossa produção local. Uma vacina só e tão boa quanto a sua capacidade de vacinação”.
Já o jornalista Carlos Orsi, especializado em informação científica, fez uma sequência de tuítes na última sexta-feira falando —sem mencionar diretamente a gestão Doria— sobre como a comunicação da ciência pode cair na armadilha de não explicar um problema com quase “nenhum efeito prático” e acabar minando a credibilidade de uma pesquisa ou instituição. “Se você esconde ou faz pouco caso de uma informação relevante porque tem medo que ela seja mal interpretada, sua atitude virtualmente garante que, quando ela vier a público, será mal interpretada”, argumentou ele na ocasião. “No longo prazo, transparência é a única forma de sustentar credibilidade. Isto não é ‘controverso’. É um fato bem estabelecido”.
Quem trabalha com comunicação da ciência acaba tendo de lidar com um monte de falsas controvérsias— questões que para os especialistas já estão bem resolvidas, às vezes há décadas, mas que parte da população ainda considera “polêmicas” (teoria da evolução, por exemplo)
— Carlos Orsi, FSMC Rvn.🔍♟🌂🥃 (@carlosom71) January 8, 2021
Uma pesquisa Datafolha de dezembro mostrou que metade da população rejeita a Coronavac, pejorativamente chamada de “vacina chinesa”. Esse descrédito vem sendo estimulado inclusive pelo presidente Jair Bolsonaro, que vem boicotando as medidas de combate à pandemia e negando sua gravidade. O mandatário também diz que não será obrigatório se vacinar e diz que todos os imunizantes são “experimentais” e, portanto, arriscados. Nesta terça, após o anúncio paulista, boa parte da tropa bolsonarista, incluindo os filhos do presidente, foram às redes sociais criticar Doria e fazer ilações sobre o imunizante. O Governo federal aposta desde o início no imunizante da AstraZeneca/Oxford, que será produzido no Brasil pela Fiocruz. Mas também teve que ceder à pressão e já anunciou que vai comprar a Coronavac para distribuir na campanha nacional de vacinação, a ser comandada pelo gigantesco sistema público de saúde brasileiro, o SUS.
Com os números apresentados nesta terça, a comunidade científica prevê que quase 100% da população deverá ser vacinada com a Coronavac para que se consiga a chamada imunidade de rebanho. O desafio, agora, será fazer uma comunicação de massa eficaz para driblar os grupos antivacina. “Esses discursos afetam muito. A gente percebe quando escuta do velhinho que, em tese, é uma pessoa que não tem paixão política, que não é uma pessoa engajada em rede social, mas ele está dizendo que não vai tomar vacina da China”, explicou Carlos Lula, presidente o presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), em entrevista ao EL PAÍS. “Isso é preocupante demais. Quando chega a este nível de debate é porque já foi pro imaginário social. Nosso trabalho na vacinação é desconstruir o imaginário social de que o que vem da China é ruim.”
Histórico de críticas a Doria
A estratégia do Governo estadual já vinha sendo criticada mesmo antes da semana passada por causa de uma série de recuos na divulgação dos dados. A gestão Doria chegou a anunciar que dados preliminares seriam apresentados no dia 12 de dezembro, mas depois recuou e disse que apresentaria dados consolidados para pedir o registro definitivo —e não mais a autorização para uso emergencial à Anvisa. Nos dias seguintes, porém, voltou atrás e disse que solicitaria as duas autorizações, com o objetivo iniciar a vacinação no dia 25 de janeiro.
A data para apresentação dos dados foi passada então para o dia 23 de dezembro. Nesse dia, o presidente do Instituto Butantan, Dimas Covas, limitou-se a dizer os testes mostraram que a Coronavac atingira “o limiar da eficácia” pedido tanto pela Anvisa quanto pela OMS, mas mais uma vez adiou a apresentação de dados concretos. Ficou de fora também o governador Doria, que havia viajado para Miami e não participou da entrevista coletiva.
Somente na coletiva de imprensa de 7 de janeiro, última quinta-feira, é que os dados finalmente foram apresentados. Mas ainda assim de forma incompleta, frustrando a expectativa da comunidade científica no Brasil.
Por sua vez, a vacina da Astrazeneca/Oxford possui uma eficácia média de 70%. De acordo com o laboratório, o imunizante atingiu uma eficácia mínima de 62%, mas pode chegar a uma eficácia de 90%. A análise dos dados foi feita de forma combinada, a partir dos testes da fase 3 feitos em diferentes países, o que também gerou críticas da comunidade científica.
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