Ceará, o laboratório do ‘gabinete do ódio’, vive racha da extrema direita nas eleições
No Estado que concentra ao menos quatro suspeitos de integrar a engrenagem bolsonarista nas redes, deputados eleitos na esteira do movimento ultraconservador viram inimigos
São 11 horas da noite de 13 de agosto de 2015. Um grupo de pouco mais de 20 pessoas se reúne no aeroporto de Fortaleza à espera do então deputado federal Jair Bolsonaro. De empresários a jovens estudantes, eles erguem bandeiras do Brasil e batem palmas. Gritam “Derruba a Dilma” e “Bolsonaro, guerreiro, orgulho brasileiro”. Alguns se conheciam de pequenos eventos conservadores e de grupos criados no Facebook e Whatsapp, naquele momento com pouquíssimos adeptos. O momento foi crucial para aproximar de vez personagens-chave que passaram a orbitar em torno das ideias de extrema direita no Ceará. Regionalmente, eles protagonizaram um laboratório da engrenagem bolsonarista do país, que vai desde a disseminação de mensagens nas redes sociais (alguns são investigados por integrar o chamado “gabinete do ódio”) até a capilarização de um movimento conservador pelo interior, com a cooptação do que chamam de “multiplicadores”. Mas cinco anos depois, este grupo está rachado. E nestas eleições, disputa entre si o espaço da ultradireita no Estado.
Apoie nosso jornalismo. Assine o EL PAÍS clicando aqui
A expansão da direita no Ceará começou pelo menos dois anos antes daquele dia no aeroporto. Nessa época, conservadores já começavam a se articular em Fortaleza. Mas foi a partir dessa data que passaram a estreitar laços com a família Bolsonaro. O agora presidente e seu filho Carlos participaram de atos contra o PT a churrasco com empresários, lideranças ligadas à polícia local e jovens que criaram páginas nas redes sociais nas quais usavam humor para disseminar ideias ultraconservadoras e exaltar a figura de Jair Bolsonaro. Foi aí que começou a relação de Carlos Bolsonaro com Guilherme Julian, um dos quatro cearenses hoje investigados por supostamente integrar o “gabinete do ódio” ― uma espécie de máquina criada dentro do Governo para destruir reputações de adversários pela internet.
Guilherme Julian, Matheus Sales Gomes, Mateus Matos Diniz e José Henrique Cardoso foram apontados na CPMI das fake news como participantes do esquema de disseminação de mensagens de ódio, conforme publicou O Globo. Todos eles são hoje remunerados com recursos públicos, lotados como assessorias no próprio Planalto ou no gabinete do deputado bolsonarista Hélio Negão. O EL PAÍS tentou entrevistá-los, mas não conseguiu retorno.
Jovens com idade entre 20 e 28 anos, tiveram importância na estratégia de comunicação que levou Jair Bolsonaro ao poder. O próprio Bolsonaro já exaltou, por exemplo, a capacidade de mobilização de Julian, ao chamá-lo de “um dos pioneiros nessa criação dos grupos de WhatsApp”. Esses jovens alimentavam páginas de extrema direita, participavam da formação de grupos conservadores e comercializavam camisetas com lemas radicais e imagens do agora presidente muitos antes do pleito de 2018. Tudo isso servia para tornar o então deputado do baixo clero mais palatável e popular. As páginas depois foram apagadas, e alguns perfis foram suspensos pela Justiça.
Pulverização de grupos no interior
Esse grupo, que abriu espaço para o bolsonarismo no Ceará, estava longe de ser coeso. Outro braço do movimento era formado por pessoas um pouco mais velhas, algumas também egressas de cursos com o ideólogo Olavo de Carvalho e que se moviam sob o lema defendido pelo guru do bolsonarismo: ocupar espaços. Organizados numa estratégia de espalhar ideias conservadoras pelo interior do Estado e pelas universidades, promoviam eventos pelas pequenas cidades e tentavam formar grupos locais nas cidades do interior. A ideia era dar mais capilaridade às ideias conservadoras contra o aborto, contra o feminismo e a favor do armamento.
É com essa ala que se identifica uma das duas principais lideranças atuais da direita local, o deputado federal Heitor Freire, presidente estadual do PSL do Ceará, um dos fundadores do grupo “Direita Ceará” e hoje candidato a prefeito de Fortaleza. “A gente queria chocar pra dar um balanço. A esquerda chocava tanto exaltando o Che Guevara que a gente levantava o Ustra pra escandalizar”, diz, em referência ao torturador exaltado por Bolsonaro. Freire, que chegou a fazer um curso com Olavo de Carvalho junto com Eduardo Bolsonaro nos Estados Unidos, conta que passou a identificar pessoas com ideias conservadoras nas cidades do interior pela internet para estimular grupos locais. Formava-se assim o que chamam de “multiplicadores”.
Foi desse trabalho que um novo nome se somou ao movimento conservador cearense: o do youtuber André Fernandes, o segundo grande protagonista do grupo. Filho de pastor, ele morava em uma cidade de pouco mais de 18.000 habitantes chamada Cariús, quando foi convidado a participar de um desses eventos pelo interior. Alinhado às ideias conservadoras, trocou o humor característico de seus vídeos pelo discurso armamentista, cristão e contra o aborto. Perdeu seguidores no início, mas logo viu uma nova onda de adeptos surgir em suas páginas. Como disse ao EL PAÍS, virou ponte entre o movimento conservador e o interior do estado por meio de “grupos que foram se criando na calada e se fortalecendo”.
Um vídeo no qual exaltava o então deputado Jair Bolsonaro o fez receber uma ligação do próprio em 2017. Os dois passaram a trocar mensagens via whatsapp e, no ano seguinte, Fernandes foi convidado a ir até Brasília. Nesta viagem, conheceu os três filhos do presidente e se tornou amigo pessoal de Carlos, que ele define como “um cara altamente simpático", "guerreiro” e “altamente articulador”. Fernandes já estava filiado ao PSL e concorreu às eleições para a Assembleia Legislativa. Aos 20 anos, foi o mais bem votado do Estado e tornou-se o mais jovem deputado estadual do Brasil no mesmo ano em que Freire foi eleito deputado federal ― ambos com o apoio de Bolsonaro.
O racha da extrema direita cearense
No entanto, não demorou para um racha se instalar de vez no PSL cearense. A animosidade entre as alas do grupo conservador sempre existiu. Disputavam atenção e prestígio do presidente Bolsonaro, mas mantinham alguma unidade. O estopim para um racha definitivo veio na briga nacional em torno da liderança do PSL em 2019 na Câmara. Bolsonaro articulava para que seu filho, Eduardo, assumisse o posto. Mas alguns parlamentares de sua base assinaram uma lista em apoio ao deputado Delegado Waldir. Freire foi acusado de vazar um áudio do presidente em uma conversa com ele. André Fernandes então foi às redes sociais chamá-lo de "traidor do Bolsonaro”. Freire nega o vazamento.
“Depois desse vídeo me acusando e do racha do PSL, sofri muitas mentiras e acusações”, afirma Freire. Ele chama a ala do movimento mais próxima à articulação política via redes sociais de “inimiga” e diz que hoje sofre mais ataques políticos da própria direita. “Eles queriam ganhar meu espaço como liderança. Começaram a fazer memes falsos, que eram disseminados em grupos de WhatsApp”, diz, sem citar nomes neste momento. André Fernandes, por sua vez, nega envolvimento em criação de conteúdo falso na internet.
Motivado por uma denúncia anônima, o Ministério Público do Ceará apura um suposto gabinete do ódio local, com alvo nos gabinetes de Fernandes e de seu correligionário, o deputado Delegado Cavalcante. Ambos negam. “Na verdade o que houve foi uma acusação que dois deputados estaduais ligados ao presidente Bolsonaro estariam usando verbas de seus gabinetes para fundar um partido e nesse processo estariam sendo difundidas mensagens ofensivas. Mas, até agora, nada foi provado”, explica o promotor Ricardo Rocha, que ainda apura o caso.
Seja como for, foi essa questão que levou Heitor Freire a depor ao Supremo Tribunal Federal. Parte do que falou no controverso inquérito das fake news foi usada como base em uma decisão que gerou busca e apreensão contra apoiadores do presidente. No depoimento, Freire expôs que o gabinete do ódio promove a “atuação interligada de uma grande quantidade de páginas nas redes sociais, que replicam quase instantaneamente as mensagens de interesse do gabinete (do ódio)". Declarou ainda que "essa organização conta com vários colaboradores nos diferentes Estados, a grande maioria sendo assessores de parlamentares federais e estaduais”. Mas, em entrevista ao EL PAÍS, disse que seu foco no depoimento era apenas o Ceará. “Acho que foi um erro do STF. Falo do Ceará e todos estão vendo: André Fernandes foi suspenso por quê?”.
Freire se refere à suspensão de 30 dias de André Fernandes em agosto por quebra de decoro parlamentar, após acusar, sem provas, o colega Nezinho Farias (PDT) de integrar facção criminosa. Fernandes, que deixou o PSL em julho, argumenta ao EL PAÍS que não citou diretamente o nome do deputado e que apenas estava expondo uma denúncia que havia chegado ao seu gabinete. O deputado chamou a decisão de “censura”, uma campanha que encampou nas redes e foi compartilhada até pela deputada bolsonarista Carla Zambelli. Ele diz que o apoio é orgânico. E que parlamentares do país inteiro se articulam por aplicativos de mensagem, onde compartilham conteúdos a serem replicados.
A contraofensiva nas redes não surtiu efeito. Suspenso, Fernandes montou um gabinete improvisado na calçada da Assembleia Legislativa, onde recebia apoiadores e onde deu entrevista ao EL PAÍS no mês de setembro. O discurso da censura é recorrente na retórica do deputado, que nega a existência de um gabinete do ódio nacional e local. “O que é gabinete do ódio? Não é ódio, é liberdade de expressão. Se for mentira, pode processar e até pedir indenização”, afirma. Fernandes é processado pela jornalista Patrícia Campos Mello, a quem ofendeu com insinuações sexuais após declarações feitas por Hans River do Rio Nascimento à CPMI das fake news, no Congresso, em 11 de fevereiro. “Se você acha que está na pior, lembre-se da jornalista da Folha de SP que oferece SEXO em troca de alguma matéria para prejudicar Jair Bolsonaro. Depois de hoje, vai (sic) chover falsos informantes para cima desta senhora. Força, coragem e dedicação Patrícia. Você vai precisar”, disse André Fernandes no Twitter.
A disputa pela rótulo da direita
Os grupos de conservadores nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens criaram pequenas células no interior, mas se eles têm alguma força, ela ainda parece estar concentrada na capital. Nas eleições deste ano, uma nova lei proíbe disparos em massa sem a autorização de usuários. Ambas as alas ainda têm nos grupos de WhatsApp um importante canal de comunicação, assim como páginas nas redes sociais. Durante a pandemia, organizavam por ali manifestações contra o distanciamento social. Agora, no período eleitoral, alguns candidatos do grupo que esteve no aeroporto em 2015 têm usado essa participação como trunfo político. Um deles, Alex Ceará, conta até com vídeos do presidente em que coloca esse movimento como o início de seu caminho ao Planalto. “Dado a esse movimento que aconteceu que acabou culminando com a minha eleição”, afirmou Bolsonaro.
Os ultradireitistas apostam em candidaturas às câmaras de diversos municípios e acreditam que o fim das coligações proporcionais pode ajudá-los. Mas não há ainda nomes expressivos, apontados como eventuais novas lideranças do bolsonarismo. Mesmo os postulantes ao Executivo enfrentam muita dificuldade de chegar às prefeituras do interior, onde famílias tradicionais da política detêm grande força. Fernandes espera que um maior número de conservadores sejam eleitos vereadores e minimiza o impacto do racha da ultradireita cearense. “Acho que a direita não se dividiu, ela se aperfeiçoou. Pessoas que diziam que eram de direita se mostraram que não são”, afirma, referindo-se a Heitor Freire.
O deputado do PSL, por sua vez, diz ter amadurecido com a experiência no Congresso e por isso adota agora um discurso menos radicalizado. Nos bastidores, o que se fala é que a estratégia veio de uma consultoria de imagem contratada pelo parlamentar antes das eleições. O grupo que lidera, Direita Ceará, segue ativo, mas começou a se enfraquecer quando o “Endireita Fortaleza”, liderado pela ala mais jovem, ganhou força. E Freire tenta sobreviver à forte engrenagem bolsonarista ao mesmo tempo em que é rechaçado pelo presidente. Bolsonaro já afirmou em um vídeo que ambos estavam rompidos. Freire mal tem pontuado nas pesquisas da disputa eleitoral de Fortaleza. Já o candidato apoiado oficialmente por Bolsonaro, capitão Wagner, tem evitado exaltar esse apoio diante da forte rejeição do presidente na capital.
“O nosso perfil continua o mesmo, de direita e conservador. Talvez eu não seja tão radical quanto era antes, mas continuo defendendo os mesmos princípios”, argumenta Freire. Ele quer colar a imagem de uma nova direita, modulando o tom agressivo, mas mantendo ideias como a posição contra o aborto e pró-armamentista. Enquanto as alas ainda disputam o espaço da direita no Estado, não parece haver muita margem para consolidar uma base bolsonarista nos cargos eletivos. “Acho que os rachas internos afetaram muito. Hoje quem bate mais na direita é a própria direita”, diz Freire. Mesmo capitão Wagner, que tem chances de chegar à prefeitura, tem sua história política mais ligada a movimentos de greves de policiais e tenta marcar distância de discursos mais radicalizados. O desafio de organizar uma base bolsonarista não parece uma tarefa fácil no Ceará.