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Governo Bolsonaro
Coluna
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Governar é produzir incêndios

Diante das queimadas que agora retornam, devemos nos lembrar que a destruição pelo fogo é nossa maior herança colonial

Chamas nos arredores de uma fazenda no Pantanal.
Chamas nos arredores de uma fazenda no Pantanal.AMANDA PEROBELLI (Reuters)

Uma dentre as várias equações que fundam o Brasil enquanto país é: governar é produzir incêndios. Marcado por uma ideia de modernidade impulsionada pela crença de que modernizar é tomar posse de um terreno baldio, amorfo, pretensamente sem culturas autóctones ditas desenvolvidas, a fim de torna-lo “produtivo”, o Brasil foi criado por incêndios. Diante das queimadas que agora retornam, devemos nos lembrar que a destruição pelo fogo é nossa maior herança colonial.

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Esse fogo deve queimar não apenas florestas, cerrados e pantanais para que a terra se submeta à condição de propriedade, para que a vida social e o processo produtivo adequem-se a lógica dos contratos entre proprietários. Ela deve queimar as experiências sociais que se desenvolveram e que se desenvolvem nesses espaços. Não basta olhar para o espaço e dizer: “isso tudo é mato” (e a língua tem razões que a razão teima em desconhecer: se isso tudo é mato, então por que não matar tudo?). Há de se olhar para as forças sociais e culturais que se desenvolveram e desenvolvem aí para dizer: "isso tudo é atraso”. Não há nada a ouvir e aprender, a não ser “folclore” e “tradições”. Se esquecermos, não haverá perda.

Assim, o país se construiu a partir de seu fantasma fundamental, a saber, o fantasma do espaço vazio, amorfo, que traga todos para a letargia e o nada. Um fantasma colonial por excelência, talvez o mais brutal de todos, aquele que apaga tudo antes do momento da “descoberta”. Pois se nunca há nada aqui, então não há porque olhar para trás, não há porque se preocupar com aquilo que o fogo queima e consome. Ao contrário, há de se vencer o atraso, há de se desenvolver o país, conquistar o próprio território, tira-lo do tempo sem destino para que ele enfim produza riqueza e encontremos nosso pretenso grande destino.

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Nas últimas pesquisas de popularidade do governo, a região Norte aparece como a região na qual Bolsonaro apresenta maior aprovação. Já no ano passado, quando as cenas da primeira série de mega-queimadas criminosas rodaram o mundo, sua popularidade cresceu logo em seguida exatamente na região Norte. Talvez a razão esteja diante dos olhos de quem não esquece o sentido da história brasileira. Fomos criados com essa brutalidade colonial de quem se vê lutando contra o “inferno verde”, termo que os militares usavam na época da ditadura para justificar o “desenvolvimento” que eles pretensamente traziam à região. Para quem foi criado através da internalização desse imaginário, por que esperar lágrimas diante do fogo que consome florestas?

Mas no momento atual do capitalismo mundial, não é de se estranhar que as chamas voltem a crescer com a intensidade de quem se sente livre para toda destruição. Se somarmos Unidades de Conservação ambiental e Territórios indígenas, teremos 30,2% do país definido como área protegida, de acordo com dados de 2017 da Embrapa. Diga-se de passagem, área protegida da propriedade privada, já que os povos originários não se veem como “proprietários”. Mas se somarmos vegetação nativa em Unidades de Conservação, em Terras indígenas, em terras devolutas e não cadastradas, além de vegetação preservadas nos imóveis rurais teremos 66,3% de vegetação nativa (segundo cálculos do Gite/Embrapa de 2017).

Uma das maiores ilusões que impulsiona a noção de desenvolvimento que nos aprisiona é a ilusão do caráter inesgotável das duas fontes fundamentais de riqueza, a saber, o trabalho e a terra. Assim, vemos por um lado o aprofundamento da tentativa de explorar o trabalho para gerar valor, isto através do achatamento de salários e da intensificação brutal dos regimes de trabalho (quebra de direitos trabalhistas, fim de fato da aposentadoria etc.). Há semanas atrás, o Banco Santander negociou com seus funcionários o deslocamento de vários serviços para home office. Em troca, a instituição ofereceu mais mil reais a seus funcionários. Quando li a informação, achei razoável o valor até descobrir que não se tratava de um valor mensal, mas anual. Qualquer conta elementar mostra que se trata de um processo explícito de transferência de custos (energia, internet, consumos diários) que, ao final, diminui ainda mais os salários. Essa é apenas uma imagem mais primária de uma lógica que consiste em levar a espoliação da força de trabalho até os limites do inimaginável. No entanto, esse processo tem limites, físicos e políticos. A partir de certo momento, pessoas morrem, ruas queimam de revolta.

Por outro lado, há a ilusão de que é sempre possível explorar ainda mais a terra como produtora de valor. Neste sentido, um país com 66,3% de vegetação nativa só poderia ser uma afronta à lógica do “desenvolvimento”. Nossa dimensão continental nos faz uma das fronteiras globais privilegiadas de aprofundamento da extração capitalista de valor. Uma das últimas fronteiras. Em situações “normais” esse processo ocorreria como tendia a ocorrer nos últimos anos, a saber, de forma lenta, gradual, e irreversível. Maneira cínica de preservá-lo, mas sem que sua dinâmica fizesse mais alarde que o habitual.

No entanto, o Brasil entrou em uma aceleração de concentração e de extração de riqueza. A consciência de uma sociedade desarticulada em sua capacidade de unificar lutas sociais alimenta a lógica de predação que vemos agora. De nada adianta “boas consciências” de países desenvolvidos fazerem discursos contra o fogo em nossas florestas e pantanais. É o sistema econômico que eles representam que alimenta os incêndios, que faz da terra propriedade de exploração até o limite do esgotamento, que produziu a mentalidade predatória de nossas elites econômicas.

Acrescenta-se a esse cenário, as forças armadas brasileiras como guardiã maior da fantasia fundamental do “espaço selvagem” a ser conquistado e vencido. Em um governo com 6.157 militares da ativa e da reserva ocupando cargos de governo, ou seja, em um governo militar de fato, não é de se estranhar a volta da lógica “transamazônica” de submissão da natureza a essa junção, tão militar, entre desenvolvimento e destruição. A história das forças armadas brasileiras é uma história de lutas contra seu próprio povo insubmisso. Ela é também uma história de destruição de seu próprio território. Quem ainda duvida, que olhe ao céu e veja as chamas que irão nos acompanhar hoje e nos próximos anos.

Vladimir Safatle é professor de filosofia da USP


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