Impeachment vira arma fácil contra governadores neófitos e ex-bolsonaristas do Rio e Santa Catarina
Nomes que surfaram onda conservadora e sem bases sólidas agora se veem acossados por processos de destituição, uma onda alimentada pela crise e pela polarização política
O ex-juiz federal Wilson Witzel (PSC) e o advogado e bombeiro militar Carlos Moisés (PSL) eram desconhecidos até 2018, mas tiveram uma ascensão meteórica nas eleições daquele ano e acabaram se elegendo governador do Rio de Janeiro e de Santa Catarina, respectivamente. Mas se naquela ocasião souberam surfar a onda do bolsonarismo, nesta quarta-feira os deputados estaduais de seus Estados deram passos importantes para que sejam os primeiros afogados pela onda de processos de impeachments contra governadores —a queda de um governador por processo de destituição só aconteceu uma vez na história, em Alagoas, em 1957. Em comum, ambos se afastaram do presidente Jair Bolsonaro e viram suas respectivas bases de apoio no Legislativo minguar.
Acatado pelo presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) após votação simbólica, o pedido de destituição de Witzel por suposta improbidade administrativa se baseia nas suspeitas de corrupção na área da Saúde. As investigações da Procuradoria Geral da República indicam que houve fraude nos contratos de compra de respiradores e medicamentos e de construção de hospitais de campanha durante a pandemia de coronavírus. E que o governador teria “participação ativa no conhecimento e comando das contratações com as empresas investigadas”, tendo recebido ao menos 554.000 reais em propinas das empresas do setor da saúde através de contratos falsos assinados com o escritório de advocacia da primeira-dama, Helena Witzel.
O ex-juiz nega as acusações e tentou paralisar o processo de destituição no Supremo Tribunal Federal. O então presidente da Corte, Antonio Dias Toffoli, chegou a acatar seu pedido, mas no final de agosto o ministro Alexandre de Moraes liberou a continuidade do processo. Seja como for, Witzel já foi afastado de sua função no fim do último mês por uma controversa decisão monocrática do ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça. O plenário da Corte confirmou dias depois, em 2 de setembro, o afastamento.
Na noite desta quarta-feira, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), composta por 70 deputados e 25 partidos, aprovou por unanimidade a continuidade do processo contra Witzel. Ele acabou desistindo de comparecer no plenário e fez sua defesa por vídeo. “O que tem acontecido é algo absolutamente injusto. Não tive o direito de falar nem na Assembleia nem nos tribunais. Estou sendo linchado moralmente e politicamente sem ter o direito de me defender”, afirmou. Os partidos deverão escolher nos próximos dias cinco deputados para um Tribunal Misto, enquanto que o Tribunal de Justiça deverá sortear cinco desembargadores. Eles terão até 120 dias para concluir se houve ou não crime de responsabilidade. Caso seja retirado de vez, quem assume é seu vice, o advogado e cantor católico Cláudio Castro, atualmente em exercício.
Já Moisés supostamente cometeu crime de responsabilidade por conceder reajuste salarial aos procuradores do Estado via decisão administrativa, de acordo com o pedido de impeachment apresentado pelo ex-defensor público Ralf Zimmer Junior em janeiro deste ano. O aumento equiparou os salários dos procuradores do Executivo com os do Legislativo, mas Zimmer argumenta que a ação foi ilegal por não ter passado pelo legislativo antes. O pedido chegou a ser arquivado por falta de documentação, mas foi reapresentado em maio com anexos e aceito pelo presidente da Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc). A ação inclui a vice-governadora Daniela Reinehr (sem partido). Contra o Governo ainda pesam as suspeitas, reveladas pelo portal The Intercept, de fraude milionária na compra de respiradores fantasmas por 33 milhões de reais. O impeachment prosseguiu no dia 17 de setembro com 33 votos favoráveis, 6 contrários e 1 abstenção.
Nesta quarta-feira, a Alesc e o Tribunal de Justiça de Santa Catarina escolhem os cinco deputados e os cinco desembargadores que formarão parte de uma comissão julgadora. Essa comissão deverá escolher um relator que deverá fazer um parecer sobre as denúncias. Caso recomende aceitá-las, o documento será colocado em votação. Uma vez acatado por no mínimo seis votos, o governador e a vice serão afastados por 180 dias, período no qual a comissão deverá julgar se houve ou não crime de responsabilidade.
Caso seja concluído até o fim deste ano, eleições diretas deverão ser convocadas. Caso se arraste até 2021, haverá então eleição indireta por meio da escolha dos deputados estaduais. Para Moisés, o processo se move por conta de interesses políticos e "se baseia em um frágil argumento que não tem justa causa legal e tampouco apresenta qualquer irregularidade praticada pelo governador, conforme já aferiram o Ministério Público Estadual e o Tribunal de Contas do Estado”.
A votação do dia 17 que deu prosseguimento ao impeachment só ocorreria no dia 22 de setembro, mas foi adiantada por deputados comandados pelo presidente da Alesc, Julio Garcia (PSD). De acordo com reportagem do The Intercept, Garcia tem interesse em derrubar o atual governador para salvar o próprio pescoço da Justiça. No dia 15, o Ministério Público Federal apresentou uma denúncia contra Garcia por ocultação de bens e lavagem de dinheiro. Caso Moisés e sua vice sejam afastados, é Garcia quem assume o Governo do Estado, ganhando foro privilegiado e levando as denúncias da esfera federal para a estadual, onde mantém ampla influência política.
Afastados do bolsonarismo
Além dos interesses políticos locais que movem os processos de impeachment, tanto Witzel como Moisés foram se afastando do presidente Bolsonaro após assumirem seus cargos. O primeiro porque resolveu rivalizar com o presidente, admitindo publicamente sua pretensão de se candidatar ao Planalto. A relação com o presidente foi se estremecendo a medida que as investigações da Polícia Civil sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes começaram a respingar na família Bolsonaro, o que gerou a suspeita de interferência por parte do governador.
Mais recentemente, Bolsonaro acusou Witzel de ter influenciado nas investigações do Ministério Público do Rio sobre o suposto esquema de rachadinha no gabinete do estão deputado estadual Flávio Bolsonaro, filho zero um do presidente e hoje senador, operado pelo amigo e faz-tudo da família, Fabrício Queiroz. Paralelamente, as manobras de Bolsonaro para interferir na Polícia Federal, sobretudo na chefia do Rio de Janeiro, também levantaram especulações sobre a interferência do presidente nas investigações contra Witzel. Bolsonaro já demonstrou publicamente sua satisfação com os processos que correm contra o governador.
Filiado ao PSC, que possui apenas dois deputados estaduais na Alerj, Witzel ganhou as eleições com o apoio de Flávio Bolsonaro, que na época integrava o partido. Sua base de apoio era integrada pelo PSL bolsonarista, que com 13 deputados elegeu a maior bancada da Alerj. Nem mesmo o bolsonarista Rodrigo Amorim, que se diz amigo de Witzel e foi fotografado junto com o ex-juiz na campanha de 2018 quebrando uma placa com o nome de Marielle, votou a favor do governador.
Ao contrário de seu colega, Moisés até faz parte do PSL, mas foi se afastando do bolsonarismo ao longo de seu mandato por se mostrar um governante moderado. Seus colegas de partido começaram a chamá-lo abertamente de traidor. “Não se trata de quem assumirá o posto em seu lugar, mas de tirá-lo do poder por ter traído o presidente e restabelecer a honra dos nossos eleitores”, escreveu o deputado Jessé Lopes (PSL).
O mal-estar tem suas razões. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo no ano passado, Moisés classificou de “sandice" a militância de extrema direita das redes sociais, “o pessoal da arminha”. Também taxou agrotóxicos, incentivou agricultura orgânica e até recebeu militantes do MST em reunião. “Qualquer pessoa que raciocine um pouco, que saia do padrão mediano, vai entender que não se pode incentivar o uso [de agrotóxico]”, afirmou à Folha. Também se mostrou aberto a pautas dos movimentos LGBTI e indígena. “Quem tem preconceito tem que trabalhar a cabeça para se livrar deles. O Estado tem que se aproximar”. Além disso, Moisés se aproximou do governador de São Paulo, João Dória, outro desafeto do presidente, no início da pandemia.
Outros pedidos de impeachment
O impeachment vem sendo usado frequentemente nas disputas locais, um fenômeno que parece ter crescido na esteira do impeachment de Dilma Rousseff em 2016: o mecanismo voltou ao vocabulário político, com todas suas características, que mesclam moção de repúdio e julgamento político. Ainda no Rio, o prefeito Marcelo Crivella tem se livrado de sucessivos processos de destituição. No Amazonas, o governador Wilson Lima (PSC), também eleito na onda bolsonarista, se livrou no começo deste mês de um processo por 12 votos a seu favor, seis contra e cinco abstenções. Ele foi acusado de má gestão na Saúde do Estado durante a pandemia do novo coronavírus.
Pedidos de impeachment também foram apresentados contra Doria, o último deles por parlamentares do PSL em 10 setembro. O tucano é acusado de desviar dinheiro da área da Saúde ao comprar com superfaturamento respiradores da China durante a pandemia. Ao contrário de seus colegas, porém, o tucano mantém uma base de apoio sólida com vários partidos, ao mesmo tempo que o PSDB conta com a terceira maior bancada na Assembleia Legislativa de São Paulo.