Os 89.000 reais pagos a Michelle Bolsonaro são a ponta do iceberg em esquema envolvendo dinheiro vivo
Investigado por confisco de salário de servidores, Queiroz fez repasses a integrantes do clã presidencial que podem chegar a 450.000 reais em depósitos, pagamento de boletos e mensalidade escolar
Os 89.000 reais depositados por Fabrício Queiroz e por sua mulher na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro são a ponta do iceberg de uma relação financeira obscura que envolve o clã do presidente da República e o ex-assessor parlamentar ligado a milicianos. Os depósitos para Michelle foram revelados pela revista Crusoé e pela Folha. Mas não é só isso: pagamento de boletos, parcela de apartamentos, mensalidades escolares e até plano de saúde são alguns dos favores feitos por Queiroz para familiares do presidente. No total, o valor repassado por Queiroz a parentes do mandatário pode chegar a quase 450.000 reais, e a origem do dinheiro ainda é um mistério: as autoridades acreditam que se trata de um esquema de rachadinha, uma prática ilegal que consiste no confisco de parte do salário de assessores ―algo que a família sempre negou. O caso é alvo de investigação pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, mas atualmente se encontra suspenso devido a manobras da defesa de Flávio, que luta para conseguir direito ao foro. Até o momento Michelle não é investigada.
O comentário mais recente do presidente sobre o dinheiro depositado para Michelle foi truculento: ele disse ter vontade de “encher de porrada” a boca do repórter que lhe questionou sobre o assunto, no domingo. A ameaça provocou uma avalanche de críticas nas redes sociais, que repetiram a pergunta do jornalista com um tuitaço indagando: “Jair Bolsonaro, por que Queiroz depositou 89.000 na conta da primeira-dama?”. Nesta segunda-feira o mandatário voltou a atacar a imprensa durante evento em Brasília, referindo-se aos jornalistas presentes como “bundões” que morreriam caso contraíssem a covid-19.
Seja como for, até o momento não há uma resposta do presidente sobre os depósitos. Mas em 2018 ele já havia se manifestado sobre os cheques. “Emprestei dinheiro para ele [Queiroz] em outras oportunidades. Nessa última agora, ele estava com um problema financeiro e uma dívida que ele tinha comigo se acumulou”. O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), no entanto, não identificou o empréstimo feito pelo presidente, segundo foi noticiado à época. Bolsonaro, então, admitiu que pode ter “errado” ao omitir o empréstimo e a quitação do mesmo na sua declaração anual de imposto de renda.
Mas a relação entre Queiroz, que está em prisão domiciliar desde 14 de agosto, e a família presidencial é mais complexa do que um empréstimo não declarado. Os problemas dos Bolsonaros envolvendo o ex-assessor começaram no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. O primogênito do clã ocupou uma vaga na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro de 2003 a 2019, e empregou o aliado da família como assessor. Queiroz é amigo de longa data de Jair: eles se conheceram no Exército nos anos de 1980, quando serviam na Brigada de Infantaria Paraquedista e estavam lotados na Vila Militar, no Rio de Janeiro. De lá para cá, pescarias, festas e jogos de futebol aprofundaram os laços entre os dois. Gozando da confiança do deputado Flávio, Queiroz emplacou cinco parentes no gabinete, dentre elas sua mulher, Márcia de Oliveira Aguiar, e duas filhas (sobre as quais pesa a suspeita de serem funcionárias fantasma). Ele também foi responsável por empregar a mãe do miliciano Adriano da Nóbrega, um dos chefes do grupo de assassinos conhecido como Escritório do Crime, morto pela polícia da Bahia em fevereiro deste ano.
De acordo com o MP-RJ, ao menos treze assessores que atuavam no gabinete de Flávio fizeram repasses para Queiroz, que movimentou quase três milhões de reais em sua conta bancária entre 2007 e 2018. Mais de dois milhões deste valor tiveram sua origem em centenas de transferências bancárias e depósitos em dinheiro vivo realizados por outros assessores. Em entrevista ao canal SBT, o ex-assessor afirmou que é um “homem de negócios”, e que os valores dizem respeito a negócios de compra e venda de carros usados.
Segundo as investigações, os valores repassados para Queiroz eram então canalizados para o deputado de diversas maneiras, fossem depósitos ou via pagamento de despesas pessoais do parlamentar. Os promotores apuram o pagamento de mais de 100 boletos bancários referentes às mensalidades escolares das filhas de Flávio, bem como do plano de saúde da família, segundo revelou o jornal O Globo. Os valores chegam a 261.000 reais, e não foram localizados débitos na conta do deputado ou de sua esposa que indiquem que foram eles que quitaram os débitos. Flávio afirmou que o assessor era responsável pelo pagamento de algumas de suas despesas pessoais, mas que a origem dos recursos é lícita. No pedido de prisão de Queiroz feito pelo MP, no entanto, os promotores afirmam que o dinheiro utilizado “não proveio das fontes lícitas de renda do casal”, e coloca Flavio no comando de uma “organização criminosa”.
Além dos boletos pagos, Queiroz teria feito um depósito de 25.000 reais na conta bancária da esposa de Flávio, Fernanda Bolsonaro, em 2011. Em depoimento ao Ministério Público, o senador negou pagamentos do assessor à sua mulher: “Não sei a origem do dinheiro, mas dá uma checada direitinho que eu tenho quase certeza que não deve ter nada a ver com Queiroz. Queiroz nunca depositou dinheiro na conta da minha esposa, pelo que eu saiba”, afirmou.
Os negócios imobiliários do clã
Existe um outro fio da investigação do MP-RJ envolvendo Flávio que vai além dos repasses já identificados por parte de Queiroz. Um relatório dos promotores obtido pela revista Veja levanta a suspeita de que o hoje senador realizou uma série de negócios imobiliários com a finalidade de lavar dinheiro fruto da suposta rachadinha. Ele teria lucrado mais de 3 milhões de reais com a venda de 19 salas e apartamentos nas zonas Sul e Oeste do Rio. De acordo com o documento, existem “suspeitas de subfaturamento nas compras e superfaturamento nas vendas”, o que teria sido feito, de acordo com a linha de investigação, para “simular ganhos de capital fictícios” e encobrir “o enriquecimento ilícito decorrente dos desvios de recursos” de assessores do gabinete. Em nota, Flávio afirmou que “os valores informados [na reportagem] são absolutamente falsos e não chegam nem perto dos valores reais”. Ele também criticou os vazamentos de dados da investigação.
Em outro negócio, Flávio fez um depósito de 638.400 reais em dinheiro na conta de um corretor de imóveis para, segundo relatório do MP, ocultar valores fruto das rachadinhas. Posteriormente o deputado vendeu os dois apartamentos adquiridos em Copacabana com um lucro de 292%, algo atípico para os padrões do mercado. O primogênito de Bolsonaro não é o único da família a fazer negócios imobiliários com dinheiro vivo. De acordo com reportagem da revista Época, Ana Cristina, que foi casada com Jair de 1997 a 2008, negociou durante o período do matrimônio 14 imóveis cujo valor alcança 5,3 milhões de reais. A maioria das transações foi feita em espécie.
Desde que as movimentações suspeitas envolvendo Queiroz vieram à tona, no final de 2018, Flávio luta para que seu caso fique fora da primeira instância, alegando que na condição de parlamentar ele teria direito ao foro privilegiado, que tiraria as investigações das mãos do MP-RJ. Os promotores do caso recorreram, e agora a questão está nas mãos do STF, que deve decidir em breve de quem é a competência para investigá-lo. Existe a expectativa de que o ministros da corte optem por mandar o caso de volta para a primeira instância, tendo em vista que a jurisprudência vigente tem sido de garantir direito ao foro especial apenas quando os supostos ilícitos foram cometidos no mandato em questão, o que não é o caso de Flávio.