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Neca Setubal: “A pandemia escancarou a desigualdade. Periferias ficaram visíveis para quem não as via”

Socióloga e educadora conversou sobre a crise do coronavírus, educação e altruísmo em série de entrevistas do jornal

A socióloga Neca Setubal.
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A guard remains at the entrance of a public school with signs reading "There Will Be No Class" after the Brazilian government decided to close schools for five days to prevent the advance of the new coronavirus, COVID-19, in Brasilia, on March 12, 2020. (Photo by Sergio LIMA / AFP)
Coronavírus exacerbou desigualdades educacionais no mundo

A socióloga e educadora Maria Alice Setubal, também conhecida como Neca Setubal, diz que a pandemia do coronavírus ― que já matou mais de 52.000 pessoas no Brasil ― escancarou a precariedade das periferias brasileiras. No campo da educação, por exemplo, a imposição do ensino à distância evidenciou um abismo entre as crianças ricas e pobres. Para a educadora, um dos caminhos para uma possível democratização do estudo é a expansão de uma banda larga de qualidade para todo o país a preços baixos. “É preciso pressionar por esse direito do cidadão”, diz.

Presidente dos conselhos da Fundação Tide Setubal, entidade criada em 2006 para apoiar projetos de desenvolvimento nas periferias urbanas, e do Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), que reúne investidores sociais do Brasil, Neca se diz positivamente surpresa com as doações da sociedade civil para o combate à covid-19. Foram 6 bilhões até agora. A grande dúvida é se esse altruísmo de empresas, fundações e da população continuará quando a crise sanitária passar.

Para Neca, a democracia no Brasil vive hoje sob risco no Governo de Jair Bolsonaro. “A sociedade brasileira e as instituições estão resistindo, mas já houve perdas para o meio ambiente, desmonte de algumas instituições, legislações aprovadas”, afirma. Questionada se apoiaria um impeachment do presidente, a socióloga afirma que a resposta simples é que sim. Mas ressalta que há um recorte mais abrangente da questão: “Em que condições assumiria o vice-presidente? Acho que é complexa a resposta”, diz.

Leia a seguir alguns dos principais trechos da entrevista.

Mobilização da sociedade

Sempre me questionei muito por que não temos a cultura de doação no Brasil, mas fiquei muito grata nessa pandemia, foi uma surpresa de ver como a sociedade civil ― fundações e empresas―, se organizou e fez doações. A associação GIFE no último ano levantou 2 bilhões de reais. Em três meses de pandemia alcançou 6 bilhões. Foi uma surpresa muito boa, rapidamente houve movimentação e desburocratização das empresas para fazer essas doações. A grande pergunta é se isso vai continuar.

Papel dos bancos

As doações dos bancos foram importantes, a do Itaú foi expressiva. Ele é um dos maiores grupos, tinha que ser(...) Os bancos podem ter um olhar maior para os pequenos e médios empreendedores. Os juros estão mais baixos e a tendência é que eles caiam mais e acho que é fundamental para o Brasil nesse momento, para ter uma linha de crédito maior e a dívida não crescer de forma exorbitante. Não posso responder pelo banco Itaú. [Ela é herdeira e acionista do Itaú-Unibanco]

Periferias mais visíveis

A pandemia escancarou a desigualdade, as periferias ficaram visíveis para uma população que não as enxergava. Mostrou todos os problemas e a precariedade da periferia. Você passa a perceber que a pandemia atingiu todo mundo, de diferentes formas. Se percebeu que estamos interconectados. A desigualdade atinge a sociedade como um todo, não só os pobres. Todo mundo se sentiu atingido. Isso faz diferença na conscientização. Acho que faz diferença em como será o novo formato depois que acabar a crise. Todo mundo sentiu que de alguma forma foi atingido, pelas pessoas que moram na periferia e que têm essa conexão. Tem coisas que não dá mais pra admitir, a desigualdade social do Brasil precisa ser tratada. Cresce muito a questão da discussão de uma renda básica.

Desigualdade educacional já aumentou

As desigualdades no país já aumentaram e os danos para as crianças pobres de escolas públicas foram enormes por diferentes motivos. O primeiro deles, bem macro, é porque não tivemos um ministro da Educação. E sim uma pessoa que não fez nenhum programa e não fez nenhuma diretriz. Estados e municípios ficaram absolutamente isolados sem orientação geral, sem poder fazer trocas de experiência. Uma situação absurda. Isso teve e tem um custo muito grande para todas as crianças e para educação como um todo. Mas em especial para as crianças de regiões mais precárias, mais pobres, que geralmente são negras. Essas crianças, que já sofriam com uma desigualdade educacional grande, certamente vão sentir um peso maior. Elas não têm condições de seguir o ensino à distância.

Banda larga de qualidade para todos

É preciso pressionar para ter uma banda larga de qualidade. No mundo hoje é um direito do cidadão ter uma banda larga de qualidade a preços baixíssimos. Como viabilizar ainda não sei. Existem estudos que apontam um caminho. Mas é um ponto chave, se a gente conseguir um ensino que possa usar a tecnologia para facilitar, ela pode ser um fator de democratização do ensino, desde que todos tenham acesso. E acho que a questão da tablet é mais fácil de resolver do que uma internet de qualidade.

Reconhecer o racismo na sociedade brasileira

A primeira coisa necessária para enfrentar o racismo é admiti-lo na sociedade brasileira. Ele não era admitido. Recentemente, com vários movimentos da coalizão negra e o caso George Floyd, assim como a desigualdade, ele foi escancarado. Já havia uma denúncia da coalizão negra, toda questão de mortes de jovens negros e do genocídio negro pela polícia. Com a pandemia e o caso dos Estados Unidos, isso reverberou mais. O primeiro caminho é enfrentar que existe racismo e que nós, brancos, vivemos numa situação de privilégio. Não dá para apenas ter o discurso: não sou racista. Isso vai para dentro de casa, para educação dos filhos e netos, isso vai para as instituições: estou contratando pessoas negras? Não é fácil trabalhar com a diversidade no dia a dia, trazer os eixos de questão de raça e gênero para os projetos, setores e educação. Mesmo a esquerda tem uma esquerda universalista que não aceita o foco identitário. Não aceita essa intersecção entre nível sócio-econômico e raça. São vários obstáculo na implementação da luta que temos que enfrentar. A educação, por exemplo, não tem, em geral, o olhar racial.

Democracia em risco

Estamos vivendo um momento que a democracia está em risco. Várias ações e discursos do ministro, do presidente e muito dos seguidores [de Bolsonaro] expressaram isso. Muitas vezes, o presidente sai para falar com os seguidores que atacam o Supremo Tribunal Federal (STF), falam para fechar, para ter intervenção militar, para fechar o Congresso. A sociedade brasileira e as instituições estão resistindo, mas já houve perdas para o meio ambiente, desmonte de algumas instituições, legislações aprovadas. Na Educação, não caminhou a Escola Sem Partido, mas foi difundido pelo presidente que as pessoas deveriam filmar os professores. Se alastrou uma visão conservadora e autoritária. No meu modo de ver é bastante preocupante. Existe uma parcela do empresariado que se alinha à extrema direita, mas tem uma parcela do eleitorado que continua apoiando o presidente. Um trabalho da pesquisadora Esther Solano mostra que houve decréscimo da aceitação do presidente, mas numa situação em que o candidato seja petista outra vez, as pessoas voltam a votar no Bolsonaro. Ele perdeu apoio, mas surpreende o quanto ele tem ainda de apoiadores. Os que são críticos agora podem voltar para ele dependendo do contexto eleitoral, isso me surpreende.

Troca de ministro da Educação

Não tenho muito otimismo. A Educação está entre os ministérios dentro da concepção ideológica de Bolsonaro. Não acho que teremos uma pessoa técnica e isenta, que seria o melhor dos mundos. Posso até ser surpreendida, porque o Governo sempre surpreende, mas geralmente é para pior do que a gente imagina. Pode ser que quem substitua seja o atual secretário-executivo. No geral, as pessoas têm uma boa impressão dele, talvez seja a melhor opção. É um ministério muito ideológico e Bolsonaro era muito ligado ao [Abraham] Weintraub, sempre o elogiava. Para ele ter demitido, não deve ter sido fácil, eu imagino. Agora ele precisa responder à militância, ele sempre responde. Acho que ele vai substituir por alguém que tem esse olhar ideológico da extrema direita. A forma de governar do Bolsonaro é a do conflito, do enfrentamento. Ele não consegue implementar programas ou políticas, a forma de governo é de enfrentamento e de gerar conflito. É uma forma intencional.

A íntegra da entrevista está disponível acima, na página do EL PAÍS Facebook e no nosso canal de YouTube. A entrevista foi conduzida pela diretora do EL PAÍS Brasil Carla Jiménez e pela repórter Heloísa Mendonça. Participaram anteriormente da série de entrevistas do EL PAÍS o colunista Xico Sá, o filósofo Marcos Nobre, os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, Dilma Rousseff e o senador e ex-presidente Fernando Collor.

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