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“Fadiga da quarentena” leva até os defensores do isolamento a se arriscarem contra as regras

Psicólogos explicam o mecanismo cerebral que faz com que, mesmo diante de números ainda assustadores da covid-19, ruas lotem nos finais de semana elevando o perigo de contágio

Uma pessoa reza na janela durante missa celebrada pelo padre Jorge Luiz de Oliveira na sacada da Basílica de São Sebastião, no Rio de Janeiro, no dia 6 de maio.
Uma pessoa reza na janela durante missa celebrada pelo padre Jorge Luiz de Oliveira na sacada da Basílica de São Sebastião, no Rio de Janeiro, no dia 6 de maio.PILAR OLIVARES (Reuters)

J.P, engenheiro químico de 32 anos, foi ao encontro de dois amigos para um jantar no último final de semana depois de mais de 90 dias de completo isolamento social de todos. “Para mim, não se trata de furar a quarentena. Foi uma troca de afeto, um gesto até de autocuidado em tempos tão difíceis”, justifica ele, que, apesar da transgressão, defende a necessidade de que as pessoas fiquem em casa para evitar a propagação do coronavírus. Passados cem dias desde que cidades como São Paulo começaram a restringir suas atividades, os casos de covid-19 não param de bater recordes no Brasil—nesta terça, já somavam 52.000 mortes e 1,14 milhão de casos. Mas a cada final de semana ruas e áreas de lazer estão cada vez mais lotadas pelo país, elevando o perigo de contaminação em massa —em um contraste com o que se via no início da pandemia, quando as cifras não eram nem de perto tão assustadoras.

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Psicólogos e psiquiatras ouvidos pelo EL PAÍS acreditam que ainda que os dados continuem alarmando, as pequenas escapadas se tornarão cada vez mais comuns. A explicação, afirmam, é científica. Acontece porque os mecanismos de alerta do corpo humano, principalmente os cerebrais (com atuação da amígdala e hipocampo), que entram em ação ante um perigo, como a possibilidade de infecção por um vírus, entram em colapso depois de um tempo. É o que alguns especialistas chamam de “fadiga da quarentena” ou falência adaptativa. “Nosso sistema faz esforços para nos adaptar a situações novas e indesejadas, de privação. Mas, quando somos obrigados a fazer isso por muito tempo, esse mecanismo entra em falência e não conseguimos mais racionalizar”, explica Ricardo Sebastiani, especialista em psicologia clínica e saúde pública.

Quando as primeiras mortes por covid-19 começaram a ocorrer no Brasil, havia mais dúvidas do que respostas sobre o novo coronavírus, sua gravidade e como se proteger. A isso, somou-se a emergência sanitária e a necessidade de instalar mais leitos, equipar hospitais e profissionais de saúde. Nesse momento, dizem os especialistas, a sociedade, coletivamente, estava mais propensa a ficar em casa para achatar a curva de contágio. “Mas agora a verdade é que, enquanto não tivermos uma vacina, para muitos não se trata de ‘e se eu pegar a covid-19′, mas sim de ‘quando eu pegar a covid-19′. Quando o medo imediato some, as pessoas voltam a fazer churrasco e a lotar as praias”, diz Sebastiani. Algo especialmente comum entre os mais jovens, que acreditam estar mais protegidos dos efeitos mais graves da doença do que os idosos, ainda que os dados mostrem que eles formam um contingente significativo de pessoas internadas por covid-19.

De acordo com os profissionais ouvidos pelo EL PAÍS, o desespero emocional provocado pelo isolamento começou a escalar em abril. Jéssica Farias, doutoranda em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações da Universidade de Brasília (UnB) realizou uma pesquisa entre abril e março com 2.056 pessoas de 25 estados para entender os comportamentos de respeito ou descumprimento das medidas de isolamento. Ela constatou que estudantes e desempregados demonstraram maior intenção de violar a quarentena, por necessidade de trabalho, uma questão de subsistência. “Agora, as pessoas já estão muito ansiosas pelo fim da pandemia e há a incerteza de quanto ela vai durar. Todo mundo sente falta de contato e, de certo modo, é natural que as pessoas comecem a buscar esses reencontros sociais”, diz. A psicóloga pondera, no entanto, que as saídas aparentemente inofensivas podem gerar um efeito dominó. “Ainda não chegamos no patamar de outros países que controlaram a pandemia e retomaram uma rotina. Ainda é preciso ter cautela, porque, se esse tipo de comportamento se generalizar, os casos podem continuar crescendo e até de forma mais rápida”, alerta.

Nas redes sociais já são muitos os que se consideram “palhaços” ao se deparar com fotos de praias cheias ou notícias sobre festas durante a quarentena. A psicanalista Amanda Mont’Alvão Veloso explica que, como o Governo não tomou as medidas necessárias para controlar a pandemia e não houve, assim, uma diminuição do número de casos e mortes, pode nascer em algumas pessoas uma espécie de ressentimento. “Passados três meses, como os resultados desse sacrifício não foram os esperados, algumas pessoas podem passar a descumprir a quarentena, até mesmo com atitudes vistas como egoístas”, diz ela. A psicanalista, assim como especialistas em saúde pública, lembra que as medidas de isolamento foram essenciais para que os trágicos números da epidemia não fossem ainda maiores e colapsassem o sistema de saúde, provocando uma maior taxa de mortalidade no país.

Os especialistas explicam que o conflito de narrativas governamentais sobre a crise de saúde também aumenta a urgência de algum tipo de “normalidade” para os cidadãos. Desde a chegada da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro advoga contra o isolamento e se refere à doença como uma “gripezinha”, contrariando as medidas mais restritas adotadas por Estados e municípios. E enquanto as mortes só aumentam no país, o próprio presidente e seus filhos colocam em dúvidas os números oficiais, sem qualquer comprovação de que haja problemas nos registros feitos pelos Estados. “Essa guerra de informação e contra-informação arrefece a [sensação de] gravidade da situação”, diz Sebastiani.

Os psicólogos não minimizam, no entanto, os danos que o isolamento acarreta, principalmente quando o “ficar em casa” também significa trabalhar em casa, criar lazer em casa e ter a escola dos filhos em casa. “Tudo isso é muito estressante. São cem dias de privações e medo, durante os quais recebemos muitos estímulos negativos e poucos estímulos positivos. Fomos privados até dos pequenos prazeres do dia a dia, como tomar café com um amigo”, diz Sebastiani. “Tudo isso faz com que a situação se torne insuportável em algum momento e passa a ser uma questão de o quanto vale a pena detonar a saúde mental para preservar a saúde física”, acrescenta.

Em uma cultura tão afetuosa quanto a brasileira, em que um abraço é um elemento fundamental na sociedade, os profissionais da saúde mental alertam que tanto o medo da covid-19 como o isolamento, de fato, podem gerar danos como depressão, como apontou uma pesquisa do Ministério da Saúde. O que se pode fazer para amenizar isso? “Não é a mesma coisa, mas é importante manter contato com os amigos e familiares através da tecnologia, tentar se exercitar em casa e fazer atividades de abstração. E lembrar que, embora não saibamos quando, isso vai passar”, diz Farias.

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