"Estados vão tomando atitudes sem nenhum apoio do Ministério da Saúde, que não deu diretrizes técnicas”

O médico infectologista Julio Croda trabalhou na pasta até 23 de março e fala sobre a falta de empenho do Governo Bolsonaro para reduzir o número de casos e óbitos por coronavírus

O médico infectologista Julio Croda, em 14 de fevereiro deste ano.Foto: ERASMO SALOMAO (Ministério da Saúde)

O médico infectologista Julio Croda trabalhou no Ministério da Saúde quando Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS) ainda ocupava a pasta. Como diretor do Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis, fez parte do corpo técnico que tentou lidar com coronavírus em seus primeiros dias. Em 23 de março, 12 dias depois de a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar que o mundo vivia uma pandemia, Croda deixou seu cargo. Estava descontente com os rumos que do Governo Jair Bolsonaro adotara no combate à covid-19. No dia de sua saída, 34 mortes por coronavírus já haviam sido confirmadas, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Hoje, mais de dois meses depois, o Brasil já registrou mais de 31.000 óbitos e a curva de contágios não para de subir, conforme afirma a OMS e a própria pasta da Saúde. “Eu já previa o que está acontecendo agora. A gente sentia dentro do Governo que não existia união sobre o que deveria ser feito e que a resposta seria pífia, como está sendo. Saí antes que houvesse qualquer impacto desnecessário para o setor técnico”, explica Croda em entrevista ao EL PAÍS por telefone. “O Ministério da Saúde não forneceu nenhuma ferramenta técnica para que Estados e municípios gerissem essa crise, principalmente no sentido de flexibilizar ou intensificar as medidas de distanciamento social”, acrescenta.

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Com isso, Estados e municípios tomaram as medidas de distanciamento social a partir de seus próprios critérios. Mandetta defendeu o isolamento e acabou caindo. Nelson Teich assumiu seu lugar e, ao longo de um mês, também desenhou uma matriz que orientava como e quando se devem dar medidas de flexibilização, distanciamento e até o chamado lockdown. Sem apoio dentro do Governo, em um mês também deixou o cargo. Hoje a pasta é liderada pelo general Eduardo Pazuello. “Em nenhum momento esse assunto é revisitado, existe um esquecimento do ponto de vista técnico. Os Estados vão tomando as atitudes sem nenhum apoio do Ministério da Saúde. O Rio Grande do Sul tem um programa de flexibilização, São Paulo lançou o seu, Minas Gerais também tem um plano... Mas não existe nenhuma definição técnica do Ministério da Saúde, e deveria existir”.

Ao longo da pandemia, Bolsonaro já demonstrou diversas vezes desprezar a gravidade do coronavírus, definido por ele como uma “gripezinha” em pronunciamento em cadeia nacional, no qual também estimulou que as pessoas fossem para as ruas. As taxas de isolamento social começaram a cair desde então. Em uma das ocasiões em que foi questionado sobre as mortes, o presidente disse: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?". Além dessas falas públicas, assim como o próprio silêncio do mandatário com relação à pandemia, algumas informações de bastidores podem ajudar a entender as atitudes do Governo. Em entrevista recente à agência Reuters, Croda relatou ter ouvido de Solange Viera, que chefia Superintendência de Seguros Privados, no Ministério da Economia, a seguinte frase: “É bom que as mortes se concentrem entre os idosos... Isso melhorará nosso desempenho econômico, pois reduzirá nosso déficit previdenciário”.

O médico confirma ter escutado a frase, mas diz que, por trabalhar em uma diretoria do Ministério da Saúde, seu contato com outras equipes foi limitado. Ao condenar idosos e mais pobres a morte, estaria o Governo Bolsonaro promovendo alguma política eugenista? “Não sei se é intencional, se existe uma articulação nesse sentido... Mas existem muitas atitudes e muitos elementos que descrevem que é isso vai acontecer. Muita gente vai morrer, sobretudo pobres e idosos, e não existe nenhuma articulação do Governo no sentido de reduzir o número de casos, principalmente com medidas de isolamento social”, opina.

Croda garante que nem sempre foi assim. Olhando para trás, o médico afirma que a equipe do Ministério da Saúde vinha trabalhando com as recomendações da OMS e da comunidade científica até meados de março, quando o Brasil ainda estava adiantado com relação ao vírus. Ele recorda que a primeira e última recomendação para prefeitos e governadores se deu no dia 13 daquele mês. Na coletiva de imprensa do dia, Wanderson de Oliveira, na ocasião secretário nacional de Vigilância em Saúde, iniciou sua fala apresentando gráficos que a projetavam cenários com e sem a adoção de medidas “não farmacológicas” ―isto é, de distanciamento social―, comparou países que haviam ou não instituído a quarentena, mostrou os tipos de contágio possíveis e recomendou expressamente que Estados e municípios adotassem medidas para reduzir o contato social, adaptadas de acordo com a realidade de cada local. “Isso não foi muito bem aceito, principalmente pelo ministro [da Casa Civil], Braga Netto, e logo em seguida instituíram o gabinete de crise ligado à presidência da República”, conta Croda.

A maré então virou. Bolsonaro até chegou a recomendar, em pronunciamento em cadeia nacional, que as pessoas evitassem o contato uma com as outras, mas ele mesmo acabou comparecendo, no dia 15, na manifestação a favor de seu Governo em Brasília. "Se você não tem o apoio do presidente quando o distanciamento social era super importante, não tem como atingir um índice de isolamento conseguido em outros países nem reduzir a curva de contágios”, explica Croda. Ele taxativo ao dizer que a flexibilização da quarentena promovida por alguns governadores é prematura. “Com a curva ascendente não tem como abrir nem flexibilizar nada. É preciso respeitar os critérios técnicos, mas não está claro quais são esses critérios”, afirma.

O que vai acontecer a partir de agora, quase três meses depois do início da pandemia? Croda acredita que, enquanto países europeus flexibilizam o isolamento social com base na queda do número de novos casos, no Brasil a reabertura das atividades econômicas resultará no colapso da rede pública de saúde em algumas cidades e numa explosão de novos casos e óbitos. O médico opina que o número de mortes confirmadas deve chegar a 100.000 até o fim da pandemia, como vem ocorrendo nos Estados Unidos. “Vamos continuar seguindo essa curva de crescimento que estamos vendo, até atingir imunidade de rebanho. Vai ser um experimento natural que vai levar meses. Até lá vai morrer muita gente sem assistência. E a doença já circula principalmente entre os mais pobres, que contam com menos leitos de internação”, argumenta. "Vai ser muito triste o que vai acontecer no Brasil. Os números falam por si, mas não sei até que ponto esses números são transparentes. E com subnotificação, o cenário é bastante desolador”.


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