Governo prepara novo protocolo para tratar a covid-19, estopim para a saída de Teich do Governo
Oncologista não concordava com mudanças, que devem incluir uso da cloroquina até para casos leves, contrariando estudos. Após demissão, ministros saem em defesa do medicamento e do relaxamento da quarentena
As pressões por um novo protocolo para o uso da cloroquina em casos leves da covid-19 e para relaxar o distanciamento social e promover a reabertura da economia foram as peças-chave para a derrubada de Nelson Teich do comando do Ministério da Saúde nesta sexta-feira. Ele é o segundo mandatário da pasta que o Brasil perde em meio à crise sanitária por conta de divergências com o presidente Bolsonaro, que insiste em medidas desalinhadas ao que preconiza a ciência mesmo depois de o país alcançar 14.817 mortes e 218.223 casos confirmados da doença. Pouco depois de um breve pronunciamento de Teich ―no qual ele anunciou publicamente que deixaria o cargo, mas não explicou os motivos da saída―, um grupo de ministros formou uma tropa de defesa do Governo Bolsonaro, exaltando feitos da gestão no combate à crise no dia em que o presidente completa 500 dias no cargo. Em uma coletiva de imprensa que durou cerca de duas horas, reclamaram da cobertura jornalística da pandemia e defenderam a reabertura econômica do país. A defesa mais enfática do grupo, no entanto, foi sobre o uso da cloroquina já no início dos sintomas, ainda que estudos apontem efeitos colaterais de seu uso e não haja evidências científicas sobre a eficácia do medicamento em casos da covid-19. Para o Governo Bolsonaro, o brasileiro que contrair coronavírus tem o direito de escolher se vai ou não ser tratado com o medicamento.
A divergência entre Teich e Bolsonaro sobre o uso em larga escala da cloroquina ganhou força nos últimos dias, quando o presidente passou a pressioná-lo publicamente para endossar um novo protocolo para a aplicação do medicamento. “Tô exigindo a questão da cloroquina agora também. Se o Conselho Federal de Medicina decidiu que pode usar cloroquina desde os primeiros sintomas, porque o Governo Federal, via Ministério da Saúde, vai dizer que é só em caso grave?", afirmou o presidente, em uma reunião online com grandes empresários na quinta-feira, na qual expôs seu descontentamento com a falta de ação do ministro sobre o tema e prometeu que o protocolo sobre a cloroquina iria mudar. "Eu sou o comandante, o presidente da República, pra decidir, pra chegar pra qualquer ministro e dizer o que está acontecendo. E a regra é essa, o norte é esse. Eu não tô estuprando nenhum ministro, nunca fiz isso, nem interferindo em qualquer ministério, como nunca fiz. Agora votaram em mim para eu decidir e essa questão da cloroquina passa por mim. E mais do que pedir. Tá tudo bem com o ministro da saúde, mas essa questão nós vamos resolver”, ressaltou.
Nesta sexta-feira, Bolsonaro mandou o general Eduardo Pazuello —número dois da Saúde, que assume interinamente a pasta—, assinar um decreto liberando o medicamento para casos leves, segundo o jornal O Estado de São Paulo. Em nota, o Ministério da Saúde diz apenas que trabalha em novas orientações para o tratamento de pacientes com o novo coronavírus, incluindo a orientação de uso de medicamentos, mas não cita diretamente a cloroquina. Por enquanto, a pasta autoriza o uso do remédio, mas desde que médico e paciente assumam juntos os riscos de efeitos colaterais, seguindo parecer técnico do Conselho Federal de Medicina. Especialistas ouvidos pelo EL PAÍS rechaçam que haja benefício no uso precoce do remédio e há unidades de saúde, como o Hospital das Clínicas, que não o utilizam sequer nos casos graves, já que não há estudos que embasem sua eficácia. Os Estados Unidos ―país citado várias vezes por Bolsonaro como exemplo no uso do medicamento― já retiraram a recomendação do uso de altas doses de cloroquina para o tratamento da doença fora de hospitais.
Interlocutores do Palácio do Planalto afirmam que a resistência em recomendar a cloroquina para o tratamento de casos leves ―somada à defesa do isolamento social em determinadas localidades onde o epidemia avança rapidamente, o que dificultaria a abertura econômica defendida pelo presidente desde o início da crise― foram cruciais para a saída de Teich, ainda que oficialmente ministros militares tenham sustentado que o oncologista deixou o Governo por uma “decisão de foro íntimo”. Segundo fontes do Planalto, Bolsonaro fez um ultimato: ou Teich falaria a mesma língua do presidente ou estaria fora do Governo. Como o ministro não tinha apoio político como o seu antecessor Henrique Mandetta , a novela acabou tendo pouquíssimos capítulos. Teich deixou o cargo dois dias antes de completar um mês no cargo.
Nesta sexta-feira (14) ―antes de se reunir com Teich e anunciar que, se não pedisse demissão, ele seria demitido―, Bolsonaro esteve com a imunologista e oncologista Nise Yamaguchi. Ela volta a ser cotada para o ministério por assessores presidenciais. Nas redes bolsonaristas no WhatsApp, que costumam ser levadas em conta pelo presidente, Yamaguchi é uma das favoritas, ao lado do deputado federal Osmar Terra (MDB-RS). O parlamentar é um dos negacionistas da gravidade da pandemia e já afirmou que o país não teria mais que 5.000 óbitos, um terço do que já registrou até agora.
No Planalto, contudo, a orientação é de ter cautela para definir o novo ministro. Por enquanto, o número dois da pasta, general Eduardo Pazuello, fica interinamente no comando da Saúde. O presidente Bolsonaro diz que analisará com calma todos os nomes que lhe forem sugeridos. E não está descartada a possibilidade de efetivar o próprio Pazuello, um especialista em logística que fez carreira no Exército, sem nunca ter atuado na área de saúde. Se for efetivado, será o décimo ministro, entre 22, com carreira militar no Governo Bolsonaro. Pazuello é um defensor da cloroquina para tratar a covid-19 ainda nos estágios inicias da doença. Sob seu comando, a pasta diz que está finalizando novas orientações de assistência aos pacientes. “O objetivo é iniciar o tratamento antes do seu agravamento e necessidade de utilização de UTI (Unidades de Terapia Intensiva). Assim, o documento abrangerá o atendimento aos casos leves, sendo descritas as propostas de disponibilidade de medicamentos, equipamentos e estruturas, e profissionais capacitados”, diz o ministério, em nota.
Walter Souza Braga Netto, ministro da Casa Civil, afirmou nesta sexta-feira, ao ser perguntado sobre os dois milhões de comprimidos do medicamento comprados pelo Brasil, que "um protocolo do Ministério da Saúde para o uso da cloroquina nos estágios iniciais da doença” é aguardado. A fala foi feita na coletiva da tropa de defesa do Governo após a saída de Teich, que incluiu ainda o ministro da Economia, Paulo Guedes, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, e o ministro-chefe da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos. Braga Netto. “O presidente segue as medidas [da Saúde]. O que ele é contra é aos excessos que são tomados. Ele não é contra o isolamento, mas contra aquele isolamento que vai prejudicar o emprego e gerar fome lá na frente”, disse Braga Netto, minimizando problemas que possam ser gerados pela saída de Teich. “Se o presidente mudar o ministério inteiro, aí sim nós vamos ter problema”, complementou.
Guedes também defendeu a abertura econômica. Segundo ele, o Brasil “precisa bater as duas asas para voar: a da saúde e a da economia”. “Todo dia está morrendo gente, morrendo gente.... é terrível. Mas temos que escutar o outro lado também: vai morrer muito mais gente quando faltar comida nas prateleiras”, argumentou. O ministro ainda criticou indiretamente Governadores e prefeitos que defendem o isolamento social. “Não vamos subir em cadáveres para fazer palanque”, disse.
“Escolhi sair”
Nelson Teich tomou posse como ministro da Saúde em 17 de abril, se colocando como conciliador após uma grave crise política instalada entre o seu antecessor, Luiz Henrique Mandetta, e o presidente Bolsonaro pelas mesmas divergências que agora lhe tiraram do cargo. “A vida é feita de escolhas, e eu, hoje, escolhi sair", afirmou ele. "Dei o melhor de mim nesse período. Não é uma coisa simples estar à frente de um Ministério como este num momento tão difícil. Agradeço ao meu time, pessoas que sempre me apoiaram e sempre trabalharam intensamente por esse país”, afirmou Teich num pronunciamento curto nesta sexta-feira (15).
Durante sua rápida gestão, Teich evitava entrar em conflito com o presidente. Não comentava o comportamento errático de Bolsonaro em meio à pandemia e, diferentemente de Mandetta, não fazia críticas públicas a ações também praticadas pelo chefe do Executivo, como o desrespeito ao isolamento. Quando assumiu o cargo mais sensível no combate à crise sanitária, aceitou a nomeação de militares pelo Planalto para o alto escalão da pasta. Estava disposto a atender os interesses do presidente e prometeu que traçaria um plano que levasse em conta o isolamento necessário para proteger as pessoas e uma reabertura econômica.
Teich até chegou a desenvolver uma matriz de riscos com diretrizes para Estados e municípios, mas enquanto a estudava viu a epidemia crescer exponencialmente pelo país. O agora ex-ministro anunciou seu plano, sem dar detalhes à imprensa e à revelia de gestores estaduais e municipais da saúde, que deixaram claro que não debateriam a reabertura enquanto o número de mortes diárias não desacelerasse. O próprio Teich ―que desde a posse prometia se pautar pela ciência― modulou o discurso e chegou a comentar a necessidade de bloqueio total (ou lockdown) em algumas regiões, sempre ressaltando a necessidade de aplicar a avaliação de sua complexa matriz de riscos, que levava em conta desde a estrutura hospitalar instalada até o avanço da disseminação da doença em cada local. Ele afirmou que o plano ficará agora para seu sucessor.
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