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Aluisio Segurado, da ala de covid-19 do HC: “Não há um ser humano livre de adquirir essa infecção”

Responsável pelo setor específico para a doença conta o Hospital das Clínicas de SP transformou um prédio com 900 leitos em um ‘covidário’. Um mês depois, UTIs já estão próximas do esgotamento

Professor Aluisio Segurado, da USP. No vídeo, imagens do Instituto Central do Hospital das Clínicas.Vídeo: Divulgação

Em 29 de janeiro, antes mesmo de o primeiro caso de covid-19 ser confirmado no Brasil, o Hospital das Clínicas de São Paulo, um dos principais da América Latina, montou um comitê de crise. Os números assustadores de afetados e mortos, que percorreram primeiro a Ásia e logo chegaram à Europa, não deixavam dúvidas de que a crise em território brasileiro não tardaria. Esse comitê decidiu, então, transformar toda a principal unidade do hospital, o Instituto Central, destinado a pacientes com diversas doenças, no que ficou conhecido como covidário: um local de tratamento exclusivo para os futuros infectados pela doença. No final de março, com os primeiros casos já confirmados no país, os 900 leitos do prédio estavam liberados e acomodavam 200 Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) e 700 leitos de enfermaria. “Foi uma operação de desmonte da estrutura para uma remontagem. Transferimos todos os pacientes, mais de 400, muitos deles em estado grave, na UTI”, ressalta o presidente do Conselho Diretor do Instituto Central do hospital e professor de moléstias infecciosas da USP, Aluisio Segurado, em entrevista ao EL PAÍS.

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Um mês depois, a taxa de ocupação das UTIs já chegou perto do esgotamento —191 dos 200 leitos tinham pacientes nesta segunda-feira— e outros cem novos leitos terão de ser instalados pelo Governo de São Paulo, com a ajuda da iniciativa privada. Um retrato de como a crise do coronavírus ainda está longe de terminar e traz desafios que estão além da logística: uma das principais dificuldades, aponta Segurado, é conseguir suprir as novas estruturas que se abrem com profissionais.

Pergunta. O comitê de crise do hospital foi criado quase um mês antes da chegada do primeiro caso no país. Isso fez diferença no trabalho de hoje?

Resposta. A nossa instituição já acumulou experiência em anos passados em situações críticas de desastres ou de emergências em saúde pública. Existe uma metodologia internacional que já havia sido usada no nosso hospital em situações das mais diversas possíveis, como, por exemplo, o tiroteio na escola de Suzano ou numa epidemia como a da febre amarela. A gente já tinha um conhecimento prévio e uma experiência em montagem desse tipo de comitê, que trabalha não só com os aspectos técnicos específicos do agravo de saúde, mas muito com as questões logísticas. Não é nada simples você adaptar uma instituição de saúde de grande porte pra dar essa resposta. Logo se viu que mais uma vez o hospital poderia ser acionado e foi se montando esse comitê e estabelecendo uma divisão de tarefas. O fato de termos iniciado mais precocemente nos permitiu tomar decisões que teriam sido muito difíceis se elas tivessem sido deixadas para serem tomadas em um momento em que a crise já estivesse instalada.

P. Como quais?

R. Uma delas a ideia de deixar um dos institutos totalmente dedicado para os pacientes de covid-19. A experiência internacional já mostrava que num momento de crise e grande aumento de demanda de emergência para atendimento de uma doença potencialmente muito grave e altamente contagiosa, trabalhar isso num hospital que continua tendo uma vida normal para atendimentos de outros problemas de saúde torna a operação muito mais complexa. Desmobilizamos o hospital inteiro, com 900 leitos, para outros institutos do complexo em uma semana. Os pacientes já estavam começando a chegar. Esse prédio hoje está totalmente isolado, com 200 leitos de UTI e 700 de enfermaria. Só entram os profissionais que vão atender os pacientes com covid-19 e as pessoas com a doença. Isso minimiza o risco de contaminação de outros pacientes e garante a segurança dos profissionais porque diminui a circulação de pessoas.

P. Quase 90% dos leitos de UTI já estão ocupados atualmente. Qual a situação da enfermaria?

R. É curioso. Fizemos inicialmente essa proporção de 200 leitos de UTI para 700 de enfermaria imaginando que a maioria dos pacientes que viriam com covid não estariam em situação grave. Mas não foi isso que se viu. Como existe um centro de regulação do Estado que distribui esses pacientes, o que nós fomos observando é que, conhecendo o potencial de atendimento de pacientes graves que o Hospital das Clínicas tem, o sistema de regulação do Estado começou a direcionar para nós pacientes mais graves. Isso fez com que tivéssemos, num dado momento, uma taxa de ocupação maior das UTIs do que das enfermarias. O que na verdade não é de todo ruim porque temos que imaginar que agora já estamos a três semanas do início da crise mais séria na cidade e esse é o tempo médio que os pacientes graves ficam na UTI. Então esperamos a partir de agora que comece esse fluxo de descida. De pacientes que já melhoraram e podem sair da UTI, dando lugar a outros graves que estão chegando. Mas eles ainda não podem sair do hospital, então ficam mais um período na enfermaria.

P. Vocês trabalham com alguma projeção de que se chegue a ocupação desses leitos de UTI em breve? Como se resolveria isso?

R. Quando apresentamos a proposta inicial dos 200 leitos de UTI já tínhamos em mente a possibilidade de eventualmente sermos solicitados a termos mais. Começamos a fazer adaptações diárias para transformar leitos que não eram de UTI em leitos de UTI. Esse estudo continua sendo feito porque se houver a solicitação por parte da Secretaria da Saúde em função da realidade da ocupação das UTIs na cidade, temos que ter um plano de como fazer isso. Isso já está atualmente em estudo. [Nesta terça-feira, o Governador João Doria anunciou o pedido de mais cem leitos de UTI ao HC, que serão geridos pela iniciativa privada].

P. Quanto a mais de leitos de UTI o HC consegue oferecer para a rede?

R. O grande gargalo em relação aos leitos de UTI é a disponibilidade de recursos materiais e humanos. Depende-se de equipamentos, de recursos humanos de enfermagem, de equipes médicas treinadas, fisioterapeutas. Uma vez demandados para ampliar esse número, temos que ter a garantia de que tudo isso vai ser suportado pela Secretaria da Saúde. Precisamos de um aporte maior de equipamentos e de recursos humanos. A proporção de enfermeiros ou médicos para um determinado número de leitos é muito maior na UTI do que na enfermaria. Na enfermaria, precisa-se de um enfermeiro para cada dez leitos. Na UTI, de um enfermeiro para cada cinco leitos e de um técnico de enfermagem para cada três leitos, quando na enfermaria o número de leitos atendido por um mesmo técnico é o dobro. O paciente mais grave demanda maiores cuidados e a equipe tem que estar reforçada. Transformar um leito de enfermaria em leito de UTI não é nada trivial.

P. O aumento de casos foi dentro do fluxo esperado ou os leitos foram ocupados mais rapidamente do que o planejado?

R. Seguiu um pouco o que imaginávamos. Mesmo porque essa demanda não é uma demanda de porta aberta [em que os pacientes chegam por conta própria ao hospital]. É uma demanda regulada, então ninguém iria deixar estourar a emergência com um número que fosse além da nossa capacidade operacional. Espero que a gente não saia dessa situação, mas ainda estamos em um momento em que o Estado consegue regular isso. Ele tem um mapa geral de todos os serviços que estão funcionando e tem as chamadas centralizadas e informatizadas de pedidos de realocação de pacientes, classifica a gravidade do caso e vai direcionando porque tem conhecimento do mapa de leitos geral. Se estamos em um momento em que você vai abrir uma UTI amanhã e hoje não podemos receber mais nenhum paciente, temos condições de falar: mande o paciente amanhã. Isso fez com que a gente conseguisse aumentar os números de leitos progressivamente. Por isso, é muito importante entender que quando se fala do achatamento da curva de casos é visando isso: que não ultrapasse a capacidade de absorção dos serviços. São Paulo está conseguindo trabalhar com isso por enquanto dado que foi implantado um programa de distanciamento social.

P. Estamos vendo a mudança de um perfil de infectados. Os casos iniciais, importados, demandavam mais hospitais privados. Agora isso foi se espalhando para as periferias, onde os trabalhadores não conseguem parar de trabalhar, estão mais expostos ao vírus. As UTIs de hospitais da zona leste já estão totalmente ocupadas. Acredita que São Paulo pode entrar em um colapso de leitos a partir de agora?

R. Teoricamente isso é possível. A clientela que procura o HC é a do SUS essencialmente, por isso fomos poupados no início da epidemia. A demanda pela nossa atenção começa a crescer depois da instalação da transmissão comunitária, entre gente que contraiu o vírus aqui mesmo. E isso tende a crescer, a se concentrar em áreas onde o isolamento é mais difícil, onde muitas pessoas coabitam um ambiente restrito. Isso vai demandar uma carga mais de pacientes para o SUS, era o esperado. Mas quando a gente fala em taxa de ocupação em algumas áreas da cidade que estão perto de um limite de conforto, tem muito a ver com a capacidade instalada dessas áreas. Aqui ao lado, foi noticiado que o Instituto de Infectologia Emílio Ribas estava com 100% da sua capacidade tomada na UTI, mas não se compara o número de leitos que eles têm à disposição na UTI com o que nós estamos oferecendo no HC. Usar só a porcentagem talvez não seja o ideal. Nós atendemos uma média de pessoas aqui por dia, na nossa emergência, de 30 a 35 casos. A grande maioria quando chega aqui não sai, não vai para a casa. Estamos tendo uma absorção de 30 a 35 pacientes por dia. Pensando que muitos dos que vêm para nós já vêm para a UTI, se nós tivéssemos 30 leitos de UTI em um dia a gente teria 100% de ocupação.

P. Acredita que pode haver a possibilidade de que o Estado confisque leitos de hospitais particulares para o uso de pacientes SUS? A formação de uma fila única?

R. Não participamos desse tipo de negociação, que é feito pelo comitê de crise do Estado. Eles têm a visão macro dos vários hospitais do Estado, tanto da rede pública como da privada. Agora, é um dado que todos nós já sabíamos, mesmo antes dessa epidemia, que existe uma distribuição de leitos de UTI entre a rede pública e a privada que é desigual. No Brasil, 75% da população é usuária exclusiva do SUS. E, no país inteiro, a distribuição dos leitos é de metade no SUS e metade na rede privada. E isso é muito desigual pelas regiões do país. Nos locais onde essa distribuição é mais desigual, a necessidade de haver um comando único de gerenciamento de leitos, tanto da rede privada quanto da rede pública, vai se sentir mais imediatamente do que na região Sudeste e em São Paulo, onde existe uma maior capacidade instalada no setor público. Teoricamente, se não houver controle de explosão, você pode imaginar que haverá um momento de exaustão.

P. A doença pode progredir para a gravidade muito rapidamente? É um vírus mais agressivo do que os que vocês estão acostumados a ver?

R. Sim. Tivemos aqui uma experiência de gripe com o H1N1 e estamos percebendo que a agressividade do coronavírus é maior. Vemos que há uma evolução desproporcional para a gravidade frente ao que inicialmente se imaginava que seria o perfil de risco daquele paciente. Isso vai demandar um estudo um pouco maior, porque às vezes o indivíduo pode ter um fator de risco que não está revelado. Uma deficiência imunológica.

P. Já há um protocolo de tratamento estabelecido? O HC usa a cloroquina?

R. Nosso protocolo é de manutenção das condições gerais do paciente, de assistência ventilatória. Não há nenhuma proposta de tratamento medicamentoso [específica] mesmo porque nenhum desses tratamentos medicamentosos foi cientificamente comprovado como eficaz. Agora, o Hospital das Clínicas é um hospital de ensino e pesquisa. Então, existe uma plataforma de pesquisa com vários projetos sendo submetida aos órgãos reguladores para assim que a gente tenha alguma liberação a gente possa trabalhar com eles. A cloroquina não faz parte da nossa recomendação. Não identificamos nenhuma evidência científica na sua utilização.

P. Como é estar tão envolvido com tudo isso no cotidiano e depois voltar pra casa?

R. Essa é a preocupação de todos os brasileiros hoje em dia. Outro dia vi uma citação que achei bastante interessante que dizia que os únicos três seres humanos que estavam livres da covid eram os que estavam na plataforma espacial. Mas eles voltaram. Então hoje não há nenhum ser humano que esteja livre de adquirir essa infecção, infelizmente. É um sentimento muito novo para nós. Sou um infectologista é e estou há 40 anos na especialidade e nunca vivenciei uma situação como essa de pandemia. Vivemos várias outras epidemias, mas nenhuma delas teve esse impacto global tão intenso, levando a uma letalidade alta em curto espaço de tempo. Então isso obviamente mexe com todos nós, nos faz repensar valores, formas de encarar a nossa vida profissional, familiar. Agora, é muito importante que a gente tente manter a nossa serenidade. Montamos várias estruturas no hospital de atenção à saúde dos colaboradores porque isso é fundamental. A ansiedade e o estresse são naturais, mas temos que lidar da forma mais adequada possível para garantir que os profissionais estejam trabalhando na plenitude de suas potencialidades. Estamos vivendo em uma cidade que tem transmissão comunitária. Estamos também sob o risco de contrair a doença ali fora, longe do hospital. Mesmo saindo daqui, precisamos manter as nossas medidas de prevenção.

P. São Paulo está preparada para reabrir o comércio e reduzir as medidas de isolamento?

R. Acho que a gente ainda não tem elementos para propor isso imediatamente. O nosso Estado está pautando as suas decisões pelo comitê de crise, que tem se baseado em evidências científicas. É um Estado em que as medidas foram implementadas precocemente e está firmemente aderindo a isso. Pelo menos até 10 de maio não há nenhuma perspectiva de mudança nessa política. Quero crer que num dado momento, como no mundo todo, podem se adotar novas estratégias. Mas isso vai depender da análise conjuntural da dinâmica da epidemia ao longo do tempo. A gente continua recebendo uma demanda muito alta de pacientes graves, o que denota que o vírus está circulando intensamente na cidade. As medidas de isolamento ainda são bastante necessárias aqui

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