Greve da PM no Ceará atiça debate sobre transferir polícias dos Estados para Governo federal
Crise coloca Bolsonaro e governadores em lados opostos. Moro vai ao Ceará e diz que situação está sob controle, embora homicídios tenham crescido 75%
A proximidade de policiais militares com o presidente da República, Jair Bolsonaro, acendeu um sinal de alerta entre governadores desde a semana passada, quando se iniciou um motim de policiais no Ceará. O principal temor é que haja uma instrumentalização das polícias que, em médio ou longo prazo, pode resultar na transferência de suas atribuições dos Estados para a União. O tema tem sido debatido em grupos de discussões dos quais participam policiais, secretários de Segurança Pública e especialistas. Três participantes desses debates relataram ao EL PAÍS que está sendo gestado um projeto de lei que tem como objetivo alterar os regimentos das PMs e bombeiros, em vigor desde 1983. Um de seus artigos deve prever a federalização das polícias, que hoje são estaduais.
As conversas ainda estão em estágio inicial, mas encontram alta adesão entre a bancada da bala e os comandos das corporações, que costumam ter livre acesso ao presidente. É comum se deparar com encontros entre Bolsonaro e representantes de forçar policiais sem a intermediação de seu ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, ou do secretário Nacional da Segurança Pública, o general Guilherme Teóphilo.
Por outro lado, os governadores são frontalmente contra a proposta. Atualmente, são os governos estaduais e do Distrito Federal os responsáveis pelas polícias militares, civis e bombeiros militares, que representam o grosso do efetivo policial no Brasil. Ao governo federal, cabe a administração da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e da Força Nacional de Segurança Pública ―esta tem o efetivo formado por policiais estaduais.
A crise numa área tão sensível tem ampliado a comunicação entre os governadores, segundo disse o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), ao jornal Valor. “O presidente Bolsonaro neste momento tem tido um bom papel, o de unir os governadores”, disse ele, que considera legítima a reivindicação dos policiais por melhores salários, mas a greve não. “A ação de miliciar a polícia, e miliciar esse processo, sob qualquer justificativa, é um risco e uma afronta à Constituição”, afirmou. Também o governador da Paraíba, João Azevêdo (Cidadania), se diz preocupado com a proporção das pressões de policiais. Seu Estado também está sob pressão por melhores salários dos policiais. “Observamos na Paraíba, assim como em outros Estados, a forte conotação política e até eleitoreira nesses movimentos. Uma coisa é uma reivindicação legítima de uma categoria, mas outra é a radicalização”, disse ele ao jornal O Estado de S. Paulo.
Na última semana, os governadores publicaram uma carta na qual reclamaram da postura do presidente. Na ocasião, se queixaram da tentativa de interferência de Bolsonaro em questões locais, como a segurança pública. A referência era os ataques do presidente contra o governador da Bahia, Rui Costa (PT), já que a greve de policiais cearenses ainda não tinha ganhado força. Ainda segundo o Valor, Doria disse que os governadores cogitam enviar uma segunda carta aberta ao presidente centrada na greve do Ceará. “Esperamos que o governo federal saiba colocar isso [a greve da PM no Ceará] dentro de um sentimento institucional que não eleve ainda mais essa perspectiva [de crise].”
Anistia ou punição
O sociólogo Arthur Trindade Maranhão Costa, que coordena o Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília (UnB), diz que greves de policiais sempre aconteceram. ”Depois, vem anistia e pronto. Ninguém é punido. Agora, a reação é mais forte diante da possibilidade de instrumentalização das PMs por parte do Governo Bolsonaro”, ponderou. Por ora, o Governo do Ceará afastou 230 deles sob a suspeita de serem desertores ou de estimularem o motim ou por participação em “condutas transgressivas” contra a corporação.
Apesar de proibida pela Constituição, a greve de policiais tem sido constante no Brasil. De 1997 a 2017 foram ao menos 715 casos, sendo 52 deles de PMs. Os dados constam em um estudo coordenado pelo sociólogo José Vicente Tavares dos Santos, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “O problema é a legitimidade política desse tipo de ação”, ponderou o especialista. No atual movimento já houve invasão de batalhões da polícia, grupos encapuzados usando viaturas policiais e armas para coagir comerciantes a fecharem suas lojas e até um parlamentar baleado após tentar atropelar um grupo de amotinados. O senador Cid Gomes (PDT-CE) foi atingido por dois disparos no tórax depois que tentou invadir com uma retroescavadeira uma unidade da PM em Sobral, cidade que é sua base eleitoral.
O que raramente acontece nos motins policiais é a punição aos envolvidos nesses protestos ilegais. De 2010 para cá, ao menos três leis foram aprovadas pelo Congresso Nacional e sancionadas pelo presidente da ocasião (Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer) autorizando que os policiais e bombeiros amotinados fossem perdoados de seus delitos. O perdão é uma decisão política. Quando se trata de crime federal ou infração militar, é dado pelo Congresso e pelo presidente. Quando o delito atinge regras estaduais, como regimentos locais, é dado pelas Assembleias Legislativas e pelos governadores.
Ato de milícia
No caso do Ceará, o governo local já sinalizou que não tem interesse em afrouxar as sanções. O mesmo ocorre nacionalmente. “Não posso concordar com movimentos como o que eu vi, policiais encapuzados como bandidos black blocs, viaturas sendo queimadas. Não haverá uma nova anistia para esses casos no Congresso”, afirmou o senador Major Olímpio (PSL-SP), policial militar da reserva que esteve no Ceará na semana passada em uma comitiva parlamentar que tentou, em vão, intermediar as negociações entre os amotinados e o Governo. Atualmente, Olímpio é o relator de um projeto de lei que pretende anistiar policiais que participaram de outras três paralisações entre 2011 e 2018 no Ceará, em Minas Gerais e no Espírito Santo.
Nessa linha seguiu o secretário da Segurança Pública no Ceará, André Costa. “O que a gente não pode nunca é negociar com pessoas encapuzadas, pessoas cometendo crimes, inclusive usando aparato da corporação, como viaturas, motocicletas, e até armas, para ameaçar cidadãos, não há possibilidade de anistia”, disse o dirigente ao jornal O Povo.
Enquanto a situação não se normaliza, os homicídios no Ceará registraram uma alta de 75% desde o fim tarde do dia 17, quando o protesto teve início, até o começo da noite deste dia 24. Ao menos 147 pessoas foram mortas no período, o que elevou a média diária de vítimas de assassinatos de 12 para 21. Apesar desses dados, em visita a Fortaleza, da qual participaram outros dois ministros, Sergio Moro, titular da Justiça, disse que a situação nas ruas não é descontrole. “A situação está sob controle dentro de um contexto relativamente difícil em que parte da polícia estadual está paralisada”, disse Moro.
Nas ruas, é comum colher relatos ou se deparar com imagens de policiais murchando pneus de viaturas para evitar que profissionais que não aderiram à paralisação trabalhem. Por outro lado, para tentar amenizar a imagem negativa que estão junto à população, um grupo de amotinados circulou por bairros distribuindo alimentos. Ato típico de milícias. “Estão chamando a gente de vândalo, a gente não é vândalo, não. A gente é cidadão trabalhador. Se você gosta da polícia aí, vem ajudar”, diz um policial em um vídeo publicado pela colunista do jornal O Estado de S. Paulo Vera Magalhães, em seu perfil no Twitter.
Atendendo a pedido do governador cearense, Camilo Santana (PT), a gestão Bolsonaro enviou no fim de semana, 2.600 militares das Forças Armadas, cerca de 100 policiais da Força Nacional e reforçou a atuação da PRF e da PF local. Os militares permanecerão no Ceará pelo menos até o dia 28. “Esperamos que essa situação possa ser resolvida o mais cedo possível pelo Governo do Estado junto a esse movimento. Nosso trabalho aqui é exclusivamente de garantia e proteção à população diante da população”, reforçou Moro.
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