Governador petista do Ceará é visto pelos setores ideológicos da PM como um inimigo a ser combatido
Mais do que uma situação episódica, o que ocorre no Estado aponta para uma falência da própria concepção de uma polícia militarizada
Uma das primeiras agendas públicas de Camilo Santana como governador, em seus primeiros dias no cargo, foi se reunir com o então deputado estadual Capitão Wagner. O fim da gestão Cid Gomes (2007-2014) havia terminado com um imenso desgaste entre o governante e as tropas com direito a trocas de acusações e ameaças, resquício direto da paralisação ocorrida na virada dos anos 2011 para 2012, quando o Ceará inteiro ficou sem policiamento.
Camilo Santana teve o mérito de reestabelecer um canal de diálogo entre os policiais e o Governo. A queda nos índices de homicídio, logo no primeiro ano de mandato, contribuiu para que o clima de belicosidade entre as partes arrefecesse, mas não fosse totalmente erradicada. O programa Ceará Pacífico era a grande aposta na área da segurança pública. A demora em sua implementação, contudo, lançou dúvidas sobre a eficácia da proposta.
Nesse meio tempo, dois movimentos até então subterrâneos emergiram. O primeiro foi a reordenação da criminalidade no Estado, com a presença mais efetiva das duas principais organizações criminosas do País: o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, e o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo. O tráfico de drogas que, até então, era uma atividade fragmentada e baseada na dinâmica das gangues, foi integrado de forma mais plena aos fluxos do tráfico internacional, haja vista a posição privilegiada que o Ceará ocupa geograficamente.
Como reação a essa “invasão”, é criada uma organização local denominada de Guardiães do Estado (GDE). Menos organizada e descentralizada, a GDE irá ser reconhecida por sua crueldade. Vídeos de execução em redes sociais passam a se tornar bastante comuns, chocando pela ferocidade e frieza com que tais atos são cometidos. Após um início violento, o processo de reestruturação da atividade criminal se estabiliza com a definição dos limites territoriais sob o domínio de cada facção e o estabelecimento de uma regulação social mediada pela força, contribuindo para a queda dos assassinatos. A expressão “pacificação” se incorpora ao cotidiano dos moradores das áreas periféricas, como marcador de uma nova era.
O segundo movimento é eminentemente político. Em 2015, o Brasil assistiu ao acirramento da divisão ideológica que irá resultar no impeachment de Dilma Rousseff no ano seguinte. Essa polarização é um elemento fundamental para se compreender a visão do mundo dos policiais. Embora a Constituição de 1988 tenha trazido avanços significativos na participação social, ampliando o papel da população nas esferas decisórias, a estrutura da Segurança Pública manteve-se praticamente a mesma do período ditatorial. Não é possível entender o que ocorre hoje sem levar em consideração que a doutrina da segurança nacional, baseada fortemente na ideia de um inimigo a ser combatido e eliminado, persiste nos quartéis a despeito de todas as mudanças políticas que se seguiram após a redemocratização.
No Ceará, todas as tentativas de mudar essa cultura organizacional fracassaram sob a alegação de que não eram “enérgicas” o suficiente. O maior sinal disso foi o fim de um modelo de policiamento comunitário, o Ronda do Quarteirão, substituído o discurso oficial pelo Comando de Policiamento de Rondas de Ações Intensivas e Ostensivas (Raio), cuja abordagem é diametralmente oposta a uma postura de diálogo. Mais que duas formas de policiamento, tratam-se de duas concepções bastante distintas de se pensar a segurança pública em sua relação com a sociedade.
A troca de comando da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), no começo de 2017, marca um momento de inflexão na política de segurança do Ceará. O novo secretário, André Costa, trazia em seu discurso uma forma simples de resolução de problemas complexos: “justiça ou cemitério”, ou seja, ou os criminosos se rendiam – e seriam presos – ou reagiam e seriam mortos. Era um aceno de Camilo Santana a uma demanda por uma polícia menos comunitária e mais ostensiva, seguindo a nova linha traçada pelo Governo Federal, que tirou a palavra “cidadania” da nomenclatura, deixando apenas “Plano Nacional de Segurança Pública”. Casos de chacina, agressões e abusos cometidos por policiais durante esse período não tiveram a resposta estatal devida, ampliando a percepção de impunidade da tropa diante de condutas reprováveis que, pela repetição, tornaram-se o novo normal. Repercutindo o que acontecia em nível nacional, a trégua entre grupos armados rivais acabou, fazendo com que aquele ano se tornasse o mais violento da História do Ceará, com as mortes por intervenção policial atingindo números até então inimagináveis. No entanto, do ponto de vista interno, a corporação estava unida e integrada, com pouca margem para insubordinações.
Em 2019, esses dois movimentos se cruzam e se indissociam. A ascensão do Governo Bolsonaro empoderou os segmentos da polícia que se norteiam pela doutrina da segurança nacional, fortalecendo o surgimento de novas lideranças ainda mais radicais. Ao mesmo tempo, o Ceará assistiu a uma série de ataques sem precedentes motivados pela nova política prisional fazendo com que a Força Nacional tivesse de ser enviada ao estado. Embora tenha sido um crítico ferrenho do candidato do PSL no período eleitoral, Camilo Santana se viu obrigado a demandar apoio do Governo Federal, da mesma forma como está acontecendo agora.
No interior da corporação, a discussão deixou de ser apenas por melhorias salariais e melhores condições de trabalho, pautas da paralisação de 2011, e passou a assumir um viés partidário: é o governo “comunista” do PT versus o governo Bolsonlevar em consideração queuando o foco da segurança pública centra-se sobre os municípios.
Coerente com o pensamento militarizado, o governo Camilo Santana passou a ser visto pelos setores mais ideológicos da tropa como um inimigo a ser combatido sem tréguas. Daí a ineficácia das negociações salariais deste ano. Nem mesmo as lideranças surgidas na crise de 2011 parecem ser capazes de serem ouvidas neste momento. O que os amotinados querem, no fundo, não é o reajuste, mas o enfraquecimento político do governador. Nem que para isso o caos tenha de ser instaurado. Nem que para isso práticas concernentes às facções tenham de ser emuladas. A imagem do senador Cid Gomes sendo baleado após avançar com uma retroescavadeira sobre os manifestantes ilustra perfeitamente o esgarçamento dessa relação. Mais que uma situação episódica, o que ocorre no Ceará aponta para uma falência da própria concepção de uma polícia militarizada em uma sociedade que se pretende democrática
Ricardo Moura é jornalista e sociólogo. Pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência, da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC) Twitter: @ricardoxmoura
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