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Ala radicalizada da PM no Ceará ecoa bolsonarismo e cria bomba-relógio difícil de desarmar

Motim expõe disputas internas na corporação e não tem liderança clara. Eleição municipal e contexto nacional turvam xadrez político. Estado, que terá Exército nas ruas, contabiliza 51 mortos em 48 horas

Grupo encapuzado se concentra em um batalhão da Polícia Militar, em Fortaleza.
Grupo encapuzado se concentra em um batalhão da Polícia Militar, em Fortaleza.Jarbas Oliveira (EFE)
Beatriz Jucá

Está fragmentado e sem lideranças definidas o movimento grevista de policiais militares no Ceará ―cuja escalada de tensão chegou ao ápice na última quarta-feira, quando o senador Cid Gomes foi atingido por dois tiros enquanto tentava entrar, dirigindo uma retroescavadeira, numa área militar ocupada por pessoas encapuzadas na cidade de Sobral. O episódio agravou uma crise que começou a se desenhar no fim do ano passado, com as negociações por reajuste salarial para a categoria. O governador Camilo Santana chegou a incorporar algumas das reivindicações na sua proposta inicial e, embora associações ligadas aos policiais tenham chegado a aceitar um acordo, parte da base o recusou e se rebelou. Batalhões em distintas cidades foram ocupados desde então. E um clima de pânico se abateu sobre o Estado diante da paralisação de parte da PM às vésperas do Carnaval. Quatro policiais foram presos e outros 300 estão sendo investigados por crimes que vão da tomada de viaturas civis ao incêndio de veículos de cidadãos críticos ao movimento. Em meio a uma categoria rachada e uma crise explorada à exaustão por políticos locais e nacionais, um novo protagonista tem se fortalecido: uma ala mais radical da corporação, formada principalmente por jovens soldados e empoderada por um discurso autoritário que vem ganhando força nas polícias na esteira do bolsonarismo.

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A woman places a mask depicting  Brazil's former President Luiz Inacio Lula da Silva (up) while a shopper holds a mask of Brazil’s President Jair Bolsonaro (down) inside a shop ahead of Carnival festivities in Sao Paulo, Brazil, February 14, 2020. REUTERS/Rahel Patrasso
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“Foi a primeira vez na vida que vimos um quartel ocupado dessa forma. Todos encapuzados. Não dá pra saber quantos são policiais nem se eles são mesmo policiais”, relatou o senador pelo Estado de São Paulo, Major Olímpio, que visitou um dos batalhões ocupados, em Fortaleza. O político integra a comitiva de senadores que foi até o Ceará para buscar uma saída à crise. O receio deles é de que a grave crise local provoque um efeito dominó violento no restante do país, em um contexto no qual pelo menos seis estados já receberam demandas desses trabalhadores, que têm porte de armas de fogo e são proibidos por lei de fazer greve. Os holofotes sobre o Ceará, porém, também expõem um xadrez de políticos locais e nacionais que têm ajudado a converter a crise em uma bomba-relógio difícil de ser desarmada. Segundo levantamento do site G1, foram ao menos 51 mortes nas últimas 48 horas no Estado, contra uma média de 6 assassinatos por dia em 2020 até então. Entre as vítimas, há desde uma mãe que foi morta diante dos filhos durante um assalto a um adolescente morto por homens em motocicletas.

O presidente Jair Bolsonaro, principal autoridade do país e eleito com apoio de categorias policiais, ainda não condenou os motins em unidades militares cearenses. Em uma live no Facebook na noite da última quinta-feira, anunciou ter autorizado o envio das Forças Armadas ao Estado e voltou a defender o excludente de ilicitude para militares que atuarão na crise. “Se estamos em guerra urbana, temos que mandar gente para lá para resolver esse problema", afirmou. Horas antes, o ex-ministro Ciro Gomes (PDT) havia acusado Bolsonaro de empoderar os manifestantes mais radicalizados com seu discurso, que inclui perdão a agentes de segurança pública que tenham cometido crimes culposos. “Você acha que um garoto de 20 e poucos anos teria coragem de atirar em uma pessoa assim se não achasse que estava a serviço do poder maior no Brasil?”, perguntou o pedetista a jornalistas. Ciro também citou como parte desse empoderamento a presença de uma deputada federal do Rio de Janeiro ligada à família Bolsonaro no Estado. Major Fabiana chegou ao Ceará na quarta-feira acompanhada de lideranças locais que fizeram carreira política a partir de uma greve anterior, em 2012, quando Cid era governador. “Pela primeira vez a gente tem um presidente que sabe o que é ser policial militar”, discursou a grevistas num quartel ocupado, interrompida por gritos de “mito! mito!”.

Em meio a essa disputa política, o motim que começou com as reivindicações salariais ganhou ainda outra pauta prioritária diante da escalada de tensão dos últimos dias que terminou com um senador baleado: a anistia de policiais amotinados nos batalhões. O governador Camilo Santana ―aliado da família Ferreira Gomes― já sinalizou não estar disposto a discutir a proposta. O Governo não demitiu nenhum grevista até o momento, mas já anunciou que cortará salários de quem não se apresentar ao trabalho. Ainda assim, policiais decidiram manter a paralisação. “Quem pode resolver isso está fazendo uma estratégia equivocada. Eles [policiais] agora precisam lutar para garantir pelo menos a anistia”, diz o vereador de Fortaleza, Sargento Reginauro, que também fez carreira política na esteira das mobilizações policiais dos últimos anos. As tensões que explodem agora não são inéditas. A atual crise no Ceará é marcada por uma série de mudanças alcançadas a partir de outro movimento grevista, há quase uma década, que influenciou tanto decisões nas políticas de segurança do Estado quanto mudou estruturas na corporação. Especificamente no Ceará, as principais forças de oposição tanto no âmbito da Prefeitura de Fortaleza quanto do Governo do Estado é composta por políticos que alçaram carreira a partir de greves policiais.

As origens da crise

Quando policiais militares do Ceará pararam suas atividades em dezembro de 2011, a capital Fortaleza se converteu praticamente em uma cidade fantasma, com comércios fechados e um toque de recolher informal que a população assumiu pelo medo. Um pânico generalizado tomou a quinta capital brasileira por ao menos um dia, que precedeu outros cinco de tensão, mesmo com os reforços da Força Nacional. Homens encapuzados ―supostamente policiais que reivindicavam melhorias salariais ao então governador Cid Gomes― furavam pneus de viaturas e tomavam as chaves de batalhões para impedir que colegas que não aderiram à greve trabalhassem. Cabia às esposas deles o papel de mostrar à sociedade as insatisfações da categoria, uma estratégia para blindar os maridos de represálias administrativas e buscar um apoio popular que acabou vindo em alguma medida.

No meio daquela crise, um nome se instalou no debate público cearense. Capitão Wagner ―um suplente de deputado até então desconhecido fora das corporações policiais― despontou como a principal liderança do movimento. Wagner havia fundado uma associação de agentes de segurança e costumava usar frequentemente as redes sociais (à época Orkut e Facebook) para denunciar a cúpula de segurança no Estado. Aglutinava em torno de si várias forças de uma categoria que conta com pelo menos oito associações representativas no estado do Ceará. A greve lhe impulsionou politicamente. No mesmo ano, foi eleito o vereador mais votado da história de Fortaleza. Depois, conquistou mandatos na Assembleia Legislativa e na Câmara Federal. E ainda ajudou a eleger a diferentes Parlamentos pelo menos outros três policiais de distintas patentes que atuaram naquela greve ao seu lado: Cabo Sabino, Soldado Noélio e Sargento Reginauro.

Personagem central do aumento da representatividade dos policiais militares no parlamento cearense, Capitão Wagner (PROS) têm usado com frequência as redes sociais nos últimos para denunciar a “falta de diálogo” do Governo com os policiais militares, mas tem modulado o discurso. Ele é um dos principais pré-candidatos à Prefeitura de Fortaleza nas eleições deste ano e demorou a apoiar publicamente o presidente Bolsonaro, que não venceu as últimas eleições na capital cearense. Até o momento, Wagner não têm um oponente claro para a corrida municipal. Embora ainda seja influente na categoria, já não tem a mesma centralidade que tinha na greve de janeiro de 2012 sobre ela.

“Não existe uma representação homogênea [no movimento de policiais militares do Ceará]. Não dá pra tratar como se fosse uma coisa só”, explica o deputado estadual Renato Roseno (PSOL), com forte atuação na área de segurança e direitos humanos. Ele conta que o efetivo da PM no Ceará quase dobrou nos últimos dez anos e que há lideranças muito diferentes entre os 21.000 agentes que integram a corporação hoje. Além disso, são cerca de 10.000 novos agentes que não vivenciaram a greve de 2011. Uma ala mais radicalizada nesse movimento, a maioria de soldados, estaria agindo principalmente na periferia da capital e em cidades do interior. “Há policiais atuando como milícias, aterrorizando a população”, acusa.

A esse contexto, o pesquisador Luiz Fábio Paiva adiciona outro: o histórico processo de intervenção política nas polícias. “Cada nova gestão teve a Polícia Militar como objeto. No Ceará, tivemos políticos testando programas de segurança que interferiam na estruturação das polícias. Isso tem efeitos”, explica Paiva. Quando assumiu o Governo do Ceará, Cid Gomes criou um programa chamado Ronda do Quarteirão, que criava uma polícia de monitoramento com melhores salários, farda desenhada por estilistas e Hilux como veículos oficiais. As diferenças nas condições geraram animosidades dentro da corporação. Quando Camilo Santana assume o poder, institui uma política semelhante, dessa vez dando melhores condições ao Raio (polícia especializada que atua na Ronda de Ações Intensivas e Ostensivas). “Os Governos historicamente tentam criar suas próprias polícias dentro da PM”, analisa o pesquisador.

O histórico conflito entre as bases policiais e os Governos agora ganham maior imprevisibilidade no Ceará. “Temos um Governo Federal que estimula a violência, a agressão contra politicos de oposição, contra jornalistas, contra quem pensa diferente. É preciso ficar atento a como esse discurso repercute nas bases das polícias”, alerta Paiva. Apesar da escalada violenta no Estado nos últimos dias (foram 51 homicídios em 48 horas de greve), o pesquisador pondera para falar de atuação de milícias no Ceará. “É complicado falar que há milícia no modelo que existe no Rio de janeiro. Historicamente, o Ceará tem grupos armados, grupos de extermínio, com a presença de policiais. Neste momento, o que a gente observa é como esses grupos estão se sentindo à vontade para operar. Por mais esdrúxulo que possa parecer, esses grupos encapuzados que estão secando pneus da viatura produzindo esse enfrentamento de fato mostram a fragilidade das instituições no Brasil”, afirma.

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