Temporal em São Paulo impõe calvário com dia de salário perdido e longas caminhadas
Mais ricos contornam enchentes com ‘home office’ em áreas com trânsito de feriado. “Se o modelo rodoviarista continuar, as melhorias ficarão obsoletas com chuvas cada vez mais intensas”, diz urbanista
“O trabalho é importante, mas a vida é mais”, resume Vanessa Almeida, moradora do bairro de Morro Doce, no extremo noroeste paulistano, ao contar porque desistiu da jornada como diarista nesta segunda-feira, mesmo considerando o risco de perder um dia de remuneração no final do mês. Quando a cidade de São Paulo começava mais uma semana debaixo d'água, por causa da maior chuva em fevereiro desde 1983, Vanessa saiu de casa 6h30 para tentar chegar ao bairro nobre de Pinheiros, no centro expandido, onde trabalharia. Pegou um ônibus que percorreria a rodovia Anhanguera em direção à Lapa. De lá, a ideia era pegar outro ônibus. Ainda na rodovia, o ônibus não conseguiu sair do lugar por conta do trânsito causado pelo alagamento próximo ao rio Tietê. Ela esperou cerca de duas horas e meia antes de resolver descer e voltar andando para casa. Disse ter conversado sobre a situação com a dona da casa onde faria faxina, mas, como recebe por dia trabalhado, não se sentia à vontade para exigir um pagamento.
Selma dos Santos, também diarista, passou pela mesma situação. Ela saiu de casa no Jaraguá, no extremo oeste, às 8h da manhã para chegar a tempo de uma consulta médica às 10h na Lapa e, depois, seguir para o trabalho no centro. Em um dia normal de trânsito, o trajeto levaria 40 minutos, mas seu ônibus também ficou preso na Anhanguera. “Moro há 20 anos em São Paulo e isso nunca tinha acontecido. Desci no meio da rodovia e fiquei 1h30 caminhando até voltar para casa”, conta. “Não tenho outro dia disponível para a consulta e nem para repor minha diária, porque não recebi. Vou precisar encaixar duas diárias em um dia”, segue. Já Maria José Mar, babá e moradora do bairro de Perus, precisaria chegar a Higienópolis, no centro de São Paulo, num percurso de três horas que faz pela manhã diariamente, mas também desistiu no meio da Anhanguera. “Ficamos duas horas no mesmo lugar. Com criança passando fome, querendo fazer xixi e muita chuva. Voltamos andando e ainda tive que pegar um táxi para chegar ao meu bairro, que também está alagado”.
Vanessa, Selma e Maria representam o terceiro seguimento que mais emprega mulheres na Grande São Paulo (14,5% do total de trabalhadoras), só atrás da administração pública (que engloba educação e saúde) e do comércio. Em comum, moram nas franjas da cidade e enfrentam longas jornadas de ônibus para trabalhar todos os dias. A rotina dura se torna, em dias como esta segunda-feira, um calvário na megalópole com alta concentração de renda nas áreas com mais ofertas de serviço, inexistente manejo ambiental e mau planejamento estrutural da mobilidade urbana paulistana.
O Centro de Gerenciamento de Emergências Climáticas (GRE-SP) da maior cidade da América Latina registrou nada menos que 132 pontos de alagamento ao longo desta segunda-feira, o que impediu a locomoção por vários quilômetros das marginais Pinheiros e Tietê —as duas principais vias de conexão das periferias com o centro expandido de São Paulo. Enquanto o trabalhador que precisou acessá-las para chegar ao emprego ficou ilhado no trânsito, como o trio de trabalhadoras domésticas, grande parte dos moradores das regiões com maior oferta de serviços na capital contornou as enchentes trabalhando em casa e não precisou lidar com congestionamentos anormais.
“Isso acontece em todos os verões porque São Paulo depende de pneus para funcionar”, explica Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. O centro expandido da capital, área da cidade entre as marginais, é onde se concentram o maior número de empregos, comércio e serviços e por isso costuma ser o destino dos trabalhadores que residem nas periferias. “Quanto mais longe a pessoa mora dessa região, mais depende de viagens longas de ônibus ou carro para chegar ao seu emprego. Logo, mais tempo anda em lugares com maior probabilidade de ter enchentes”, conclui Rolnik.
Pouco depois das 12h, o Instituto Nacional da Metereologia indicou que o volume de chuva que caiu em São Paulo entre a tarde do domingo e a manhã de segunda havia sido o maior no mês de fevereiro desde 1983. O rodízio de carros foi suspenso pela Prefeitura de São Paulo, que recomendou às pessoas que não saíssem de casa. A operação da linha 9-Esmeralda, da CPTM, foi paralisada, e nenhum ônibus conseguiu entrar ou sair nas rodoviárias do Tietê e da Barra Funda, ambas próximas à marginal Tietê. A marginal Pinheiros teve dois transbordamentos e o rio que a acompanha registrou 719,6 metros de água, um recorde para o local. “Os principais eixos de conexão de São Paulo foram construídos sobre ou junto aos rios e, historicamente, a opção foi por implantar um sistema rodoviarista de circulação sob eles. Portanto, quando tem enchente tudo entra em colapso”, explica Rolnik.
Além de seus próprios problemas, a diarista Vanessa Almeida colecionava relatos dos parentes. O marido de sua sobrinha, que trabalha como vigilante noturno em uma empresa na Barra Funda, seguia sem conseguir voltar para casa: “Ele foi trabalhar ontem e está preso até agora na guarita do prédio porque a água não abaixou”. O bairro foi um dos mais afetados no centro expandido, com relatos de alagamento na avenida Marquês de São Vicente e de garagens subterrâneas cheias de água. Entre as marginais, foram disparados alertas para os estados de emergência nos bairros do Ipiranga e do Butantã, ambos encerrados antes do fim da tarde.
No distrito de Pinheiros e no centro da cidade, não foram reportados pela Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo pontos de trânsito ao longo do dia. As avenidas Rebouças, Consolação, Faria Lima, Higienópolis e Dr. Arnaldo, vias importantes da região, registraram tráfego normal até as 18h (horário de Brasília). Com as recomendações da Prefeitura para que as pessoas evitem sair de casa, muitos contornaram as enchentes e problemas de mobilidade com o home office. “O centro expandido é onde vive predominantemente uma população de maior renda”, confirma Raquel Rolnik. “Em tese, são as pessoas menos afetadas por problemas de circulação porque dependem menos de viagens longas de ônibus ou carro”. Portanto, os moradores geograficamente beneficiados também são os com as melhores condições financeiras. “Só que é pouca gente. Dez por cento da população de toda a região metropolitana de São Paulo mora no centro expandido, enquanto o resto vem de fora”, ressalta ela.
Vanessa, Selma e Maria concordam ao não culpar só Prefeitura ou Governo pela situação da cidade. “É muita água e, apesar das várias latas de lixo espalhadas pelo bairro, ainda vejo muitas pessoas jogando lixo na rua, o que entope os bueiros e provoca as enchentes”, opina a primeira. “Mas o problema é que a gente precisa pegar a Anhanguera para trabalhar e esse trânsito nos deixa malucas. Não tem outra opção”, reclama ela. Rolnik critica o modelo rodoviarista “completamente insustentável” da cidade de São Paulo. Algo que, segundo ela, não vai ser resolvido com obras: “Se o modelo continuar, todas as melhorias ficarão obsoletas, ainda mais com as chuvas cada vez mais intensas”, diz, tendo como contexto a crise climática. A professora não vê conserto que solucione as enchentes paulistanas, ao menos que a estrutura seja revertida. “Precisamos expandir a cidade de outras formas, investir loucamente nos trilhos e mudar a forma de ocupar as várzeas dos rios e córregos”, diz. “É importantíssimo ter outras opções além de se enfiar em um ônibus na marginal para chegar ao trabalho”.
Por ora, o calvário deve durar alguns dias mais. A Defesa Civil mantém alerta de mau tempo até o próximo sábado, dia 15.
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