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“O sucesso do Liverpool se baseia no socialismo”, diz CEO do clube

Peter Moore, diretor executivo do campeão da Champions, reflete sobre as particularidades do clube e os desafios que a indústria do futebol enfrenta

Peter Moore, CEO do Liverpool FC.
Peter Moore, CEO do Liverpool FC.Jaime Villanueva
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Peter Moore (Liverpool, 1955) é uma lenda do marketing. Responsável pelo desenvolvimento dos consoles da Sega, Microsoft e Electronic Arts que transformaram a indústria dos games em um gigante mais lucrativo do que o cinema e a música juntos, sua vida chegou a um ponto em que os desafios estritamente profissionais pararam de estimulá-lo. Poderia se retirar para sua mansão na Califórnia a desfrutar de sua imensa fortuna. Mas escolheu voltar para Liverpool, a cidade onde se criou, com nada melhor a fazer, diz ele, do que ir ao estádio Anfield para ver o Liverpool. Fazia quatro décadas que ele vivia fora da Inglaterra quando foi nomeado, em 2017, diretor executivo do clube que conquistou a Champions League em maio . Dias atrás, visitou o World Football Summit de Madri, e lá onde refletiu sobre a natureza da empresa que representa, cuja expressão máxima é o time que lidera a Premier League depois de somar 24 pontos de 24 possíveis.

Pergunta. O que distingue o Liverpool na indústria do futebol?

Resposta. Como especialista em marketing, eu queria desvendar o que ele realmente significava. Dizer que o Liverpool é único não significa muito. Real Madrid e Barcelona, Borussia Dortmund e Bayern, também são especiais. Então, como resolvemos isso? Tivemos essa incrível figura histórica no Liverpool: Bill Shankly, um treinador socialista de Escócia que estabeleceu as bases. Ainda hoje, quando falamos de negócios, perguntamos: “O que faria Shankly? O que diria Bill nesta situação?”. Era um verdadeiro socialista que acreditava que o futebol consistia em trabalhar em conjunto. Nós nos reunimos no departamento de marketing e dissemos: “Vamos colocar isso em palavras”. A conclusão foi que a ideia essencial do Liverpool é que isso é o que significa mais. Mais do que ganhar ou perder. Mais do que ir ao futebol, encontrar os amigos no bar e voltar para casa.

P. Você diz que para alcançar uma dimensão mítica os clubes precisam de uma cultura do sucesso. Em que consistia exatamente a cultura incutida por Shankly?

R. Ele a definia como socialismo. Mas não em um sentido político, e sim de solidariedade. Há uma faixa na The Kop [famoso setor de arquibancada do Anfield] que diz: “A união faz a força”. Liverpool é uma cidade socialista, de tradição operária, muito unida ao porto. Já foi o porto mais movimentado do planeta. Isso mudou, mas permanece, até certo ponto, o sentido da unidade e da insularidade. As pessoas muitas vezes se consideram liverpuldianas, não necessariamente inglesas. É estranho. É, como dizem os norte-americanos, um “círculo de carroças”. Essa cultura se fortalece com um sentimento que Shankly expressou na ideia de trabalhar juntos no campo sob o lema de “passar a bola e se mover”. É muito simples: “Passe a bola e se mova para se oferecer como opção ao seu companheiro”. Há uma canção dos torcedores de 60 anos atrás que descrevia esse estilo como “poesia em movimento”. Não é exatamente o tiki-taka. Mas ocorre quando o jogo flui livremente, com contra-ataques muito rápidos. É nossa marca.

P. Parece natural que tenham escolhido Jürgen Klopp, um socialista alemão, para treinar o time.

R. Ele já é um clássico do Liverpool. Ele se inclina mais para a esquerda do que para a direita. Certa vez, Shankly disse: “Eu fui feito para o Liverpool e o Liverpool foi feito para mim”. Klopp pode dizer exatamente a mesma coisa. Entende perfeitamente os elementos socialistas que permeiam o clube e a cidade, os desafios que empolgam o que significa o clube para muita gente que não teve a oportunidade de ter nada melhor na vida do que seu amor pelo clube. Houve uma época em que o símbolo da cidade eram os Beatles. Agora é o futebol.

P. Você observou que o Fortnite, como símbolo da atração que os jogos eletrônicos exercem sobre os jovens, representa um desafio para o negócio do futebol. O que os jogos eletrônicos têm a ver com uma indústria como a do futebol, baseada nos sentimentos?

R. Ambos competimos pelo tempo de atenção dos jovens. Os ritos de passagem de muitas gerações se relacionavam com o dia em que seu pai o levava para ver um jogo. Você ia ao estádio, seu pai o apresentava ao time e não havia negociação possível. Seja qual fosse esse time, seria o seu equipe. Isso já não acontece. Não porque os jovens não se interessem pelo futebol, mas porque a oferta é mais ampla por meio da conectividade. Eles podem fazer muitas outras coisas na vida: podem navegar, podem se relacionar pelas redes sociais... Pode-se ver isso na ascensão dos videogames: uma indústria de 240 bilhões de dólares [982 bilhões de reais]. Não há tempo! Essa é a chave. Competimos pelo tempo. Competimos pelos períodos nos quais podemos permanecer atentos a algo. Isso não existia quando eu era criança: minha geração, no pós-guerra, só podia ficar obcecada com as figurinhas e com a ideia de ir ver o jogo de futebol nas tardes de domingo. O futebol hoje em dia exige horas de atenção. E a criança moderna vive atomizada: 10 minutos aqui, 15 ali... Todos os esportes enfrentam esse problema de audiência. A NFL oferece partidas de três horas e meia. Será que os torcedores do futuro vão realmente se concentrar nisso?

P. Você propõe encurtar as partidas?

R. Não. Mas devemos atrair os torcedores mais jovens. Estamos estudando novos ângulos para as câmeras, algo que te transporte para o campo de uma forma mais próxima, o conceito do true view, algo que se pareça com o jogo da Electronic Arts, o FIFA. Esse é o objetivo. Selecionar pontos de vista com câmeras que se movam em 360 graus e permitam que os espectadores de televisão interajam e se entretenham. Temos de pescar onde os peixes estão. Senão, não vamos tirá-los de seus quartos: vão preferir ver seus youtubers favoritos, ou o Twitch Dream. Vão preferir jogar Overwatch, Fortnite, FIFA, Impact Legends... Os jovens interagem com seus amigos dessa forma. Quando eu era criança, interagia jogando futebol porque não havia outra forma.

P. O Liverpool trouxe para o futebol o modelo de análise de big data do Boston Red Sox no beisebol. Explique-me, qual é o sentido de implantar uma equipe de doutores em física e matemática para escolher jogadores com base em dados, sem sequer assistir aos jogos?

R. É claro que observamos os jogadores no campo. Não podemos nos esquecer do ponto de vista analógico. Mas também existem analistas como Ian Graham, doutor em ciências do esporte, que fez o relatório que recomendou a contratação de Klopp sem ver nenhum jogo do Dortmund, porque analisou apenas as estatísticas. Jürgen foi impressionante. Mas isso não é tão estranho. Na fábrica de videogames da Electronic Arts, você encontra pessoas que jamais jogaram nem se preocuparam em observar um game: só analisam dados. Veem as tendências, veem como se pode calibrar o jogo, onde os jogadores ficam bloqueados... e passam essas informações à equipe de desenvolvimento, para que ela faça melhorias. Quando contratamos Salah, os técnicos chegaram à conclusão −analisando apenas os dados numéricos de alguns jogadores− de que ele era exatamente o cara que buscavam.

P. O que os matemáticos fazem? Programam? Criam fórmulas?

R. Não posso contar isso em uma entrevista. Mas direi que os dados validam suas convicções. Atualmente, as equipes técnicas coletam dados e os analisam durante as partidas: quilômetros percorridos, escanteios, posse de bola... Os americanos começaram com o beisebol, no qual as variáveis são muito mais limitadas do que no futebol. O cara que lança a bola deve lançá-la em uma área muito pequena, que é a strike zone. Os clubes procuram jogadores e dizem: “Precisamos de um rebatedor canhoto que tenha uma porcentagem de mais de 60% de rebatidas de lançadores canhotos em distâncias específicas...”. Isso é o moneyball. É o legado de John Henry e Mike Warner como proprietários do Liverpool e do Red Sox. Fazia 86 anos que não ganhavam as Séries Mundiais, e usando ciência e tecnologia conseguiram ganhá-las quatro vezes nos últimos 16 anos

P. Os clubes ingleses funcionam como empresas com cotação na Bolsa, e há treinadores que reclamam que os proprietários ficam com os lucros em vez de reforçar as equipes. Como vocês resolvem esse dilema?

R. Nossos proprietários não receberam nenhum centavo dos lucros. Sabem o que significa. Eu vi. Não têm dividendos. Jamais quiseram recebê-los. Nunca disseram: “Ganhamos 10, quero 50%”. Nunca ocorreu. Na verdade, o dinheiro vai na direção oposta: é gasto para capitalizar o clube. Gastamos na nova arquibancada do Anfield, na construção da nova cidade esportiva de Kirkby, no suporte à tecnologia... Esse é dinheiro que eles investem. A valorização de um clube de futebol gera lucros a longo prazo. Talvez esperem 10 ou 20 anos, e aí recebam os dividendos. Isso se chama paciência. Cuide de seu patrimônio, vá em frente, e certamente ocorrerão coisas boas. Se você compra bons jogadores, melhora o time; se melhora o time, ganha títulos, se ganha títulos, aumenta seus ganhos. É o clássico círculo virtuoso.

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