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Silvero Pereira: “Há uma revolução LGBT+ no sertão”

Ator, que interpretou Lunga, o cangaceiro queer de 'Bacurau', roda o Brasil com espetáculos em que é drag queen e oficinas de teatro para o público LGBT+

Ator cearense Silvero Pereira, que interpreta Lunga, em 'Bacurau'.
Ator cearense Silvero Pereira, que interpreta Lunga, em 'Bacurau'.Cauê Gomes (El PAÍS)
Beatriz Jucá
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Enquanto caminha pela Avenida Paulista numa tarde de sábado, o ator cearense Silvero Pereira se surpreende ao ser reconhecido. "Melhor ator de Bacurau", grita alguém que cruza em um carro. Passaram-se alguns segundos até que ele entendesse. "Isso é comigo mesmo?", se questionava, cruzando as mãos com unhas longas e arredondadas junto ao peito e arqueando as sobrancelhas finas. Ainda que tenha começado a ser abordado nas ruas desde que interpretou há dois anos uma drag queen na novela A Força do Querer, da Rede Globo, foi o personagem Lunga, o cangaceiro queer de Bacurau, que o aproximou mais do público. "Tenho um choque quando escuto que estou famoso, não me vejo neste lugar."

Silvero Pereira viveu a infância e parte da adolescência praticamente sem contato com a arte em Mombaça, uma cidade de 44.000 habitantes em pleno sertão central do Ceará. Viu uma peça de teatro pela primeira vez aos 17 anos, quando já morava em Fortaleza e estudava em uma escola técnica federal. Vinte anos depois, desfilava pelo tapete vermelho do Festival de Cannes, onde Bacurau ganhou o prêmio do júri, vestido de Gisele Almodóvar, que diz ser seu alter ego. "Foi um ato político", explica. Neste mês de setembro, Silvero entrou pela primeira vez na Câmara Municipal de Fortaleza —onde atualmente não há nenhum vereador que se identifique publicamente como LGBT+— para receber o título de cidadão fortalezense. Não escreveu discurso. "Sou de escola pública, sou pobre. Sou a caricatura do nordestino que passou fome e sede. Sou bicha, drag queen e artista. E eu acho que sou Brasil justamente por ser tudo isso", se apresentou. Silvero refere-se a si mesmo ou a seus personagens ora no masculino, ora no feminino. Gosta de romper imagens encaixotadas, inclusive a sua própria. Momentos antes de ser entrevistado para o casting de Bacurau, cortou os longos cabelos que o caracterizavam há anos. Apresentou-se de cara limpa aos diretores Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. "Foi uma maneira de dizer: vamos enxergar o Silvero de um lugar diferente", explica.

Pergunta. Lunga conseguiu te colocar neste lugar diferente que você desejava?

Resposta. Sim. Originalmente, no roteiro, Lunga seria uma mulher trans, mas a gente decidiu não fazer isso por respeitar a importância da representatividade. Eu falei [aos diretores]: se vocês quiserem que seja de acordo com o roteiro original, vão ter que procurar uma atriz trans. Mas se me querem no filme, podemos buscar outras maneiras de realizar. E aí Lunga veio queer. Não abrimos mão desta identidade nas unhas, no olho, nas tatuagens, no que eu sinto por dentro. Mas isso não está no primeiro plano porque a sexualidade de Lunga não é o principal argumento para a existência dessa personagem. O que mais interessa é algo que está no filme inteiro. É que a comunidade não se importa se uma mulher trans vive com dois homens, se a médica vive com outra mulher, que por sua vez se relaciona com um michê. A comunidade não se incomoda com absolutamente nada, então porque os espectadores iriam se incomodar com a sexualidade de Lunga?

P. Bacurau te levou pro Festival de Cannes e você decidiu aparecer montada outra vez. Por quê?

R. Se eu tivesse atravessado aquele red carpet de pinguim, seria só um ator qualquer. Eu já não sou conhecido lá fora, então não faria a menor diferença. Decidi fazer com que olhassem pra mim. E fui daquele jeito, inspirada em Gisele Almodóvar, que está na minha vida e é um alter ego do Silvero, com vestido e joias de estilistas e designers cearenses. Isso faria com que as pessoas olhassem pra mim no meio daquele turbilhão que é o Festival de Cannes, com tanta gente incrível —como Leonardo DiCaprio, Penélope Cruz e Pedro Almodóvar— atravessando o tapete vermelho. Eu estive ali, de Gisele, com um vestido que foi eleito um dos melhores e uma foto no perfil oficial do festival no Instagram. Foi um ato político.

P. Os teus espetáculos trazem muito a temática LGBT+. Quando você começou a se reconhecer dentro deste universo?

R. No início dos anos 90, falar sobre ser gay, ainda mais no interior do Ceará, era muito cruel. Você tinha que não falar sobre isso, que era considerado uma doença na minha cabeça, porque era o que as pessoas diziam. E eu sempre tive muito medo de pegar essa doença, mas desde pequeno eu sabia que era diferente, que eu não me encaixava no que as pessoas queriam que eu fosse. (...) Eu fui morar em Fortaleza com tudo ainda muito enrustido, temeroso dessas coisas todas, mas foi no teatro que eu fui descobrindo que isso era possível. O teatro era este lugar mais permissivo, onde as pessoas podiam ser quem elas quisessem.

"Ser gay era uma doença na minha cabeça, porque era o que as pessoas diziam. E eu sempre tive muito medo de pegar essa doença, mas desde pequeno eu sabia que era diferente"

P. E quando decidiu levar essa temática para o centro da sua produção nos palcos?

R. Já fazendo teatro dentro de grupos profissionais, eu tinha muitas colegas que eram transformistas nas boates de Fortaleza, e elas sofriam muito preconceito porque [a cena do] teatro dizia que elas não eram artistas. Como se transformismo fosse uma arte menor [mesmo nesse ambiente mais permissivo]. Isso me incomodava profundamente. Nessa época, eu tive contato com um conto do Caio Fernando Abreu que se chama A Dama da Noite [nele, a personagem principal se sente à margem do mundo que a rodeia], e ele me inspirou a começar uma pesquisa. Passei dois anos, entre 2000 e 2002, indo para as boates, conversando com travestis e transformistas. E aí decidi montar uma peça e levar para dentro do teatro essa discussão e talvez tentar quebrar esse preconceito de que o que tem dentro da boate não é arte, porque eu ficava extremamente emocionado com o que eu via ali. Montei a primeira peça, que se chama Uma Flor de Dama, em 2005.

P. Daí veio o coletivo artístico As Travestidas?

R. A minha ideia era fazer esse trabalho e seguir minha carreira, mas ele começou a ficar significativo no Ceará e ser visto como uma bandeira. Fui inserido muito naturalmente no movimento e vendo a importância da arte e do movimento social estarem juntos. As pessoas que estão comigo hoje n'As Travestidas foram se aproximando aos poucos. A gente criou o coletivo em 2008 [O grupo tem nove integrantes e pelo menos sete espetáculos no repertório]. Hoje, tudo o que eu via de preconceito no Ceará naquela época está muito diferente. Temos travestis, transexuais e drag queens fazendo faculdade de artes cênicas e cursos técnicos. Estamos dizendo 'foda-se o que você pensa, eu vou continuar fazendo teatro, boate e a minha arte em todo e qualquer lugar'. Hoje é possível falar isso em Fortaleza. Foi dentro desse coletivo que muitas se reconheceram como travestis, transexuais, e hoje têm suas carteiras de identidade com o nome social.

P. Você também passou por esse processo? Como você se identifica hoje?

R. Eu não me identifico em nenhum lugar, na verdade. N'As Travestidas, durante algum tempo, eu pensei: 'será que sou travesti? Será que sou transexual? Será que sou drag queen?' E ali fui descobrindo que não sou nenhuma dessas coisas. Eu gosto de estar vestido de mulher, de homem. Gosto da minha imagem Cis, travesti e drag queen. Eu não gosto dos encaixotados, mas eu sei da importância das letrinhas [do LGBTQ+] porque a nossa sociedade precisa que as coisas sejam muito claras para reconhecê-las, então a gente vai continuar nomeando para que as pessoas compreendam.

P. Nas últimas semanas, você fez um giro sozinho por várias cidades do interior do Ceará com espetáculos. Por que você decidiu fazer isso neste momento em que está sob os holofotes por Bacurau?

R. Eu sou uma pessoa que veio do interior, de uma família pobre e que conseguiu chegar neste lugar de visibilidade. É muito delicado para as pessoas que moram no interior do Ceará terem acesso a figuras assim. Então eu decidi levar arte pra onde eu conseguisse levar. Esse trabalho não tem patrocínio público, não tem financiamento nenhum, é totalmente independente. Eu peguei o meu carro, coloquei o cenário dentro e passei a conversar com amigos de várias cidades pra mobilizar isso através da venda de ingressos muito populares. O objetivo nunca foi ganhar dinheiro, mas não é porque estou indo para o interior que o espetáculo tem que ser gratuito, até porque o artista é muito colocado neste lugar de vagabundo, de que mama nas tetas do Governo, então a gente tem que provar que é um trabalhador.

"Temos travestis, transexuais e drag queens fazendo faculdade de artes cênicas e cursos técnicos. Estamos dizendo 'foda-se o que você pensa, eu vou continuar fazendo teatro, boate e a minha arte em todo e qualquer lugar'"

P. Você fala de um ambiente muito conservador no interior do Ceará durante a sua infância. Os pequenos grupos de teatro que existem nestas cidades são hoje espaços de acolhimento para a comunidade LGBT+, neste sentido?

R. Foi muito aberto o lugar dos LGBT+ no interior, e considero isso um resultado das redes sociais porque ali há exemplos sem filtro. Durante a minha infância e a minha adolescência, o que chegava até mim era o que aparecia na televisão, que é um lugar de filtro. A gente tem vários casos de artistas homossexuais que nunca se assumiram e pintam de hétero na TV. As redes sociais permitiram que pessoas sem esses filtros falassem, e essas identidades foram provocando identificações. As pessoas olham e dizem: “Eu sou assim, sou gorda mesmo, sou negra, sou gay”. Então isso tem feito uma revolução LGBT+ no sertão, um tsunami onde as pessoas estão se mostrando quem elas são, sem medo, porque sabem que existem outras pessoas dizendo: “Vamos, gente. Vocês não estão sozinhos”.

Silvero Pereira, durante passeio na Avenida Paulista.
Silvero Pereira, durante passeio na Avenida Paulista.Cauê Gomes (El PAÍS)

P. Chegou um ponto que a própria televisão não tinha mais como ignorar essa diversidade. Você foi para a TV Globo fazer novela. O que estar nesse espaço trouxe para você?

R. As pessoas passaram a entender quem é o Silvero, quem é esse artista. A televisão abriu o meu discurso, me fez chegar em pessoas que eu não chegaria só com o teatro. É um espaço em que eu consigo fazer arte e social mesmo sabendo que estou em um território de entretenimento, indústria e comércio. Consegui dizer o que penso na novela, no Criança Esperança e em todos os programas que participei.

P. O atual Governo tem um discurso contrário ao público LGBT+. Essa postura é algo que te inquieta, que interfere na tua produção?

R. A arte é um espaço extremamente importante e talvez a arma mais poderosa que a gente tem pra combater toda e qualquer forma de repressão, ditadura ou retrocesso. O atual Governo tem feito ataques muito absurdos com relação aos direitos adquiridos até agora, que foram batalhas muito grandes. Corpos foram empilhados pra que a gente tenha hoje os direitos que temos, e acho que a gente tem que respeitar essas mortes, essas pessoas que deram a vida pra que a gente esteja aqui hoje. Nós, como artistas, pagamos um preço muito pequeno comparado às gerações passadas. Eu sei que sempre que abro a boca pra falar alguma coisa, eu posso virar alvo de uma violência desse Governo. Mas se eu não fizer isso, gerações futuras não pagarão preços menores que o meu.

P. As pessoas estão olhando para você, como você queria. Mas como Silvero se vê depois de vivenciar tudo isso?

R. Eu me vejo sempre como uma figura muito só, muito solitária. Sou de religião de matriz africana e, quando digo isso, digo também que não sou de religião nenhuma. Frequento a umbanda, o candomblé, a igreja católica, o espiritismo. Recentemente, estive no Ifá, que é uma das matrizes que falam deste lugar de não intermediário. Você conversa diretamente com o universo e a natureza, sem precisar de orixás intermediários. E a última definição que tenho sobre a minha personalidade é que sou uma personalidade escrava. Neste momento, eu me sinto muito servidor da minha comunidade, do meu país, e muito solitário.

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