Caio Fernando Abreu é jovem como sempre, relevante como nunca
Escritor foi tudo que não se podia ser em sua época, e é saudado por novas gerações por sua coragem de ser. Cia das Letras lança conjunto de contos do autor, que completaria 70 anos nesta quarta-feira
Caio Fernando Abreu foi repetidamente o que não se podia ser. Gay e crítico da ditadura nos anos setenta e oitenta. Doente de Aids nos anos noventa. Teve outros traços, e esses mencionados não são nem equiparáveis entre si nem estão unidos por um fio condutor, mas compartilham uma ideia central. Uma ideia que só foi ganhando força desde 1996, quando Caio morreu aos 47 anos e começou a ser interpretado e reinterpretado por várias gerações de jovens – quase sempre jovens – que se debruçaram sobre seus textos uma e outra vez e que lhe foram buscando um lugar entre nomes cada vez maiores da literatura brasileira do século XX. A ideia de que Caio Fernando Abreu foi o que foi, publicamente, obstinadamente, ostentosamente, mesmo que a sociedade não o deixasse ser assim.
Abreu voltou à atualidade nos últimos dias. Completam-se 70 anos de seu nascimento, em Santiago (Rio Grande do Sul), a chamada “terra dos poetas”. E a Companhia das Letras publica um compêndio de todos os seus contos, o formato em que Abreu mais brilhou e com o qual mais contribuiu à literatura brasileira. E nesse tempo a cultura geral evoluiu. Os mundos LGBTQI, o pop e crítico em relação à autoridade que ele representou já não são tão underground nem contraculturais como antes; ao mesmo tempo, o mundo vive obcecado com a individualidade e a identidade – e sobre isso a obra de Caio também é um manancial. Por isso, este é um momento tão fascinante e perigoso para falar da relevância atual deste homem magro, de cabelo escuro e olhar de quem sempre está pensando em algo, às vezes com óculos, jovem – quase sempre jovem; o qual em tempos de punk foi terno, queer em mundos militares e doente em épocas de euforia; o colunista, cronista, dramaturgo, contista, romancista e, cada dia mais, tesouro nacional brasileiro Caio Fernando Abreu.
Primeiro o apropriado. Se em sua época seus maneirismos pop confundiram a crítica e a fizeram pensar que estava ante um artista menor, hoje se entende a envergadura política de suas obras. “Devido a todas as mudanças políticas que vivemos no Brasil, sobretudo após as passeatas de 2013, com mais e mais vozes no debate e com toda uma literatura que tem repensado a ditadura brasileira, um Caio mais interessante talvez esteja emergindo”, afirma Schneider Carpeggiani, editor da revista cultural Pernambuco e da editora Cesárea. “Estamos olhando para a relação da sua literatura com a ditadura, um trauma de geração que percorre seus livros até quando ele não é explicitado. Um trauma que é escrito algumas vezes por subtração. Vivemos um momento em que a literatura brasileira, por pura contingência, repensa sua relação com a ditadura. E essa política da época também nos faz olhar melhor, aceitar melhor, as nuances queer da sua literatura, as nuances bicha-louca e irônica da sua escrita”.
Também é analisado agora, anos depois de sua morte em decorrência da aids, o impacto que ele teve na cultura brasileira. Não só na literatura, mas também na vida de muitos de seus leitores. “Foi o primeiro escritor brasileiro que escreveu sobre o HIV”, recorda Ramon Nunes Mello, autor do livro de poemas Tente Entender O Que Tento Dizer, sobre sua experiência com o vírus. O título vem de uma crônica de Caio. “Descobrir que você tem HIV é algo muito difícil. O que descobri é que a linguagem é o verdadeiro vírus: falar da questão publicamente sem pudor é muito difícil. E busquei textos e o encontrei. Ele, que passou pela mesma coisa, mas quando não existia nada para se apoiar. Foi um pioneiro e ajudou muitos no processo de adaptação.”
Esse é outro aspecto que traz Caio Abreu de sua época à nossa com tanta facilidade. Sua capacidade de falar de si mesmo e deixar que sua biografia influísse em sua escrita, como faz tanta gente nas redes sociais. “Tem essa questão da autoficção; sua biografia permeia toda a sua obra”, afirma Nunes Mello. “E as crônicas em que descreve o Brasil, embora as tenha escrito nos anos oitenta, parecem escritas em 2018. Ele viveu em várias cidades, e os contos retratam essas viagens. Não tinha dinheiro. Mudava de casa, ganhava pouco. Refletia também sua força de espírito: ‘Vou viver de escrever, vou combater a ditadura, vou enfrentar a aids.”
“Caio é muito visceral, fala da angústia, do medo, do desespero”, afirma a editora Alice Sant’Anna, responsável pela publicação de seus contos na Companhia das Letras. “Ao longo dos anos, essa característica o marcou entre os leitores jovens. O contexto mudou, mas não a sua forma de falar a partir da contracultura. Ele continua sendo muito atual.”
E é aqui que se chega ao perigo. Sua adequação à era da identidade e das redes sociais pode solapar o lado complexo e obscuro de sua obra. “Recentemente, as redes sociais fizeram emergir um Caio Fernando Abreu mais fofinho, adocicado e típico das demandas desse tipo de plataforma – o que aconteceu também com nomes como Fernando Pessoa, Drummond, Clarice, autores que passam a impressão de estabelecer um diálogo direto com nosso cotidiano”, lamenta Carpeggiani. “Essa impressão acabou gerando até uma série de ‘fakes’ de Caio. Esses ‘fakes’ que trazem textos de autoajuda dizem muito da nossa necessidade em querer instrumentalizar tudo. Inclusive a literatura”.
Essa imagem distancia o verdadeiro conteúdo dos contos de Abreu. “Nos anos setenta, ele fez parte de uma geração que estava reformulando o formato do conto brasileiro, inserindo novas questões, novas formas de narrar Ele começou a carreira sob estigma do renovador”, resume Carpeggiani. “Nos anos oitenta, ele ganhava uma aura mais dark, que descrevia a ressaca do desbunde e a traumática transição democrática. Isso está presente em seu grande livro de contos da época, Morangos Mofados. Em seguida, sua (pioneira) relação pública com a aids se tornou essencial para guiar sua leitura, sobretudo com a repercussão da crônica Primeira Carta Para Além do Muro, na qual revela a doença”.
É justamente essa carta que contém a melhor prova dessa ideia que resta hoje de Caio de Abreu. A que o tempo não pôde mudar, assim como a sociedade tampouco o mudou. A que começa assim: “Olha, estou escrevendo só pra dizer que se você tivesse telefonado hoje eu ia dizer tanta, mas tanta coisa. Talvez mesmo conseguisse dizer tudo aquilo que escondo desde o começo, um pouco por timidez, por vergonha, por falta de oportunidade, mas principalmente porque todos me dizem sempre que sou demais precipitado, que coloco em palavras todo meu processo mental (processo mental: é exatamente assim que eles dizem, e eu acho engraçado) e que isso assusta as pessoas, e que é preciso disfarçar, jogar, esconder, mentir. Eu não queria que fosse assim. Eu queria que tudo fosse muito mais limpo e muito mais claro, mas eles não me deixam, você não me deixa.”
Por onde começar com Caio F. Abreu
"Caio foi um autor que teve resultados exemplares em todos os gêneros que exerceu, da crônica ao romance. Recomendo Onde andará Dulce Veiga, grande romance da virada entre as décadas de 80 e 90, que lança mão de uma linguagem camp para falar da barra-pesada de uma geração frustrada entre os difíceis anos de redemocratização, tanto no Brasil quanto na América Latina, e o pânico da AIDS. A busca inútil pela reclusa cantora Dulce Veiga só ressalta o desejo de uma geração por qualquer símbolo, ainda que vazio de significado", explica Schneider Carpeggiani. "A busca por Dulce Veiga, em alguns momentos, me lembra a procura dos poetas mexicanos por Cesárea Tinajero, em Detetives selvagens, de Roberto Bolaño. Cesárea, assim como Dulce Veiga, outro signo vazio como salvação. Outro cartão-postal enviado do deserto. E para o deserto".
Continua Carpeggiani: "Seu livro de contos Morangos mofados é um dos mais importantes da literatura brasileira da segunda metade do século 20. Por muito tempo, o caráter pop desses textos fez com que alguns críticos não o levassem muito a sério como o exímio narrador que é. E, ainda em se tratando do Caio contista, no livro Os dragões não conhecem o paraíso está um dos seus contos mais impressionantes, Linda, uma história horrível, que o equipara com os grandes da prosa contemporânea. Em Linda, uma história horrível há um reencontro de mãe e filho em que tudo acontece e nada acontece, tudo é dito e nada é dito. Medo, perdas e AIDS revelados por elipses, nos deixando na contramão".
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