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A ‘Amazônia fora da lei’ de Bolsonaro

Incêndios são habituais nesta época, mas flexibilização dos controles ambientais no atual Governo acelerou a perda de vegetação. Neste sábado, aviões militares começaram a combater o fogo

Trecho desmatado da Amazônia no Acre, em flagrante feito por sobrevoo na região neste sábado.
Trecho desmatado da Amazônia no Acre, em flagrante feito por sobrevoo na região neste sábado.Marcio Pimenta (El País/Pulitzer Center)

Os 12 milhões de habitantes de São Paulo sempre conviveram com o mau tempo, mas na segunda-feira passada as nuvens escureceram o céu e a noite caiu às três horas da tarde. Pouco depois, os paulistanos souberam que, além da chuva, havia fumaça. O suficiente para causar um efeito óptico que deixou o céu quase negro. Fumaça da Amazônia. Dos incêndios que se estendem por áreas de floresta de cinco Estados brasileiros e que, de acordo com os especialistas e ambientalistas, são o resultado de um desmatamento que se acelera sob o Governo de Jair Bolsonaro. E com seu respaldo, ainda que indireto: o presidente flexibilizou os controles ambientais, como havia prometido, e pretende permitir a mineração em terras indígenas. Alguns membros de seu Gabinete, como o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, questionam o aquecimento global.

A 3.000 quilômetros de distância em direção ao norte, em Rondônia, o território indígena dos Uru-eu-Wau-Wau queima. Nos últimos meses, sofreu sucessivas invasões que causaram desmatamento e, na sequência, incêndios para abrir o terreno. "Estamos denunciando desde janeiro", conta Ivaneide Bandeira, da ONG Kanindé Associação de Defesa Etnoambiental. A fumaça que sai da reserva indígena, em teoria protegida pelo Governo Federal, viaja 400 quilômetros e chega com força à capital Porto Velho, onde mora a ativista. Em imagens divulgadas nas redes sociais se vê uma espessa névoa que faz com que mal se possa respirar. Os hospitais estão abarrotados. "Em meu bairro a sensação é de que o mundo está caindo sobre nós", conta por telefone.

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Os incêndios são comuns nessa época de seca na região e nem sempre são ilegais. Os dados indicam, entretanto, que as autoridades perderam o controle sobre a situação e que o país vive a maior onda de incêndios dos últimos cinco anos, de acordo com o Instituto Nacional de Investigação Espacial (INPE). Entre 1 de janeiro e 22 de agosto foram registrados 76.720 focos de incêndios, 85% a mais do que no mesmo período de 2018 (quando houve 41.400). Os satélites mostram que mais de 80% do território devorado pelas chamas está na Amazônia.

Os mesmos satélites utilizados pelo INPE indicam que o desmatamento aumentou 34% em maio, 88% em junho e 212% em julho em relação aos mesmos meses de 2018. Bolsonaro criticou a instituição e seus números em um encontro com jornalistas. O físico Ricardo Galvão, que comandava o INPE, contradisse publicamente o presidente e foi exonerado. Desde estão, a Amazônia está na mira internacional.

"O Brasil era um vilão ambiental. Mas desde que começamos a reduzir o desmatamento, nos transformamos em líderes na agenda ambiental global. Agora voltamos a uma situação até mesmo pior do que a que tínhamos na década de oitenta", diz a ex-ministra e ex-candidata presidencial Marina Silva. Ela agora elabora com outros ex-ministros e membros da sociedade civil uma carta ao Congresso pedindo que sejam suspensos os projetos para afrouxar as leis ambientais e a criação de uma comissão para debater políticas que combatam a crise ambiental. "Infelizmente, o que está acontecendo se deve às políticas desastrosas e irresponsáveis do Governo de Bolsonaro, que não tem competência para lidar com essa situação", afirma.

"Nem todos os incêndios estão relacionados ao desmatamento, mas os satélites indicam um aumento substancial dos fenômenos. São consequência basicamente das políticas do novo Governo, que incentiva a ocupação ilegal de terras na Amazônia e, consequentemente, a ocorrência dos incêndios ilegais", diz Paulo Artaxo, professor de Física da Universidade de São Paulo.

O especialista, que fez parte do Painel Governamental da Mudança Climática das Nações Unidas, diz que ainda é preciso fazer uma comparação mais detalhada entre as áreas desmatadas e as destruídas pelo fogo. Mas os especialistas dão como certo de que os aumentos dos dois fenômenos estão relacionados. Um levantamento do site InfoAmazonia, com base em dados públicos, indica que entre os dez municípios com mais incêndios, sete estão entre os que também mais sofreram com desmatamento anterior. Um relatório do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) chega à mesma conclusão.

Fonte: Programa de Monitoramento de Queimadas e Terra Brasilis - DETER - INPE. Publicado originalmente em infoamazonia.org.
Fonte: Programa de Monitoramento de Queimadas e Terra Brasilis - DETER - INPE. Publicado originalmente em infoamazonia.org.

As principais instituições do Ministério do Meio Ambiente são o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), responsável pela fiscalização e preservação de áreas naturais, e o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), órgão responsável pela formação de áreas de conservação. Bolsonaro colocou em andamento uma série de mudanças que tiram responsabilidades desses órgãos que, como denunciam ambientalistas e uma inédita aliança de oito ex-ministros, desmantelam a política ambiental brasileira. "Sempre houve desmatamento, mas nunca incentivado pelas ações do próprio ministro do Meio Ambiente, que desmantelou a governança ambiental", diz Marina Silva.

Cortes do Orçamento

Os cortes orçamentários também tiveram seu efeito. A prevenção e o controle de incêndios perderam 38,4% de seu Orçamento com o contingenciamento deste ano. "Os cortes não começaram agora, mas se intensificaram com Bolsonaro. Foram desmontados programas como o PrevFogo, do Ibama. Era um sistema desenhado para combater grandes incêndios em reservas do Instituto Chico Mendes ou incêndios florestais sem controle, além de coordenar as atividades da Polícia Federal junto com o Ministério Público para coibir as queimadas ilegais. Foi reduzido ao mínimo", explica o físico Paulo Artaxo. A ativista Ivaneide Bandeira ilustra as consequências: "Nas proximidades de Porto Velho vejo bombeiros controlando os incêndios. Mas os órgãos não possuem meios suficientes para deter a invasão do território indígena", conta. "Os funcionários têm compromisso com a defesa do Meio Ambiente. Mas eles morrem de medo de fazer as coisas, de serem removidos. O problema vem de cima, eles não têm o respaldo de Brasília", acrescenta.

Parte dos focos ocorre em áreas privadas que se expandem em direção à reserva natural que todas as propriedades têm obrigação de manter. Outra parte ocorre em áreas públicas protegidas e em territórios indígenas protegidos que sempre estiveram ameaçados por invasores, madeireiros e fazendeiros que querem invadir a terra. Há áreas ricas em minerais como o ouro e árvores centenárias em risco de extinção. E, principalmente, um espaço enorme que pode se transformar em pasto para o gado. Em todos esses casos é preciso abrir o terreno. E isso é sempre feito com fogo.

Ivar Busatto é coordenador da ONG Operação Amazônia Nativa no Mato Grosso, um dos territórios que mais sofrem com a seca —não chove há 90 dias— e que foram atingidos pelos incêndios. Sua organização contabilizou 24 focos em nove comunidades indígenas. "Moro aqui há 48 anos e sempre existiu fogo", diz. A seca é severa, com previsão de chuva somente no final de setembro. Nesse período é proibido por lei utilizar o fogo para qualquer atividade. "Os índios tinham um jeito de controlar esse fogo e de utilizá-lo de forma mais racional. O fogo era manejado o ano todo. Com as novas ocupações e a supressão da vegetação original, é preciso ter um cuidado diferente de 60 anos atrás", explica Busatto.

Seu Estado vive do negócio agrícola e produz parte da soja e do milho que o país exporta. O fogo serve para limpar os campos e para que os fazendeiros se expandam, legal e ilegalmente em direção a territórios protegidos. Parte da vegetação nativa já não existe. Mas agora, quando todos os olhos do mundo estão voltados às matas do Brasil, até o agronegócio se preocupa com as ações ambientais. A pressão internacional pode resultar em medidas drásticas, como sanções ao comércio brasileiro ou até a não ratificação do acordo entre o Mercosul e a União Europeia, como sugeriu o presidente francês Emmanuel Macron, na última quinta-feira, e o presidente do Conselho Europeu, neste sábado.

Enquanto o G7, grupo dos países mais ricos do mundo, se reúne em Biarritz e coloca entre suas pautas a Amazônia brasileira, o Governo Bolsonaro, que chegou a sugerir que ONGs eram suspeitas da onda de incêndio, toma suas primeiras ações concretas para conter o fogo que devasta a floresta há semanas. "Mais de 43.000 militares das Forças Armadas reforçam ações de combate a incêndios na Amazônia", comemorou o presidente neste sábado, no Twitter. Ele compartilhou também imagens de aeronaves militares despejando água sobre as queimadas, nas primeiras missões após a decretação, nesta sexta, da chamada "GLO Ambiental", como ficou conhecida a Garantia da Lei e da Ordem voltada para a floresta.

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