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Marina Silva: “Voltamos a uma situação ambiental pior do que a da década de 80”

Ex-ministra do Meio Ambiente e ex-candidata à Presidência participa de articulação que pedirá ao Congresso que faça uma comissão especial para debater políticas contra a crise ambiental

Marina Silva discursa em conferência na Universidade de Bogotá, nesta quinta.
Marina Silva discursa em conferência na Universidade de Bogotá, nesta quinta.JUAN BARRETO (AFP)

Marina Silva (Rio Branco, 1958) vem denunciando desde o início do Governo Jair Bolsonaro (PSL) o que considera ser um desmonte das políticas ambientais e o desmantelamento de instituições como o IBAMA e o ICMBio. Ambientalista, ex-ministra do Meio Ambiente (2003-2008) e candidata à Presidência da República nas últimas três eleições, em maio se reuniu em uma inédita frente com outros sete colegas que ocuparam a pasta antes de Ricardo Salles. Diante da crise política internacional desatada pelo aumento dos incêndios na Amazônia, que ela e outros especialistas creditam ao aumento de um desmatamento respaldado pela retórica e uma política permissiva do Governo, vem exigindo a demissão de Salles e aumentando o tom contra Bolsonaro.Também vem participando de um articulação com membros da sociedade civil para pedir ao Congresso que suspenda a tramitação de leis contra o Meio Ambiente e crie uma comissão externa que retome o debate sobre uma agenda sustentável.

Pergunta. Como a senhora vem acompanhando a crise ambiental na Amazônia? Por que diz que o Governo é o principal culpado?

Resposta. Infelizmente, o que está acontecendo é em função das políticas completamente desastrosas e desastradas e irresponsáveis do governo Jair Bolsonaro. Desde a campanha ele vem fazendo uma verdadeira invocação ao descontrole do desmatamento. Por isso houve tanta invasão de terra publica. Foi quando ele começou a criticar a fiscalização e o que chama de indústria das multas, quando mandou projeto de lei dizendo que não precisava de licença ambiental para desmatar... Quando Salles enfraqueceu o Serviço Florestal e o transferiu para o Ministério da Agricultura, quando não deu suporte para o IBAMA e acabou com as políticas de controle, de fiscalização e de combate ao desmatamento... Em dez anos reduzimos o desmatamento em 83%. Eles tiraram o gênio da garrafa e não têm competência para lidar com essa situação.

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P. O que fazer então?

R. Estou sugerindo com ex-ministros do Meio Ambiente, com o presidente da OAB e pessoas de renome e alta credibilidade assinemos um documento pedindo ao Congresso que suspenda todas as leis contra o Meio Ambiente que estão em tramitação e que faça uma comissão especial para debater políticas para enfrentar a crise ambiental. Uma comissão de alto nível, com comunidades locais, ambientalistas, gestores, o agronegócio que faz as coisas direito, a OAB... O Brasil era vilão ambiental. Desde que começamos a ter políticas que respondiam ao desafio de reduzir desmatamento, nos tornamos líderes na agenda ambiental global. Agora voltamos a uma situação incomparável, pior do que se tinha na década de 80.

P. Por que pior?

R. Nunca houve esse clamor internacional. Sempre houve desmatamento, mas nunca incentivado pelas ações do próprio ministro do Meio Ambiente, que desmontou a governança ambiental.

Todo nosso esforço é para que Bolsonaro volte atrás em suas políticas nefastas não só para o Meio Ambiente como também para o setor produtivo e para nossos interesses comerciais e diplomáticos. Precisamos voltar a ter políticas públicas estruturantes envolvendo todos os ministérios, de forma transversal. Com apoio às práticas sustentáveis e com combate às práticas ilegais, sem criar expectativas de impunidade. Precisamos fortalecer os órgãos de gestão ambiental e proteger seus agentes, hoje completamente fragilizados e agredidos. É isso o que faz o desmatamento cair. Quando você sabe que vai ser pego, as pessoas pensam duas vezes. O poder público não pode ir além do principio da legalidade, da impessoalidade, da probidade e da transparência.

P. A Amazônia sempre foi vista como uma questão de soberania nacional e o Brasil sempre demandou protagonismo em proteção e na gestão de sua biodiversidade. Hoje o Governo e os militares reclamam de ingerência estrangeira, sobretudo europeia, em questões relativas a Amazônia. Isso ocorre?

R. A Amazônia é um dos biomas mais importantes do planeta. Os maiores interessados em sua proteção são os países que soberanamente que detêm a Amazônia. Por isso, eu fiz de tudo para que mostrássemos para o mundo que, com políticas públicas eficientes, éramos capazes de controlar a situação de risco e evitar desequilibro na emissão de CO2. Agora, o que nós temos hoje, com certeza, é a falta de gerência do Governo brasileiro. Essa acusação de ingerência é porque há uma situação de falta de gerência que deixa o mundo preocupado. É a floresta mais importante do planeta, responsável por 17 bilhões de toneladas por dia de água que são importantes para manter o equilíbrio dos oceanos e o regime de chuvas, sem o qual não tem agronegócio nem nada. Então, somos duplamente interessados. E quanto mais temos governança interna, menos temos que ficar preocupado com qualquer crítica. Durante minha gestão, nunca vi ninguém dando declaração de que precisava discutir a questão da Amazônia porque a situação estava fora do controle. Porque nós estávamos no controle. E agora é fundamental que o Congresso mostre que podemos voltar estar com o controle, sim.

P. Nos Estados Unidos setores do partido democrata debatem a necessidade de um Green New Deal, isto é, um conjunto de medidas para impulsionar a economia ao mesmo tempo que se faz a transição para um modelo sustentável que combata o aquecimento global. O Brasil precisa de um Green New Deal também?

R. Países que são grandes emissores precisam fazer uma transição para uma economia de baixo carbono. O Brasil tem um programa com uma agenda até 2030 para a indústria, para o uso da terra e todos os setores. Infelizmente, os Governos Dilma e Temer desaceleraram esse processo. E com Bolsonaro o programa de agricultura de baixo carbono foi totalmente abandonado. Já temos estoque de terra, incluindo áreas hoje degradadas, que poderiam dobrar a produção sem precisar derrubar floresta.

P. O Governo vem sublinhando a necessidade de que a questão ambiental não seja mais importante que a situação de miséria e desemprego que muitos vivem na região. Como alinhar a defesa do Meio Ambiente com as necessidades mais urgentes da população local?

R. Não é destruindo a Amazônia que vai resolver o problema econômico do Brasil. Pelo contrário, só vai gerar mais desemprego. Se você transforma o Sul, o Sudeste e o Centro-oeste em deserto, quero ver como vamos ter qualquer tipo de economia. A Amazônia precisa ser ocupada com baixa densidade demográfica, com uma atividade econômica diversificada e com investimentos no que é sustentável, no uso da biodiversidade, em produtos agroflorestais...  Investimentos capazes de ativar uma economia que dê prosperidade para Amazônia.

P. Mas o sustentável é, na maioria das vezes, caro. Mais caro que abrir pasto e criar gado, por exemplo. Não é preciso apoio financeiro do Governo?

R. Precisa de políticas públicas e recursos. Tivemos um plano de desenvolvimento sustentável na Amazônia para não precisar repetir o que aconteceu com a Mata Atlântica. O plano contemplava o combate às desigualdades sociais, o fortalecimento de uma agenda de combate aos crimes ambientais e um desenvolvimento a partir de um ordenamento territorial. Fizemos o plano ao longo de dois anos junto com 18 ministérios. Ele acabou esquecido, mas temos ferramentas para agir, criando meios para a população viver. É uma transição que também inclui o estímulo à pesquisa científica, ao turismo, à biotecnologia... São muitas modalidades e que podem alavancar uma dinâmica de vida diferente da que aconteceu na Mata Atlântica. Vejo essa crise provocada como um retorno ao início do século XX. Há inúmeras potencialidades para o desenvolvimento do Brasil e da Amazônia sem precisar fazer esse desmonte e essa destruição do Governo.

P. Isso é viável hoje? O Brasil parece não possuir dinheiro em caixa para alavancar esses investimentos.

R. Uma parte você cumprindo a lei. E quem cumpre a lei e mantém a reserva legal em sua fazenda tem retorno enorme, incomparavelmente maior do que aqueles que não cumprem com a reserva legal. Se você faz o certo, não precisa de recursos. Mas aí vem o Governo dá anistia e regulariza os ilegais, como fizeram Dilma e Temer. E agora Bolsonaro quer usar o dinheiro da Noruega e da Alemanha para legalizar terra de quem invadiu e desmatou ilegalmente [os dois países suspenderam os repasses ao Fundo Amazônia]. Se na reforma da Previdência você mantém a isenção de 80 bilhões de reais para o agronegócio e não exige nenhuma contrapartida na agenda da sustentabilidade, é um dinheiro do contribuinte que, além de ir para um setor próspero, vai para atividades que na maioria das vezes geram prejuízos ambientais e para eles próprios. Nem todo agronegócio brasileiro concorda com essas políticas. Estamos em contato com esse setor para que nos ajudem no debate e mostrem que, aqueles que fazem certo e possuem conhecimentos técnicos, administrativos e gerenciais, conseguem altas taxas de retorno. Precisamos retomar a agenda de proteção ambiental e de abertura de unidades de conservação, destruída nesses 8 meses de Governo.

P. Outros países devem se engajar mais na preservação da Amazônia, inclusive financeiramente?

R. Para alavancar o desenvolvimento sustentável, é preciso uma espécie de Plano Marshall, como ocorreu depois da Segunda Guerra. Mas me refiro não só a Amazônia, mas ao mundo inteiro. São investimentos para alavancar uma atividade econômica que ainda teve tempo de maturação nem suporte técnico e de infraestrutura. É uma transição, ninguém substitui da noite para o dia um modelo de desenvolvimento. Precisamos de recursos não só para mitigação e adaptação, mas também de uma agenda pró-ativa para fazer essa transição para uma economia de baixo carbono em todos os níveis, sem que haja os efeitos indesejáveis de uma mudança. Mas, hoje, não temos mais como manter o mesmo padrão de produção e consumo.

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