A Amazônia é o centro do mundo
Eliane Brum apresentou este discurso durante jantar no primeiro encontro do 'Rainforest Journalism Fund', em Manaus, em julho
Eu quero começar lembrando onde nós estamos.
E quero lembrar que nós estamos no centro do mundo. Essa não é uma frase retórica. Também não é uma tentativa de construir uma frase de efeito. No momento em que o planeta vive o colapso climático, a floresta amazônica é efetivamente o centro do mundo. Ou, pelo menos, é um dos principais centros do mundo. Se não compreendermos isso, não há como enfrentar o desafio do clima.
Esta é justamente a razão de colocarmos o nosso corpo aqui, nesta cidade, Manaus, capital do Amazonas, estado do Brasil, país que abriga cerca de 60% da Amazônia. Manaus é tanto uma floresta em ruínas como as ruínas de uma ideia de país. Manaus pode ser vista como a escultura viva de um conflito iniciado em 1500, com a invasão europeia que causou a morte de centenas de milhares de homens e mulheres indígenas e a extinção de dezenas de povos. Neste momento, em 2019, testemunhamos o início de um novo e desastroso capítulo.
O Brasil é um grande construtor de ruínas. O Brasil constrói ruínas em dimensões continentais desde que começou a ser inventado pelos europeus no século 16. Neste momento, uma forma de vida predatória chamada bolsonarismo assumiu o poder quase total e totalitário no Brasil. O principal projeto do bolsonarismo é justamente construir ruínas com método e com velocidade na floresta amazônica. É por isso que pela primeira vez, desde a redemocratização do país, temos um ministro contra o meio ambiente.
Nenhum ministro do meio ambiente dos últimos mais de 30 anos teve a autonomia que já demonstrou ter Ricardo Salles, o ministro contra o meio ambiente. Ele é o office-boy do agronegócio predatório, este que é responsável pela maioria das mortes no campo e na floresta e é também a maior força de destruição do Brasil. Não é que hoje os ruralistas estão no Governo. No governo eles estiveram desde sempre, formalmente ou não. Hoje eles são o Governo.
O principal projeto de poder do bolsonarismo é converter as terras públicas que servem a todos, na medida em que garantem a preservação dos biomas naturais e a vida dos povos originários, em terras privadas para lucros de poucos. Estas terras, a maioria delas na floresta amazônica, são as terras públicas de usufruto dos povos indígenas, as terras públicas ocupadas pelos ribeirinhos (população que vive da pesca, da coleta do látex, da castanha e de outros frutos da floresta há mais de um século), e as terras de uso coletivo dos quilombolas (descendentes de escravos rebeldes que conquistaram seu direito aos territórios ocupados pelos antepassados).
As disputas entre os vários grupos que ocupam o Governo é constante, inclusive porque o Governo Bolsonaro tem como estratégia simular sua própria oposição, ocupando todos os espaços. A abertura das terras protegidas dos povos indígenas e a abertura das áreas de conservação, entretanto, despontam como consenso. Sobre transformar a maior floresta tropical do planeta em boi, soja e mineração não há briga. Algumas das vozes levemente dissonantes já foram deletadas do Governo.
O bolsonarismo vai muito além da criatura que lhe dá nome. Eventualmente, em algum momento, o bolsonarismo pode inclusive prescindir de Jair Bolsonaro. O bolsonarismo, intimamente conectado à crise global das democracias, está influenciando toda a região amazônica, fazendo com que figuras que se mantiveram nos esgotos por anos, às vezes décadas, estejam hoje emergindo em outros países da América Latina onde também o destino da maior floresta tropical do mundo está sendo decidido. O bolsonarismo, vale repetir, não é uma ameaça apenas para o Brasil, mas para o planeta. Exatamente porque ele destrói a floresta estratégica para o controle do aquecimento global.
Como resistir a essa enorme força de destruição, a essa competente força de destruição?
Para sermos capazes de resistir nós precisamos nos tornar floresta — e resistir como floresta. Como floresta que sabe que carrega consigo as ruínas, que carrega consigo tanto o que é quanto o que deixou de ser. Me parece que é a esse sentimento político-afetivo que precisamos dar forma para dar sentido à nossa ação. Para isso temos que deslocar algumas placas tectônicas de nosso próprio pensamento. Temos que descolonizar a nós mesmos.
O fato de a Amazônia ainda ser vista como um longe e também — ou principalmente — como uma periferia dá a dimensão da estupidez da cultura ocidental branca, de matriz primeiro europeia e depois norte-americana, essa estupidez que molda e dá forma às elites políticas e econômicas do mundo e também do Brasil. E, em parte, também às elites intelectuais do Brasil e do planeta. Acreditar que a Amazônia é longe e que a Amazônia é periferia, quando qualquer possibilidade de controle do aquecimento global só é possível com a floresta viva, é uma ignorância de proporções continentais. A floresta é o perto mais perto que todos nós aqui temos. E o fato de muitos de nós nos sentirmos longe quando aqui estamos só mostra o quanto o nosso olhar está contaminado, formatado e distorcido. Colonizado.
Dias atrás eu conversava com procuradores e defensores públicos que chegaram há pouco em cidades do interior amazônico. Era o primeiro posto deles. Porque essa é a lógica. A Amazônia é o epicentro dos conflitos, mas, para fiscalizar o Estado e defender os direitos dos mais desamparados, as instituições mandam os sem nenhuma experiência. Alguns deles — não todos — interpretam que estão sendo enviados a uma região amazônica como um teste ou mesmo um castigo, um calvário que precisam passar antes de ter um posto “decente”. Parte deles — não todos — não vê a hora de ter o que é chamado de “remoção” e deixar essa bad trip para trás. E não é culpa deles, ou não é só culpa deles, porque essa é a lógica das instituições, este é o olhar para a Amazônia. Felizmente alguns deles percebem a importância do seu papel, aprendem, compreendem, permanecem e se tornam servidores públicos essenciais para a luta pelos direitos em regiões onde os direitos pouco ou nada valem.
Lembrei a eles que, como eu, eram privilegiados. Eles estavam justamente no centro do mundo. Eles estavam no melhor lugar para se estar para quem tinha escolhido aquela profissão. Mas teriam que se esforçar muito para superar a sua ignorância, como eu me esforço todos os dias para superar a minha. Era a população local, eram os povos da floresta que teriam de ter enorme paciência para explicar a eles o que precisam saber, já que pouco ou nada sabem quando aqui chegam. O mesmo princípio vale para jornalistas e também para cientistas.
Se nós nos reunirmos aqui acreditando que somos especiais por estarmos preocupados com a floresta, não teremos compreendido nada. Se nós compreendermos a nós mesmos — nós jornalistas, nós cientistas, nós brancos para muito além da cor da pele —, como aqueles que deixam o conforto de suas casas em cidades “desenvolvidas” e supostamente com mais opções de lazer e cultura para se solidarizarem com os povos da floresta, também não teremos entendido nada. Se existe uma verdade ela está nas ruínas. A única verdade são as ruínas.
Durante mais de duas décadas, eu me desloquei para as diferentes regiões da Amazônia e depois voltei para Porto Alegre, primeiro, depois para São Paulo, onde vivia. Em 2017, me mudei para Altamira, para deixar de ser “enviada especial” à Amazônia, mudar o ponto de vista a partir do qual eu olhava para o Brasil e para o planeta e ser coerente com a convicção de que a floresta é o centro do mundo.
Na chegada, tive dificuldades para alugar uma casa. Algumas das que eu gostava pertenciam a grileiros e/ou mandantes de crimes contra povos da floresta e pequenos agricultores. Porque aqui, no centro do mundo, a relação é direta. Não é que os proprietários de casas, apartamentos, hotéis e condomínios de São Paulo sejam mais “limpinhos”, é que a cadeia entre o crime e a ponta é mais longa e tem mais intermediários.
Nas grandes cidades do Brasil e do mundo, somos afastados das mortes das quais nossos pequenos atos cotidianos se fazem cúmplices, temos o privilégio de não sermos obrigados a questionar a origem da roupa que vestimos ou a origem da comida que comemos. Aqui, na Amazônia, se você come boi, tem certeza que é boi de desmatamento. Se você compra madeira, sabe que (quase) não existe madeira efetivamente legal no Brasil. Se você compra uma mesa ou um guarda-roupa vai ficar olhando para esses móveis e pensando que muito provavelmente eles foram feitos com madeira arrancada de terra indígena ou de uma reserva extrativista. Aqui, no centro do mundo, a relação com a morte da floresta e dos povos da floresta, assim como com a morte dos agricultores familiares, é direta. É inescapável. E só podemos viver carregando — conscientemente — tanto nossas contradições quanto nossas ruínas.
Por isso, temos que enfrentar também a contradição de estarmos aqui, financiados neste evento, por recursos da Noruega. A Noruega também sustenta majoritariamente o Fundo Amazônia, hoje sob ataque do Governo de Bolsonaro. A continuidade do Fundo Amazônia, principal financiador da proteção da floresta, é essencial para barrar, ainda que minimamente, a destruição acelerada do bioma. Este fato não nos absolve, porém, da necessidade de refletir que o Rainforest Journalism Fund é financiado, em grande parte, por dinheiro proveniente do petróleo, já que a Noruega é o maior produtor de petróleo da Europa. A Noruega tem ainda participação em frentes de destruição da Amazônia, como a empresa Hydro Alunorte, que contaminou os rios de Barcarena, no Pará. Só podemos seguir adiante enfrentando todas essas contradições — e não fugindo delas. E exigindo melhores práticas e mais coerência da Noruega.
Por caminhos diferentes, penso que nós estamos aqui, e não só os que vieram de fora, mas também os que já se colocaram geograficamente aqui neste território, porque sabemos que nossa vida depende disso. Mesmo que este ainda não seja um sentimento — ou mesmo um pensamento — que todos possam nomear. Não estamos aqui para ajudar os povos da floresta, contando o que está acontecendo aqui para o mundo de lá, mas sim estamos aqui para, humildemente, perguntar se eles nos aceitam ao seu lado na luta.
Somos nós que precisamos da ajuda dos povos da floresta. É deles o conhecimento sobre como viver apesar das ruínas. São eles os que têm experiência sobre como resistir às grandes forças de destruição. Para que tenhamos alguma chance de produzir movimento de resistência precisamos compreender que, nesta luta, nós não somos os protagonistas.
Sem compreender nosso lugar nessa luta e estarmos dispostos a compartilhar o pouco poder que temos, ou mesmo ceder esse poder, acredito que será muito difícil produzir movimento real. Desta vez, somos nós que precisamos nos deixar ocupar, permitir que nosso corpo seja afetado por outras experiências de ser e de estar neste planeta. Não como uma violência, como foi a colonização da Amazônia e de seus povos, esta que está em processo até hoje, e em processo cada vez mais acelerado. Mas, desta vez, como troca, como mistura, como relação amorosa, como sexo consentido.
Reproduzo aqui uma fala do filósofo Peter Pál Pelbart, que faz essa síntese de forma brilhante: “Talvez o desafio seja abandonar a dialética do Mesmo e do Outro, da Identidade e da Alteridade, e resgatar a lógica da Multiplicidade. Não se trata mais, apenas, do meu direito de ser diferente do Outro ou do direito do Outro de ser diferente de mim, preservando em todo caso entre nós uma oposição. Nem mesmo se trata de uma relação de apaziguada coexistência entre nós, onde cada um está preso à sua identidade feito um cachorro ao poste, e portanto nela encastelado. Trata-se de algo mais radical, nesses encontros, de também embarcar e assumir traços do outro, e com isso às vezes até diferir de si mesmo, descolar-se de si, desprender-se da identidade própria e construir sua deriva inusitada”.
Durante muito tempo nós, jornalistas e cientistas brancos ocidentais, e quando me refiro a brancos ocidentais me refiro a muito além da cor da pele, me refiro a um modo de pensar e de habitar esse mundo, usamos os povos da floresta apenas como fontes do nosso trabalho. Cientistas de todas as áreas, e também da área de humanas, fizeram sua carreira a partir do conhecimento dos povos da floresta citando-os nos trabalhos acadêmicos apenas como “informantes”, isso quando os citavam.
Embora essa prática ainda seja largamente exercida na produção científica, muitos já começam a compreender que já não é eticamente possível fazer isso. Os povos da floresta precisam ser reconhecidos, no mínimo, como coautores. Os intelectuais, assim como os cientistas, não se restringem à academia. Os intelectuais e os cientistas estão também — e muito — na floresta.
É isso que muitos intelectuais indígenas estão dizendo no mundo inteiro neste momento. No Brasil, a obra mais expressiva de coautoria entre um intelectual acadêmico e um intelectual da floresta é A Queda do Céu, resultado de uma parceria efetiva, real, de mútuo respeito e mútuo aprendizado, entre Davi Kopenawa, intelectual yanomami, e Bruce Albert, antropólogo francês.
Talvez o debate mais fundamental que precisamos empreender no jornalismo é como esse desafio ético e também estético pode ocupar a produção jornalística neste momento crucial. Como colaborar com os povos da floresta para invadir e ocupar o jornalismo a partir de suas próprias experiências — e não apenas se deixando formatar pelo nosso modelo de imprensa. Esta, me parece, não deve ser apenas uma ocupação de espaço, com indígenas, ribeirinhos e quilombolas fazendo jornalismo. Deve ser também uma transformação do espaço, do próprio fazer jornalístico.
Uma das maneiras de começar esse movimento no Rainforest Journalism Fund é estimular a coautoria nos projetos de reportagem porque, a maneira mais efetiva de ocupar os espaços de poder é... ocupando os espaços de poder. E, de novo, devemos aceitar esse desafio não porque somos cool ou por concessão ou por favor — e nem mesmo porque é o mais correto a se fazer —, mas porque precisamos muito aprender e porque podemos ensinar. Precisamos nos inventar de outro jeito se quisermos ter uma chance de enfrentar este momento em que a espécie humana se tornou ela mesma a catástrofe que temia.
Bolsonaro não é apenas uma ameaça para a Amazônia. É uma ameaça para o planeta exatamente porque é uma ameaça para a Amazônia. Diante desta força acelerada de destruição que é o bolsonarismo nós, de todas as nacionalidades, precisamos fazer como os africanos escravizados que se rebelaram contra o opressor. Precisamos nos aquilombar. E, como não sabemos fazer isso, teremos que ter a humildade de aprender com quem sabe.
O melhor — e o mais potente — do Brasil atual e da Amazônia, em todas as regiões, são as periferias que reivindicam o lugar de centro. Nossa melhor chance é nos somar às forças do real centro do mundo onde a disputa pelo futuro é travada, às vezes a bala.
É a esse movimento que nós, jornalistas e cientistas, precisamos humildemente servir. Espero que os povos da floresta possam, depois de tudo o que fizemos contra seus corpos, nos aceitar ao seu lado na luta.
Discurso da jornalista, escritora e documentarista Eliane Brum, integrante do comitê fundador, consultivo e julgador do Rainforest Journalism Fund, que financia reportagens na Amazônia e em outras florestas tropicais, em parceria com o Centro Pulitzer. A fala foi realizada em 12 de julho de 2019, em Manaus (Amazonas/Brasil), durante jantar em que participaram os jornalistas reunidos para o primeiro encontro do Rainforest Journalism Fund e cientistas reunidos para o encontro Sciencetelling Bootcamp & Explorer Spotlight, da National Geographic Society.
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