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Olimpíada do Rio, um escândalo que não acabou

Operação Unfair Play mira rota dos subornos após ex-governador Sérgio Cabral confessar que comprou votos para cidade sediar os Jogos Olímpicos em 2016

Sérgio Cabral (à esq.) diz que Nuzman mediou acordo de compra de votos para o Rio.
Sérgio Cabral (à esq.) diz que Nuzman mediou acordo de compra de votos para o Rio.Getty Images

Mais de 40 bilhões de reais gastos com operação, obras de mobilidade urbana e a construção de arenas. Isenção fiscal para entidades privadas organizarem a Olimpíada. Subvenção de emergência do Governo federal para realização dos Jogos Paralímpicos. Quase 100 milhões de reais de custo anual para manutenção de instalações esportivas, parte delas com baixa utilização ou até mesmo abandonadas. A conta para que o Rio de Janeiro abrigasse o maior evento do esporte mundial segue em aberto, com mais da metade de seu rombo bancada pelos cofres públicos. Porém, além dos números oficiais, a fatura começou a ser paga bem antes da cerimônia de abertura em agosto de 2016 – mais precisamente, há uma década.

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Essa é a suspeita levantada pela Operação Unfair Play (Jogo Sujo), um desdobramento da Lava Jato em parceria com autoridades francesas que apura indícios de corrupção na candidatura da cidade a sede olímpica. No início deste mês, o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que já foi condenado a 198 anos de prisão em nove processos criminais, admitiu pela primeira vez ter participado do esquema de compra de votos para que a capital fluminense ganhasse o direito de sediar a Olimpíada. “Pagamos pra ter a garantia dos votos”, revelou Cabral aos agentes encarregados da operação no Brasil.

De acordo com as investigações do Ministério Público Federal (MPF), endossadas pelo relato do ex-governador, Carlos Arthur Nuzman, que presidiu o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) por 22 anos e chefiou o Comitê Organizador Rio 2016, foi o elo entre políticos e dirigentes subornados do Comitê Olímpico Internacional (COI). O dirigente chegou a ficar preso por 15 dias em outubro de 2017, na primeira batida da Operação Unfair Play. Réu por corrupção passiva, organização criminosa, lavagem de dinheiro e evasão de divisas, ele responde ao processo em liberdade, mas está proibido de deixar o país.

Nuzman é acusado de mediar o acordo de repasse de propina com o senegalês Lamine Diack, então presidente da Federação Internacional de Atletismo (IAAF), que teria cobrado 2 milhões de dólares para assegurar nove votos ao Rio de Janeiro na disputa com Madri, Chicago e Tóquio. Segundo Sérgio Cabral, em agosto de 2009, Nuzman o informou que Diack seria um dirigente que “se abre para vantagens indevidas”. Pelo trato inicial, o senegalês compraria de cinco a seis votos – incluindo o dele próprio – subornando membros africanos do COI e outros ligados ao atletismo por 1,5 milhão de dólares. A partir daí entraria em cena o suposto operador financeiro do esquema, Arthur César de Menezes Soares Filho, o Rei Arthur.

Mesmo que de forma indireta, o esquema era irrigado com dinheiro público. Por meio das empresas de Soares Filho, que, em conluio com Cabral, fraudava licitações para fechar contratos bilionários com o Estado em favor de seus negócios, a propina chegaria às mãos de Lamine Diack. O ex-governador do Rio relatou que Leonardo Gryner, diretor de operações da Rio 2016, teria intermediado o pagamento a Papa Diack, filho do dirigente senegalês. “Se houve compra de votos, ele não participou”, afirma a defesa de Gryner, que, assim como Rei Arthur, considerado foragido pela Justiça brasileira, também é réu no processo. “Trata-se de uma organização criminosa extremamente complexa”, afirmou Fabiana Schneider, procuradora do MPF, ao detalhar a primeira fase da operação. “Cada passo foi cuidadosamente planejado para que os Jogos Olímpicos viessem para o Brasil.”

Nuzman e Cabral ao lado do ex-presidente da FIFA, João Havelange, na festa dos guardanapos.
Nuzman e Cabral ao lado do ex-presidente da FIFA, João Havelange, na festa dos guardanapos.Reprodução

Na noite de 14 de setembro de 2009, aconteceu em um salão nobre de Paris a festa que ficou conhecida como a “Farra dos Guardanapos”. Para investigadores da Unfair Play, aquela seria uma celebração antecipada pela escolha do Rio como sede da Olimpíada. Cabral, que havia desembarcado na capital francesa quatro dias antes do jantar de gala, conta que foi chamado por Carlos Arthur Nuzman e Leonardo Gryner após uma reunião no luxuoso Le Bristol, o hotel onde estavam hospedados, para falar sobre o acordo da propina. A novidade era que Lamine Diack pedia mais 500.000 dólares para conseguir até nove votos. O então governador não hesitou em dar seu aval. Passada a negociação, ele se esbaldaria na festa, ao lado de Nuzman, empresários e políticos, em que a empolgação dos convidados levou alguns de seus secretários de governo a desfilar pelo salão e posar para fotos com guardanapos amarrados na cabeça.

Lula fingiu que não ouviu

A confiança de que o Rio de Janeiro seria escolhido pelo COI ganharia ainda mais corpo quando uma transferência de 1,5 milhão de dólares e outra de 500.000 provenientes de uma conta internacional da empresa de Rei Arthur para contas de Papa Diack foram confirmadas, em 29 de setembro. Três dias depois, Sérgio Cabral estava presente na assembleia que definiria a sede dos Jogos, em Copenhague. Respirou aliviado ao perceber que o Rio havia sobrevivido à primeira etapa de votação, eliminando Chicago. Teve uma crise de choro e, ao ser amparado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Lula, diz ter confidenciado ao mandatário da República sobre o “arranjo político” para passar daquela fase. Segundo seu depoimento, Lula “fingiu que não ouviu” e tentou acalmá-lo. Cabral contou que o ex-prefeito do Rio, Eduardo Paes, também soube do acordo, mas nenhum deles participou do esquema de suborno.

Hoje réu confesso e ouvido como testemunha nas investigações, Cabral mudou o discurso em relação ao adotado assim que a operação divulgou sua participação na compra de votos, em 2017. Na época, o ex-governador, que já estava preso, negou a existência do esquema, argumentando que a diferença de votos do Rio (66) para Madri (32), a outra finalista no processo seletivo, foi tão expressiva a ponto de transformar a acusação de pagamento de propina em “história fantasiosa”. No entanto, não fossem os nove votos comprados via Lamine Diack, a Cidade Maravilhosa, que somou 26 na rodada inicial de votação, poderia ter sido eliminada no lugar de Chicago, que levou apenas 18 votos. Depois de resistir à primeira fase, a que mais preocupava os mentores da candidatura brasileira, o Rio eliminou Tóquio – que futuramente seria escolhida sede dos Jogos de 2020 e também é investigada por suspeita de compra de votos – e, em seguida, Madri.

A corrida pela propina repartida por Diack, de acordo com Cabral, teria beneficiado pelo menos dois campeões olímpicos: o ucraniano Serguei Bubka, do salto com vara, e o russo Alexander Popov, da natação. Em 1999, ambos passaram a integrar a comissão de atletas com direito a voto no COI, em um movimento da entidade para tentar tornar a eleição de sedes da Olimpíada mais transparente, que tinha sido afetada por denúncias de corrupção envolvendo a escolha de Salt Lake City para os Jogos de Inverno de 2002. Depois de se aposentarem do esporte, eles investiram na carreira como dirigentes. Bubka, inclusive, foi vice de Lamine Diack na IAAF, cargo que segue ocupando. “Rejeito completamente as falsas alegações do ex-governador do Estado do Rio de Janeiro, que atualmente cumpre uma longa pena de prisão por corrupção”, escreveu o ucraniano em suas redes sociais após o depoimento de Cabral. Ele alega nunca ter comentado sobre seu voto com Diack.

Já Popov afirma que não votou no Rio na assembleia de 2009. “Alguém está mentindo. E isso é muito grave”, disse o ex-nadador. Em 2017, a Comissão de Ética do COI afastou o namibiano Frank Fredericks, lenda do atletismo em seu país, sob o pretexto de “proteger a reputação do movimento olímpico”. Ele é suspeito de ter sido um dos votos comprados por Lamine Diack. Autoridades francesas rastrearam pagamento de 299.300 dólares feito por Papa Diack para uma conta vinculada a Fredericks em um paraíso fiscal. A transferência foi realizada no mesmo dia da eleição do Rio como sede olímpica, na capital da Dinamarca. O COI informou que está levantando mais informações sobre a denúncia, mas não respondeu se a Comissão de Ética, tal qual no caso de Fredericks, pretende abrir procedimento disciplinar para apurar eventuais desvios de conduta por parte de Bubka e Popov.

Negando ser o distribuidor da propina, Lamine Diack está em prisão domiciliar na França, enquanto seu filho, Papa, permanece foragido no Senegal. Ele presidiu a IAAF por 20 anos. Só deixou o cargo em 2015, ano em que a investigação francesa o apontou como figura central em outro escândalo, a tentativa de abafar o doping de atletas russos. Tão longevo quanto o senegalês, porém à frente do Comitê Olímpico Brasileiro, Carlos Arthur Nuzman continua afirmando inocência. “Ele [Nuzman] não pode se responsabilizar por ação autônoma de terceiros”, diz João Francisco Neto, um dos advogados do ex-dirigente, ressaltando que em nenhum momento Cabral menciona qualquer tipo de pagamento indevido a seu cliente. As defesas de Lula e Eduardo Paes também rechaçam a hipótese de que eles teriam conhecimento do esquema de compra de votos.

Em busca de novos indícios que reforcem o modus operandi detalhado por Sérgio Cabral, a Operação Unfair Play tentou revogar por duas vezes em instância superiores a soltura de Nuzman, mas não obteve sucesso. O MPF entende que a prisão preventiva do ex-presidente do COB se justifica pelo fato de ele já ter tentado, segundo interpretação dos procuradores, obstruir as investigações de ocultação de patrimônio com a declaração atrasada de bens encontrados em sua casa no dia da batida policial, incluindo 16 quilos de ouro e quase meio milhão de reais em espécie. De acordo com um cruzamento de dados da Receita Federal obtido pelas autoridades, o patrimônio de Nuzman apresentou crescimento de 457% ao longo de sua última década no comando do Comitê Olímpico.

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