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Estados Unidos vigiaram jornalistas que cobriam caravana migratória

Base de dados divulgada NBC revela uma lista de uso interno das autoridades de Imigração em que aparecem advogados, ativistas e meios de comunicação “suspeitos”

Imigrantes da caravana durante tentativa de invasão do território norte-americano em 25 de novembro, em Tijuana.
Imigrantes da caravana durante tentativa de invasão do território norte-americano em 25 de novembro, em Tijuana.Ramon Espinosa (AP)

O departamento de Alfândegas e Proteção de Fronteiras dos Estados Unidos (CBP, na sigla em inglês) criou uma base de dados de dezenas de pessoas “suspeitas” de serem “organizadores, coordenadores e instigadores” da última caravana de imigrantes centro-americanos que chegou a Tijuana em novembro passado, além de jornalistas que cobriram o fato. Em alguns casos, o Governo dos Estados Unidos colocou um “alerta” em seus passaportes.

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O canal NBC7 de San Diego, na Califórnia, publicou com exclusividade imagens dessa lista, elaborada pelo grupo de “operações no exterior” da polícia fronteiriça no setor de San Diego. Os documentos têm o carimbo da Unidade de Enlace Internacional, que coordena a troca de informações entre os Estados Unidos e o México, segundo a reportagem. A fonte anônima que revelou o documento diz que essa base dados foi compartilhada pela CBP, pela polícia migratória (ICE), pela patrulha fronteiriça e pelo FBI.

Em novembro de 2018, cerca de 5.000 imigrantes centro-americanos alcançaram a fronteira do México com a Califórnia, dentro da chamada caravana dos migrantes, que havia partido semanas antes da América Central. Com ela chegaram a Tijuana jornalistas, advogados e ativistas dos dois lados da fronteira. A caravana, organizada por ativistas para atravessar o México com segurança e chamar a atenção sobre a crise humanitária na América Central, é uma obsessão para o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que a utilizou para reforçar seu discurso de que há uma crise de segurança na fronteira e que é preciso construir um muro separando os EUA do México. No mês passado, Trump declarou estado de emergência nacional para poder usar verbas militares na proteção fronteiriça.

O documento revelado nesta quarta-feira foi elaborado sob o manto da “Operação Proteger a Linha”, uma operação concebida para vigiar a caravana migratória, segundo a fonte da NBC7. A lista deveria servir para indicar pessoas que precisariam ser examinadas na fronteira. A lista tem 57 pessoas, incluindo 10 jornalistas, sendo 7 norte-americanos, 2 espanhóis e 1 mexicano.

De cada um deles aparece a foto do passaporte, país de origem e seu suposto papel na caravana. Ao lado de alguns nomes aparecem também seus dados nas redes sociais, e em outros casos se o passaporte do indivíduo foi “marcado” e as consequências dessa ação: “detido pelo Governo do México”, “visto revogado”, “entrevista pendente”… Segundo a fonte da NBC7, há também um dossiê sobre cada pessoa incluída na lista.

Nos primeiros meses deste ano, o México proibiu a entrada de pelo menos duas advogadas norte-americanas que atenderam os imigrantes e de dois jornalistas que cobriram a caravana, sem revelar as razões para essa recusa. A informação da NBC7 nesta quarta-feira deve confirmar as suspeitas dessas pessoas de que seus passaportes foram marcados pelo Governo dos Estados Unidos, embora não seja possível relacionar diretamente as duas coisas.

As duas advogadas são Nora Phillips e Erika Pinheiro, da organização Al Otro Lado, que assessora imigrantes em Tijuana sobre o processo de pedido de asilo nos Estados Unidos. Como relatou Phillips no mês passado ao Los Angeles Times, em 31 de janeiro ela viajou com sua família a Guadalajara. No aeroporto, os agentes de imigração mexicanos a separaram de seu marido e sua filha e a mantiveram retida durante nove horas até que a colocaram em avião de volta a Los Angeles. Os agentes lhe disseram que havia um alerta associado ao seu passaporte e insinuaram que isso não provinha do México. Nenhum dos dois países quis confirmar a história.

A advogada Erika Pinheiro relatou que o mesmo lhe ocorrera na guarita de San Ysidro em 28 de janeiro. O México lhe negou a entrada a pé quando ia apanhar seu filho de 10 meses em Tijuana.

Na lista publicada nesta quarta-feira aparece uma terceira advogada do Al Otro Lado, Nicole Ramos. Em sua ficha, consta que seu passaporte não foi marcado. O canal de TV afirma que teve acesso a um dossiê sobre Ramos no qual aparecem detalhes como seu carro, o nome de sua mãe e seu histórico profissional. "Os documentos parecem demonstrar o que supomos há um tempo, que estamos em uma lista das forças de segurança concebida para adotar represálias contra defensores dos direitos humanos que trabalham com os solicitantes de asilo e que criticam as práticas do CBP que violam seus direitos", disse Ramos à NBC7.

Além de pessoas ligadas à ONG Al Otro Lado, aparecem nos documentos ativistas de outras organizações, como Border Angels e Pueblo Sin Fronteras, segundo a reportagem.

Os jornalistas descreveram situações similares. A fotógrafa freelance Kitra Cahana, que passou seis semanas fotografando a caravana migrante e cujo trabalho foi publicado no The New York Times e na National Geographic, não pôde entrar no México pelo aeroporto de Guadalajara em janeiro. Um agente migratório lhe disse que seu passaporte tinha sido posto sob alerta “pelos americanos”, segundo relatou ela ao Los Angeles Times um mês atrás. Cahana voou para os Estados Unidos e de lá para a Guatemala. De novo, o México a proibiu de cruzar a sua fronteira sul a pé, depois de passar cinco horas detida.

O fotógrafo espanhol Daniel Ochoa, que trabalha para a agência Associated Press e também cobriu a caravana migratória, contou que foi proibido de passar de San Ysidro para Tijuana em 20 de janeiro. Esteve quatro horas detido. A fotógrafa Ariana Drehsler descreveu à NBC7 que foi submetida a inspeções mais detalhadas em três ocasiões quando tentava entrar nos EUA vinda de Tijuana. Os agentes, também nesse caso, lhe informaram que havia um alerta em seu passaporte, e que por isso voltaria a ser submetida a esses procedimentos.

O departamento de Alfândegas e Proteção de Fronteiras dos Estados Unidos, que controla os fluxos migratórios, respondeu à reportagem com um comunicado em que não nega a existência do relatório. “A recente mobilização de caravanas de centro-americanos para chegar à nossa fronteira sul acrescenta novos desafios a uma missão que já é complicada e perigosa”, diz a nota enviada por e-mail ao canal. “Incidentes criminais, como o salto da cerca fronteiriça em San Diego, que incluiu ataques a agentes e um risco para a segurança pública, são vigiados e investigados pelas autoridades de forma rotineira. Essas atividades podem resultar em uma revisão mais aprofundada daqueles que tentam entrar em nosso país.”

Depois da notícia, o CBP esclareceu que as pessoas que aparecem na base de dados estavam presentes durante um incidente violento registrado em novembro em Tijuana após a chegada da caravana migratória. A agência fronteiriça acrescentou que a vigilância aos jornalistas era para procurar mais informações sobre qual foi a origem da violência.

Não está claro a qual incidente violento se refere a resposta oficial. Em 11 de novembro, um grupo de centro-americanos da caravana enfrentou de forma violenta residentes de Tijuana que protestavam contra sua presença na cidade. Nos dia 26, um grupo tentou alcançar a cerca fronteiriça correndo, e alguns chegaram a saltar para o outro lado. A polícia fronteiriça utilizou gás lacrimogêneo para reprimir o protesto, e as imagens geraram uma forte polêmica nos Estados Unidos.

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