A revolução do cinema negro que desafiou Hollywood
O IMS paulista resgata 14 títulos das primeiras gerações de cineastas afro-americanos na Califórnia
Como ensinar um mundo estéril a dançar? É o que se pergunta a atriz Barbara O. Jones na pele de uma freira negra, enquanto tenta abafar internamente o batuque distante dos tambores de Uganda. Os olhares contorcidos de Jones e a trilha sonora percussiva fazem uma reivindicação lúdica da ancestralidade negra no curta Diário de uma freira africana, da realizadora Julie Dash —primeira mulher afro-americana a dirigir um longa-metragem estreado comercialmente nos Estados Unidos (Filhas do Pó), em 1991.
Como ensinar um mundo estéril a dançar? Como ensinar outros olhares? A mesma pergunta parece ter passado pela mente das primeiras gerações de realizadores audiovisuais negros que entraram na Escola de Cinema da Universidade da Califórnia (UCLA), entre 1970 e 1980. Programas de atração e inclusão de estudantes de origens periféricas (latinos, indígenas, asiáticos, negros) implementados na época permitiram o florescimento de um cinema que deu protagonismo às narrativas negras, rebelando-se contra o espelho embaçado de Hollywood, onde esses artistas não se reconheciam. Agora, 14 obras da chamada L.A. Rebellion, entre curtas, médias e longa-metragens, serão apresentadas ao público brasileiro em uma mostra no Instituto Moreira Sales (IMS) de São Paulo, que começa nesta terça-feira e vai até 23 de fevereiro.
Se hoje desfrutamos de obras como Moonlight, que ganhou o Oscar de melhor filme em 2017, é porque essa produção foi antecedida pelo L.A. Rebellion e por nomes como o de Charles Burnett, realizador de trabalhos como os curtas Um Bocado de Amigos e O cavalo —outras duas pérolas que estarão no IMS. É o que afirma a crítica de cinema estadunidense Soraya Nadia McDonald. Tanto o filme que foi aclamado pela maior indústria do cinema global quanto as produções dos jovens estudantes da UCLA foram feitos por realizadores negros, com elenco negro, com atores inexperientes ou estreantes e foram feitos com baixos orçamentos, contando histórias de negros.
Essa foi a forma encontrada pelos "rebeldes" para renegar a linguagem e os códigos do cinema que se fazia a apenas 16 quilômetros de suas salas de aula, em Hollywood. "A indústria foi criada com os códigos de uma comunidade branca privilegiada. Aquela geração percebeu que para contar suas histórias, com origens nas diásporas africanas, precisava fazê-lo criando novos códigos e uma linguagem própria", explica Luís Fernando Moura, pesquisador e programador de cinema e um dos curadores da mostra.
Elyseo Taylor, o primeiro professor afro-americano do curso de cinema da UCLA foi o responsável por implementar o programa Ethnic Communications, que abriu as portas para uma produção audiovisual que se relacionasse com as questões sociais que eclodiam no momento, como os protestos contra a Guerra do Vietnã e, principalmente, o movimento pelos direitos civis da comunidade negra. Há 15 anos, o trabalho de restauração feito pela universidade mostrou que há pelo menos 73 filmes associados ao L.A. Rebellion (ainda que nem todos tenham sido restaurados). Desses, apenas 28 foram exibidos fora dos muros da UCLA e nenhum deles teve distribuição no Brasil. A mostra do IMS oferece, assim, a possibilidade de ver cópias raras, como a versão em 16 mm de Bush Mama (1979), do diretor Haile Gerima, um migrante etíope —ele estrelou o documentário Além do Espelho, de Ana Flauzina, sobre os movimentos negros no Brasil e nos EUA. Considerado uma das obras-primas fundacionais do que se entende ao L.A. Rebellion, esse longa conta o excesso de realidade que recai sobre uma mulher que se vê sozinha, grávida e com uma filha pequena, em um bairro periférico, enquanto seu companheiro está preso.
Na tentativa de criar uma nova linguagem, os realizadores que integram o movimento buscaram referências do chamado novo cinema americano, como Jonas Mekas, do cinema africano —que começava a emergir naquelas décadas, a partir das obras como as do diretor etíope Haile Gerima— e de brasileiros como Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha. O cinema do terceiro mundo começava a circular na universidade.
As obras que compõem a mostra também dialogam diretamente com o cinema experimental e a literatura, em um diálogo íntimo com a performance e o filme-ensaio, inspirações muito claras em Diário de uma freira africana, por exemplo, adaptado de um conto da escritora Alice Walker, e em Ciclos (1989), de Zeinabu irene Davis. Também há referências ao cinema clássico, principalmente no longa Abençoe seus pequeninos corações (1983), de Billy Woodberry, que conta a história de uma família que enfrenta os problemas gerados pelo desemprego, ao mesmo tempo que usa esse drama como pano de fundo para tratar questões comunitárias, fazendo o retrato de um espaço e de uma época.
Uma das principais marcas do L.A. Rebellion é, no entanto, o uso da música de raízes negras, sejam as trilhas percussivas com tambores africanos ou o jazz. O curador Luís Fernando Moura destaca, por exemplo, o longa Dando um rolê (1977), de Larry Clark, como uma grande homenagem ao jazz americano. "O filme traz uma narrativa policial contada através da música, referenciando vários músicos paradigmáticos na cultura afro-americana", diz Moura.
Uma imagem icônica dessa relação com a música aparece em Ciclos, quando três mulheres de óculos escuros percorrem as ruas da cidade, como quem possui, com alegria e autoridade, um território. O momento evoca a célebre canção To be Young, Gifted and Black, de Nina Simone, uma ode ao orgulho negro.
Nessa subversão das histórias criadas e contadas principalmente por homens brancos, o trabalho desses cineastas tem eco na indústria cultural contemporânea, nas obras de Beyoncé, na música, ou diretor Jordan Peele (responsável pelo suspense Corra!). "São obras que trazem as experiências e vivências negras a partir de um olhar negro", explica Moura. O curador diz que se por um lado o resgate desses títulos causa uma "alegria", também provoca espanto ao revelar que ainda hoje são tratadas questões de 30 anos atrás, como as experiências das populações negras diante da polícia, o encarceramento em massa de homens negros, presença policial em suas comunidades.
Metade dos filmes que compõem a mostra são dirigidos por mulheres, cujas narrativas reivindicam autonomia sobre seus corpos, emancipação sexual e social, temas também em pauta na cultura contemporânea. "É uma feliz coincidência que esses títulos cheguem ao Brasil neste momento. É quase como se houvesse uma genealogia secreta do cinema negro", celebra Moura.
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