Hamilton Mourão, gabinete aberto e opinião formada sobre tudo
Na estreia, presidente em exercício faz declarações sobre reforma da Previdência e recebe diplomatas. "É uma voz moderada", elogia embaixador alemão
Pela primeira vez desde o fim da ditadura militar, há 34 anos, um alto comandante militar tem a caneta presidencial em suas mãos no Brasil. Até a madrugada da próxima sexta-feira, o general da reserva Hamilton Mourão exerce o cargo de presidente da República no lugar de Jair Bolsonaro, que está na Suíça e faz nesta terça-feira seu discurso de estreia num palco estrangeiro, o do Fórum Econômico Mundial em Davos. Se os investidores seguirão palavra a palavra as promessas de Bolsonaro, não faltarão também holofotes para avaliar como Mourão se sai no Planalto. É que mesmo dizendo-se um aliado leal, que “toca a bola de lado” e nada decide sem o aval do chefe, Mourão rapidamente tem ocupado espaço nas primeiras semanas do novo Governo –em que não faltaram sobressaltos, desgaste precoce por causa do escândado envolvendo Flávio Bolsonaro e recuos. Ao mesmo tempo em que é uma sombra para o presidente –suas quatro estrelas de general reluzem e se apresentam por vezes maior do que o capitão –, Mourão também acaba sendo seu contraponto, uma espécie de moderador das falas e validador dos atos do mandatário.
Tanto é assim que a agenda de Mourão, um vice que só entrou na fórmula presidencial na reta final da campanha, é recheada de encontros com empresários de multinacionais ou embaixadores de países estrangeiros. Um leque mais variado do que o do próprio Bolsonaro nos primeiros dias do poder. Em sua estreia na presidência em exercício, não foi diferente: das sete audiências que Mourão protagonizou nesta segunda, por exemplo, uma foi com um membro da siderúrgica CSN e duas foram com representantes da Alemanha e da Tailândia.
“O vice-presidente se mostrou uma pessoa muito construtiva e bem informada. É uma voz moderada e interessada pela cooperação internacional. Algo importante para nós”, afirmou ao EL PAÍS o embaixador alemão, Georg Witschel, após conversa com Mourão. Witschel disse ter conversado com inquilino temporário do Planalto sobre direitos humanos, proteção ao meio ambiente, comércio bilateral, crise na Venezuela, acordo comercial entre União Europeia e Mercosul. Tratou também da má reputação que a gestão brasileira tem em seu país, que já provoca até problemas concretos, como o reforço da campanha contrária ao acordo comercial da UE com o bloco sul-americano. “É uma imagem que queremos mudar, juntos”, disse o embaixador alemão.
Outros dois diplomatas que estiveram recentemente com Mourão ressaltaram características semelhantes. “Ele é a sensatez que muitas vezes falta ao presidente em falas oficiais”, afirmou, em caráter reservado, um dos representantes de países estrangeiros que se encontrou com o general da reserva.
Opinião formada sobre quase tudo
A percepção de sensatez por contraste vem desde a campanha eleitoral. Mourão, um oficial defensor da ditadura militar assim como o presidente ultradireitista, também provocou controvérsia ao falar, por exemplo, que as famílias sem figuras masculinas tinham propensão a fabricar delinquentes. Também disse impropriedades sobre a dívida pública. Mas tudo isso foi esquecido quando, ainda na disputa, começou a matizar a retórica anti-China de Bolsonaro ou passou a defender diante dos microfones, como fez nesta segunda-feira, a ansiada reforma da Previdência, inclusive alguma modalidade para os militares, a categoria que espera escapar das mudanças.
Desde que foi escolhido como candidato na chapa encabeçada por Bolsonaro, Mourão já dizia que não seria um vice decorativo. E, de fato, não tem sido. Como não ocupa posições de destaque, como algum ministério, ele tem emitido opinião sobre quase tudo. Sua voz é a mais evidente entre o braço militar da gestão, composta por ao menos sete ministros e outros 36 representantes em postos-chave de segundo e terceiro escalão. De um lado, é o general da reserva Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, quem tem mais acesso aos ouvidos do presidente e goza de sua confiança. Do outro, Mourão, que pode até não ser o integrante mais assíduo do ninho, mas é o único que Bolsonaro não pode destituir: afinal, ele foi eleito ao lado do presidente nas urnas e está na linha de sucessão.
Não é um fator menor diante do cenário confuso de um Governo Jair Bolsonaro que nem completou um mês e já se depara com crises como as de gestões desgastadas por anos no poder. “É o início de Governo mais confuso desde a redemocratização”, avalia o cientista político Carlos Ranulfo, professor na Universidade Federal de Minas Gerais. A razão, em sua opinião, é que o presidente se cercou de pessoas com pouca ou nenhuma experiência em gestão pública, em Governo. “Não há eixo, coordenação, não há nada. Há muito desentendimento entre o sol Bolsonaro e os astros que giram em torno dele. É apenas um ajuntamento de peças. Por isso, tantas trombadas”, diz.
Além do herdeiro presidencial – o senador eleito Flávio Bolsonaro –, que não consegue se descolar de uma suspeita de desvios de recursos supostamente cometidos por ele e por um ex-assessor, sobram idas e vindas em anúncios, frases desastradas, como a do ministro comparando uma arma de fogo a um liquidificador. Nas áreas mais centrais, há planos claros, como os da área econômica, mas eles também esbarram na acomodação de uma classe neófita no poder tanto no Executivo como no Legislativo.
Ao lado do general Heleno, tem ficado com Mourão a tentativa de chutar para longe a crise de Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz, o filho do presidente e seu antigo assessor que são investigados pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. Ao sair de seu gabinete e se deparar com um batalhão de jornalistas, o vice-presidente disse, nesta segunda, que falaria pela última vez sobre Flávio-QueirozÇ: “Esse assunto não comento mais. Não vem pra cima do Governo e é um problema do Flávio. Ele vai resolver”.
O cuidado sobre o quanto essa crise pode respingar na gestão é semelhante a que o próprio presidente tem tido. Desde dezembro, quando descobriu-se uma movimentação incompatível de recursos pelas contas de Queiroz e, agora, o recebimento de depósitos em dinheiro vivo por Flávio, o presidente quase não se manifestou sobre o tema. “Ele faz o que qualquer presidente teria de fazer, fica quieto. Não se envolve”, avaliou o professor Ranulfo, da UFMG.
Sobre política externa, contudo, Mourão não mede palavras. Se já havia dito que o presidente aprenderia a ser pragmático na matéria, à revista Época, por exemplo, foi ainda mais explícito: afirmou que o chanceler Ernesto Araújo – um diplomata antiglobalista, trumpista e aliado do escritor e ideólogo de Bolsonaro, Olavo de Carvalho – ainda não mostrou a que veio. “Se alguém espera que Mourão vai ficar quieto, está enganado. Ele fala pelos cotovelos. E está pronto para atuar. Basta ter a brecha”, concluiu Ranulfo.
Até a madrugada de sexta-feira, quando está prevista a chegada de Bolsonaro ao país, é Mourão quem dá as cartas no Palácio do Planalto. Bolsonaro fica em Brasília até sábado. No domingo, segue para São Paulo, onde no dia seguinte se submeterá a uma cirurgia para retirada de uma bolsa de colostomia que carrega no abdômen desde setembro, quando levou uma facada. Em princípio, Mourão assumiria novamente a presidência no período em que Bolsonaro estivesse hospitalizado. Mas, agora, a tendência é que o presidente fique dez dias despachando do hospital, enquanto se recupera. Mourão, ao que parece, voltará para seu trabalho pelas brechas.
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