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Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

Se como homem você se ofende com o anúncio da Gillette, você tem um problema

O preocupante na polêmica campanha é que ela fala de dois tipos de homens, e muitos espectadores se viram refletidos no que não devia: o mau

A campanha que está provocando tanta controvérsia.Vídeo: Gilette
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Vejamos, com o dicionário na mão: da masculinidade se diz que é a “qualidade de masculino”. A definição de masculino: “Pertencente ou relativo aos animais machos; destinado só aos homens ou que se compõe só de homens”. No último anúncio da Gillette, que foi lançado no domingo e virou a grande polêmica da semana, aparecem homens que tentam deter outros homens que brigam, homens que repreendem outros que assediam mulheres, e homens que pedem a outros homens que deixem as mulheres falarem em vez de interrompê-las para corrigi-las. Também há crianças fazendo bullying com outras pela Internet ou dando-lhes surras no pátio do colégio.

Está claro, portanto, que na campanha aparecem homens bons e homens maus. Sua representação pode ser um pouco maniqueísta, tudo bem, mas trata-se de um anúncio com 100 segundos de duração. Não há muito tempo para retratos em profundidade.

A campanha vem gerando polêmica por onde passa ao longo desta semana. Os comentários nas redes sociais e no vídeo do YouTube publicado pela própria marca são desmoralizantes. E todos repetem uma palavra: “masculinidade” (uma palavra que só aparece nas críticas e nas análises jornalísticas, mas nunca é dita no anúncio).

Quem critica não parou para pensar que o anúncio convida o espectador a se identificar com os ‘outros’ homens, os que tentam apartar brigas, evitar situações de assédio a mulheres e defender as vítimas de ‘bullying’ no colégio

Nas redes sociais, há homens que criticam veementemente o spot — e jogam seus produtos da Gillette no lixo, jurando que não os comprarão mais — porque estão muito ofendidos. Ao retratá-los dessa forma, pensam eles, a Gillette está se dirigindo a eles e os acusando de serem violentos, assediadores, mansplainers e marrentos de manual.

O mais chamativo é que nenhum parou para pensar que o anúncio, em seu espírito aspiracional, está convidando o espectador a se identificar com os outros homens, os que tentam apartar brigas, evitar situações de assédio a mulheres e defender às vítimas de bullying no colégio.

O vídeo tem atualmente mais de dez milhões de visitas, 235.000 avaliações favoráveis e 608.000 negativas. A conclusão (aterradora) é a seguinte: essas 608.000 pessoas (a maioria são homens, mas também há mulheres), supostamente 75% dos seus espectadores, se sentem muito mais próximos dos maus que dos bons. E, diante desse retrato a respeito deles, se ofenderam.

O homem castrado! A masculinidade questionada! Não é preciso mencionar que tudo isto é uma resposta. Uma resposta que deu assentos nas instituições da Espanha a membros desse partido que não deve ser nomeado, e elevou aos altares escritores, youtubers e jornalistas — tampouco merecem ser nomeados — que reclamam que o homem tem que ser um homem, UM HOMEM, frente a tanta correção política.

O anúncio da Gillette que desatou a polêmica em questão de horas

"É preciso ser politicamente incorreto!", clamam. Mas será que ninguém vê que incorreção política é isto que fez a Gillette, ao tentar pôr frente a um espelho alguns homens poderosos que sempre dominaram o mundo e que no recreio batiam nos que não jogavam futebol? Não, corrigimos: tenta pôr todos nós frente ao espelho. Reconheçamos: muitos homens alguma vez caímos em alguma das faltas que o anúncio aponta. Daí a aspiracionalidade da campanha: antes nos diziam para sermos bonitos, hoje nos dizem para sermos bons.

Mas nos esqueçamos deste anúncio por um momento. Vejamos as campanhas anteriores da marca, uma das mais rentáveis do mundo e avaliada em mais de 60 milhões de reais em 2018. Uma marca que, literalmente, nunca tinha incomodado ninguém.

Em uma propaganda da lâmina Mach3 em 2018, apareciam três jogadores de futebol jovens, atrativos e multimilionários. Muito bem, é um anúncio aspiracional. Assim como um de 2017, em que Griezmann se barbeava em um banheiro com acabamentos luxuosos e maior do que as salas das nossas casas. Um anúncio bonito, que pouco tem a ver com nossos próprios corpos e nossas próprias vidas. Mas assim era a coisa: a pessoa precisa ver uma ideia luminosa e melhorada de seu próprio físico e de seus próprios ideais numa campanha publicitária para decidir comprar produtos dessa marca. Isto era a publicidade.

Entretanto, chegou um momento em que até a publicidade se deu conta de que esse conceito estava corroído. As mulheres foram as primeiras a terem sua representação alterada, seja fisicamente (como nos anúncios onde aparecem mulheres de diferentes pesos, etnias e idades, como nas famosas campanhas da marca Dove) ou em sua vertente moral (da mulher seduzida, apaixonada e resgatada em anúncios de perfume dos anos oitenta e noventa passamos à mulher com iniciativa e sexualmente liberada).

O anúncio da Gillette fala de masculinidade real. Não nega a força do homem, mas o convida a usá-la para apartar brigas, não para criá-las. Não nega que um homem goste das mulheres, mas o convida a demonstrar seu amor por elas detendo os babões que as assediam

Os homens ainda não tinham passado por isso. Nós, nos anúncios de perfumes, cosmética masculina e moda, continuávamos (continuamos) sendo machos-alfa. Já fora deles, nos olhamos em espelhos como David Beckham (o homem esbelto e malhado, que atrai as mulheres, mas se enchia de cremes e era o ícone máximo da tão surrada metrossexualidade) e David Gandy (o homem-homem da velha-guarda, que adora carros e tem uma musculatura esculpida por Buonarroti). Na publicidade continuam nos divertindo exclusivamente com outros homens e nos deitando exclusivamente com mulheres.

O grande erro é acreditar que estes anúncios nos falavam de masculinidade. Não, todos esses anúncios falavam de virilidade.

O anúncio do Gillette é o primeiro — ou, se não, um dos primeiros — que fala de masculinidade real. Não nega a força do homem, mas o convida a usá-la para apartar brigas, não para criá-las. Não nega que um homem goste das mulheres, mas o convida a demonstrar seu amor por elas detendo os babões que passam a mão nos seus traseiros e as interrompem quando elas falam.

Muitas das críticas ao anúncio se indignam por pedir que os homens deixem de fazer todas essas coisas culturalmente associadas a ser homem (embora não sejam exclusivas dos homens), quando o anúncio só pede que sejam usadas para o bem comum. "Se não fosse por essa masculinidade tóxica que tanto criticam, não haveria os valentes que evitaram a ocupação nazista usando sua força no Desembarque da Normandia!", chegou-se a ler por aí.

Não, talvez a mensagem seja: se não fosse por essa masculinidade tóxica que não acredita na igualdade social e que opta pela porrada como solução dos problemas, talvez nenhum desembarque tivesse sido necessário. É a esse que o anúncio apela. Ele só quer vender lâminas de barbear, eu sei, mas é um começo.

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