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Confisco de salário, a ilegal prática disseminada nos Legislativos brasileiros

'Pedágio' pago por servidores a políticos já levou a cassação no Mato Grosso. Tema voltou à tona em caso que envolve ex-assessor de Flávio Bolsonaro, que nega acusação

Plenário da Assembleia Legislativa do RJ (Alerj) nesta quinta-feira, 13
Plenário da Assembleia Legislativa do RJ (Alerj) nesta quinta-feira, 13Julia Passos/Alerj
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O “pedágio” ou “mensalinho” que alguns políticos cobram de seus funcionários comissionados é ilegal, mas é mais comum do que se imagina. Desde o início dos anos 2000 são noticiados casos em vários Estados, o que já rendeu cassação de um parlamentar e o ressarcimento de recursos ao erário. Na prática, funciona assim: um profissional é nomeado como assessor em um gabinete e recebe um salário de, por exemplo, 2.000 reais. No mesmo dia em que esse valor cai em sua conta corrente, ele é obrigado a devolver parte dessa remuneração (de 10% a 70%) para alguma pessoa de confiança do parlamentar. Em geral, há um pacto de silêncio entre as partes: o assessor quer manter o emprego e depende do político que confisca parte do seu rendimento.

O tema voltou à tona por causa do caso de Fabrício José Carlos de Queiroz, ex-assessor do deputado estadual e senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL-RJ). Queiroz foi flagrado pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) movimentando 1,2 milhão de reais – valor cinco vezes superior a sua renda anual – , recebendo depósitos de ao menos nove servidores da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro em datas próximas aos pagamentos de salários e transferindo 24.000 reais para Michele Bolsonaro, mulher do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL). Por ora, nenhum dos Bolsonaro é investigado com relação ao caso e os políticos negam ter cometido qualquer irregularidade. Em privado, no entanto, os investigadores trabalham com a hipótese de que haja um esquema semelhante ao "pedágio". As suspeitas em torno do gabinete de Flávio Bolsonaro cresceram ainda mais com reportagem do Jornal Nacional, que mostrou que um servidor que fez uma transferência a Queiroz passou em Portugal mais da metade do tempo em que trabalhava para o filho mais velho de Bolsonaro.

A reportagem fez um breve levantamento em promotorias estaduais e encontrou que, de 2002 para cá, ao menos seis vereadores e dois deputados estaduais de São Paulo foram investigados por reterem parte dos salários de seus auxiliares. No Mato Grosso, um vereador foi cassado por essa razão. E no Rio Grande do Norte, outro sofreu uma sanção pública. A prática ilegal é tamanha que, nas últimas semanas, a Assembleia Legislativa de São Paulo promoveu uma aula para deputados recém-eleitos na qual alertava os parlamentares para os riscos criminais de se reter os salários de seus servidores. Eleita a deputada estadual mais votada do país, a advogada Janaína Paschoal (PSL-SP) revelou em seu Twitter parte da explanação feita por um servidor da Corregedoria da Assembleia. Ela disse, por exemplo, que dificilmente essa prática será coibida porque quem tem mais condições de denunciar o crime, o funcionário que paga esse pedágio, acaba sendo punido juntamente com o parlamentar que o contratou. “Um sistema só funciona quando há incentivos ao comportamento lícito! Punir o funcionário incentiva o comportamento ilícito”, afirmou a futura deputada, uma aliada dos Bolsonaro.

Um dos relatos recentes mais famosos do pedágio pago por assessores envolve o ex-vereador e humorista Marquito (PTB-SP), suspeito de abocanhar até 70% dos vencimentos de seus funcionários. Houve ainda duas vereadoras Lenice Lemos (DEM-SP) e Claudete Alves (PT-SP) que foram condenadas a devolverem cerca de 300.000 reais aos cofres públicos. A derrota nas urnas, contudo, foram as maiores punições dadas a esses três políticos. Nenhum deles conseguiu se reeleger desde que as suspeitas contra eles vieram à tona.

Quais são os próximos passos?

No momento, o caso do ex-assessor de Flávio Bolsonaro está com o Ministério Público do Rio, que tem nas mãos dados de movimentações atípicas de um grupo de servidores de vários partidos. Caso isso se desdobre em alguma investigação formal contra Flávio, há a possibilidade de o processo mudar de mãos pela segunda vez e subir vários degraus na escala judicial. Saltaria do Ministério Público do Rio de Janeiro para a Procuradoria Geral da República. A razão é que a partir de 1º de fevereiro Flávio ocupará uma das 81 cadeiras do Senado Federal.

O tema não é consenso entre operadores do Direito porque, em maio, o Supremo Tribunal Federal alterou o seu entendimento sobre a extensão do foro privilegiado para políticos. Na ocasião, os ministros concluíram que só responderão processos nas instâncias superiores caso tenham cometido o delito durante o cumprimento do mandato. Um exemplo, se um deputado empossado em 2019 estiver sendo processado por estelionato cometido em 2018, enquanto ainda não era parlamentar, ele será julgado no primeiro grau. No caso específico de Flávio (caso ele se torne investigado), sua esfera de julgamento seria o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que é a quem os deputados estaduais se reportam em casos criminais. Nesse meio tempo, antes possivelmente de que o processo tenha algum andamento efetivo, todos os suspeitos acabam beneficiados pelo recesso forense do Judiciário fluminense. Os principais serviços desse poder estarão suspensos entre 20 de dezembro e 20 de janeiro de 2019.

Impacto no Senado

Enquanto as desconfianças em torno do primogênito de Bolsonaro alimentam os opositores, que batizaram o caso de “Bolsogate”, a família ficou quase uma semana retraída, sem dar declarações a jornalistas. O silêncio foi quebrado na noite de quarta-feira pelo presidente eleito, que se manifestou por meio de uma transmissão ao vivo pelo seu perfil no Facebook, e por Flávio, que enviou uma nota à imprensa para se justificar. Afirmou Jair Bolsonaro: "Se algo estiver errado, seja comigo, com meu filho ou com o (ex-assessor) Queiroz, que paguemos a conta deste erro, porque nós não podemos comungar com o erro de ninguém".

Enquanto Flávio disse que não fez nada de errado, lamentou que seu ex-assessor tenha decidido falar apenas com o Ministério Público, queixou-se da cobertura midiática que pouco destaca o envolvimento de funcionários de parlamentares de outros partidos, como o PSOL, e disse que tem pressa que tudo seja esclarecido. “A mídia está fazendo uma força descomunal para desconstruir minha reputação e tentar atingir Jair Bolsonaro. Não acreditem nesse enredo absurdo que mídia criou para tentar manipular a opinião pública”.

Mesmo que não haja qualquer impacto legal, o caso pode ter custo político alto para Flávio Bolsonaro. Articulando para evitar que Renan Calheiros (MDB-AL) seja eleito presidente do Senado, Flávio recebeu recentemente um recado do alagoano: caso ele insista nesse veto, Calheiros poderia apresentar seu caso no Conselho de Ética da Casa como quebra de decoro parlamentar. Ainda assim, Flávio e outros apoiadores de Bolsonaro já declararam que tentarão barrar a candidatura de Calheiros.

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