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Juan Manuel Santos: “Construir a paz é mais difícil que consegui-la. Requer modificar preconceitos”

O Prêmio Nobel da Paz reflete sobre os acordos com as FARC e os desafios que seu país enfrenta. Nesta segunda-feira apresenta uma fundação para defender seu legado

O ex-presidente da Colômbia Juan Manuel Santos, em seu gabinete depois da entrevista
O ex-presidente da Colômbia Juan Manuel Santos, em seu gabinete depois da entrevistaCAMILO ROZO

Juan Manuel Santos (Bogotá, 1951) deixou a presidência da Colômbia há quatro meses com um único pedido ao seu sucessor, Iván Duque: defender os acordos com as FARC. Durante seus dois mandatos (2010-2018) ele alcançou a paz com a guerrilha mais feroz e antiga da América. Seus líderes se desarmaram, fundaram um partido político e agora participam do Congresso. Esse esforço lhe rendeu o Prêmio Nobel da Paz em 2016. No entanto, o ex-mandatário lamenta nesta entrevista a EL PAÍS não ter conseguido unir a sociedade. Acredita que a construção de um futuro de convivência será ainda mais difícil do que acabar com um conflito armado de mais de 50 anos, diz que não quer fazer declarações nem interferir na atual situação política na Colômbia, abalada nas últimas semanas pelas consequências do caso Odebrecht, e prefere se concentrar em seu legado. Para protegê-lo, apresentará nesta segunda-feira uma fundação, a Compaz, com a qual pretende continuar seu trabalho.

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Pergunta. O que busca com esta fundação?

Resposta. É para continuar o trabalho de construir a paz. Existem três componentes: a experiência que tivemos na resolução de conflitos para que os líderes regionais pudessem construir a paz, reduzir a pobreza e, em terceiro lugar, a reconciliação com o meio ambiente. Fizemos um trabalho muito proativo no Governo e queremos continuá-lo.

P. A fundação busca proteger seu legado. O senhor está preocupado para a possibilidade de que esteja em perigo?

R. Acho que a paz é irreversível. Terá dificuldades, como sempre teve. A construção da paz é mais difícil que a conquista da paz. Uma coisa é silenciar fuzis e outra coisa é construir a paz. Leva mais tempo, mais esforço para modificar sentimentos, preconceitos, modificar modos de pensar. Minha mensagem era que todos assumissem essa tarefa, porque todos os colombianos vão se beneficiar da paz, especialmente as novas gerações.

P. . O que o deixa mais orgulhoso e o que mais o preocupa na situação atual?

R. Não quero me referir à situação atual porque tomei a decisão de não interferir, mas posso lhe dizer algo muito importante. Li ontem um artigo do presidente Duque em que diz no primeiro parágrafo que o porto de destino, eu realmente gostei do uso dessa imagem, será a equidade. Nisso fizemos um grande esforço, um grande avanço e que bom que ele esteja construindo sobre o construído.

P. O senhor acha que o processo de paz pode ensinar algo à comunidade internacional?

Fiz um esforço muito grande para unir a Colômbia. Não pude. Este país está muito dividido

R. Que não há conflito que não possa ser resolvido, por mais difícil que seja. Ninguém na Colômbia achava que o que foi feito seria possível. Mas foi alcançado, com dificuldades, com defeitos, mas foi alcançado. E se as condições necessárias forem criadas e se for mantida a vontade política para a resolução dos conflitos pelas partes, qualquer conflito pode ser resolvido.

P. A sociedade colombiana mudou?

R. Pela primeira vez, a classe média começou a ser um setor majoritário. Os colombianos começaram a apreciar a necessidade de respeitar as diferenças, os opostos. Isso, claro, não foi concluído, mas o processo começou. É muito importante porque a Colômbia foi um país muito violento, com uma história de 200 anos de violência, e essa semente já está começando a dar frutos. A Colômbia também é um país que hoje é bem respeitado pela comunidade internacional e isso é algo que os colombianos apreciam porque eles agora viajarão para a Europa sem a necessidade de visto. Em termos gerais, não é mais um país pária, é um país totalmente diferente.

P. E essa sociedade está preparada para enfrentar sua memória?

R. Tomara que esteja, acho que sim. Nós, colombianos, somos maduros e responsáveis o suficiente para enfrentar o passado, entre outras coisas, para não repeti-lo. A Comissão da Verdade, que acaba de ser instalada, vai ajudar muito. Não será fácil, é duro, mas necessário. É um processo de catarse que qualquer sociedade que tenha experimentado tanta violência precisa ser capaz de viver em paz.

P. Qual foi sua decisão mais difícil?

O resultado do plebiscito teve muitíssimo a ver com esta polarização e esta distorção dos fatos

R.Tive muitas. Talvez uma das mais difíceis foi quando um comandante do Exército me disse que tinha localizado Alfonso Cano, que foi chefe das FARC, com quem de modo secreto já havíamos iniciado um diálogo, e pediu instruções e autorização para fazer uma operação para capturá-lo. Eu sabia que ele não iria se deixar capturar, mas essa decisão foi muito difícil porque o processo de paz estava em risco. Eu tinha colocado na mesa algumas regras muito claras do jogo, que a guerra continuava enquanto conversávamos e que até que tivéssemos acordos não haveria cessar-fogo. Respeitando as regras do jogo, autorizei essa operação. Foi uma decisão muito difícil.

P. E se arrepende de alguma coisa? O que poderia ter feito melhor?

R. Todos os líderes saem com um pouco de frustração por não terem podido fazer mais. Tiramos 5,5 milhões de colombianos da pobreza, mas ainda há muita pobreza na Colômbia. Triplicamos o número de rodovias no país, mas a infraestrutura ainda precisa avançar muito mais. Quando você olha para trás, sente algum tipo de frustração por não ter podido fazer mais, mas também me sinto frustrado porque fiz um grande esforço para unir este país. Não pude. Este país está muito dividido, muito polarizado, como a maioria dos países do mundo. A polarização paralisa, não permite boa governança.

P. Pensou em jogar a toalha?

R. Não. Senti muitos momentos de imensa frustração, mas nunca pensei em desistir de meus propósitos, que não eram somente a busca da paz. Eu tinha bem claro as prioridades do meu Governo. Segundo a CEPAL, nós fomos o país que mais reduziu as desigualdades nestes últimos anos do que qualquer outro da América Latina, mas sou o primeiro a reconhecer que as desigualdades na Colômbia ainda são vergonhosas.

P. Se tivesse que salvar três medidas do seu Governo, além da paz, quais seriam?

R. A educação nós colocamos como uma prioridade. A luta contra a pobreza e, um terceiro ponto, ao qual eu atribuo grande importância, além da infraestrutura, e que me dá mais satisfação e ao mesmo tempo mais frustração, é a questão ambiental. A Colômbia é um país muito especial em matéria ambiental. Somos o país de maior biodiversidade do mundo por metro quadrado, temos 37 páramos [ecossistema intertropical de montanha] que felizmente protegemos, triplicamos as áreas protegidas, tanto continentais quanto marítimas, mas também estamos vendo um terrível desmatamento, por exemplo, ao redor do parque de Chibiriquete. Isso tem que ser interrompido a todo custo e precisamos convencer o mundo a ser muito mais agressivo na tentativa de impedir as mudanças climáticas, porque senão nenhum dos habitantes do planeta sobreviverá.

P. Qual a sensação de ver o partido das FARC no Congresso? O senhor está preocupado com a atitude de figuras como Iván Márquez, que parece ter deixado o processo de paz e está atualmente desaparecido?

R. Veja, para mim, a fotografia de Timochenko votando pela primeira vez em sua vida, desarmado, como chefe de um partido político, foi a demonstração de que esse processo de paz estava de fato no caminho certo. Tratava-se de trocar as balas pelos votos, e isso foi feito. E ver os representantes das FARC no Congresso é algo muito, muito importante, algo que ninguém achava possível. Houve dificuldades? Claro. Houve pessoas que se sentiram de certa forma agredidas pelo que está acontecendo? É natural. Em todo processo de paz sempre houve manifestações de lado a lado. O que temos que fazer é consolidá-lo em nossas casas. E essa construção da paz tem que ser algo permanente, especialmente em um mundo como este em que estamos vivendo, tão polarizado, tão perigoso. Estou muito preocupado com o que está acontecendo no que se refere à falta de tolerância com as diferenças.

P. Nesse contexto de polarização, o plebiscito de 2016 foi um precursor da ascensão dos populismos e da nova maneira de ganhar as eleições no mundo?

R. Sem dúvida. E até mesmo o dirigente da campanha do não confessou isso publicamente. Isso demonstrou a eficácia do que hoje chamam de pós-verdades, as fake news. O mesmo aconteceu com o Brexit, que se deu algumas semanas antes. Mas, de fato, o resultado do plebiscito teve muito a ver com essa polarização e essa distorção dos fatos.

P. Como o senhor vê as mudanças políticas que estão ocorrendo na América Latina?

Todos os Governos dizem que lhes deixaram a panela raspada. Mas eu me reporto aos juízes mais implacáveis que existem, que são os mercados

R. Temos que esperar até que se assentem. Temos apenas alguns dias com o novo presidente do México [Andrés Manuel López Obrador] e o brasileiro [Jair Bolsonaro] ainda não assumiu. Um é populista à direita, o outro, populista à esquerda, não será uma situação fácil. Mas seria prematuro dizer qualquer coisa antes de ver como eles vão administrar seus respectivos países. Continuo insistindo que o melhor caminho é o terceiro caminho. Nem o populismo de direita nem o populismo de esquerda. Uma terceira via em que o regime liberal –no sentido literal da palavra, isto é, respeitando as liberdades do povo, os direitos fundamentais dos cidadãos– é a maneira mais apropriada para qualquer regime político.

P. O senhor pôs em prática uma política de substituição de cultivos e defende uma nova abordagem na luta mundial contra as drogas, que parece ter perdido o ímpeto.

R. O enfoque interoa que demos à solução desse problema em face do processo de paz é o único que nos permite uma solução estrutural. Com o que concordamos especificamente para este ano? Que seriam erradicados 70.000 hectares à força, e cerca de 40.000 a 50.000 como substituição voluntária, num total de 110.00 ou 120.000 hectares, bem mais de 50% da área total plantada. Isso está sendo cumprido, e o que eu desejo é que o Governo entenda que é a única maneira de realmente encontrar uma solução estrutural, porque a substituição voluntária vai dar alternativas aos camponeses para que não prossigam com o plantio. Estamos tentando erradicar a coca há 40 anos e nunca conseguimos, porque nunca conseguimos chegar aos agricultores para lhes oferecer alternativas viáveis. Hoje, com a paz, sim, podemos, por isso espero que esse enfoque não mude. O enfoque puramente punitivo já provou que não funciona, que foi um fracasso, e me parece que vai contra a corrente do que está acontecendo no mundo. Talvez os únicos nesse mesmo enfoque sejam os Estados Unidos e o presidente Trump, mas estão totalmente enganados: a crise dos opioides nos EUA é uma crise muito profunda que não vai ser solucionada metendo os consumidores na prisão.

P. Com relação a sua gestão econômica, o presidente Iván Duque garantiu que recebeu um país com um déficit significativo [cerca de 14 trilhões de pesos].

R. Não vou entrar em controvérsias com o presidente, mas vou dar um dado. De todos os países da América Latina, o único, nos últimos oito meses do meu governo até setembro deste ano, que conseguiu reduzir o prêmio de risco nos mercados internacionais foi a Colômbia, mesmo acima do Chile e do Peru. O que isso mostra? A força da economia colombiana e como os mercados perceberam o que fizemos durante esses oito anos. Conseguimos o grau de investimento. E apesar de a Colômbia ter sofrido o mais duro choque externo em sua história desde os dias da Grande Depressão dos anos 30, nós mantivemos este nível de investimento. Isso diz tudo. Todos os Governos dizem que lhes deixaram a panela raspada, que receberam déficits. Mas eu me reporto aos juízes mais implacáveis que existem, que são os mercados.

P. O assassinato de líderes comunitários e a violência contra defensores dos direitos humanos não cessaram na Colômbia. Por quê? O que o Estado deveria fazer?

R. Esse fenômeno, que obviamente me preocupou muito, tem várias origens. O principal é o combate ao narcotráfico e a substituição de cultivos. Uma parte dos líderes comunitários estava promovendo a substituição voluntária e os cartéis, entre eles os mexicanos, deram a ordem de matá-los porque, se tiverem sucesso, eles ficarão sem matéria-prima. Outra origem tem a ver com as disputas entre as diferentes gangues criminosas para assumir o controle dos corredores do narcotráfico. A terceira é que são precisamente áreas onde o Estado nunca esteve presente, onde todos os conflitos foram resolvidos por tiros, e isso também faz parte do processo de aprender que os problemas são resolvidos por meio do diálogo e das instituições. A construção da paz tem que ser reforçada cada vez mais, especialmente nas regiões onde o conflito foi mais severo. Mas é um fenômeno que deve preocupar a todos nós.

P. Como é um dia na nova vida de Juan Manuel Santos?

R. É uma vida maravilhosa, tive a imensa sorte de ter uma neta mais ou menos ao mesmo tempo em que deixei a presidência. Dedico-me à academia, à escrita, a fazer muito do que não pude fazer durante os oito anos na minha vida pessoal. Acredito que devo terminar o primeiro livro no começo do ano que vem.

P. Dizem que Team of Rivals: The Political Genius of Abraham Lincoln o marcou muito no momento de formar seu Governo. O que está lendo agora?

R. Acabei de terminar um livro do melhor biógrafo de Churchill sobre ele e os judeus, e vou comprar a última biografia de Churchill, Walking with Destiny, que me dizem ser a melhor escrita até hoje.

P. Não é paradoxal sua admiração por Churchill, um líder de tempos de guerra?

R. É que Churchill também teve que lidar com o mundo fazendo a paz, tudo o que foi feito após a Segunda Guerra Mundial. E aí a gente se dá conta de que é mais fácil fazer a guerra do que fazer a paz.

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