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Governo Bolsonaro encara pressão de atender 24 milhões sem médicos cubanos

Após decisão de Havana de rejeitar condições de eleito, Governo brasileiro lançará edital para preencher vagas. Outras 1.600 posições já estavam ociosas. Prefeituras protestam

Médico cubano atende no Acre.
Médico cubano atende no Acre. Arison Jardim/ Secom
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O Ministério da Saúde –atual e do futuro Governo Bolsonaro – terá que ser ágil na execução de um plano para evitar que cerca de 24 milhões de brasileiros fiquem sem assistência de saúde depois que o Governo cubano anunciou a retirada de seus profissionais do programa Mais Médicos. Havana, que envia 45% dos médicos para esse atendimento, se antecipou nesta quarta e resolveu rejeitar as condições exigidas pelo presidente eleito Bolsonaro, entre elas a obrigação de que os profissionais revalidem o diploma no Brasil e que sejam pagos diretamente, e não por meio de um controverso convênio com o regime cubano. A decisão, que preocupa representantes das prefeituras de todo o país, deixará um buraco de 8.332 vagas em aberto, que se somam a outras 1.600 que já estavam ociosas, segundo o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). As regiões que deverão ser mais afetadas são justamente as mais vulneráveis: Norte, Nordeste e periferias das grandes cidades. Ainda não se sabe exatamente quando os médicos cubanos deixarão o país, mas os profissionais só deverão ficar, no máximo, até o fim do Governo de Michel Temer, em dezembro.

Na tarde desta quarta-feira, o Ministério da Saúde anunciou algumas medidas para tentar garantir o serviço de saúde aos brasileiros. Sem especificar uma data exata, informou que nos próximos dias lançará um edital para a contratação de médicos brasileiros que queiram ocupar as vagas de cubanos. Nessa convocação, a prioridade é para brasileiros formados no Brasil, seguida de brasileiros formados no exterior, médicos intercambistas e estrangeiros. Outro edital já havia sido prometido pelo ministério à Frente Nacional de Prefeitos para contratar profissionais para as 1.600 unidades de saúde que já estavam sem médico há seis meses no Brasil e eram motivo de pressão feita pelos prefeitos ao Governo federal. Isso significa que, para garantir a cobertura integral no Programa Saúde da Família, o Governo brasileiro terá que contratar quase 10 mil médicos em poucos meses.

"No último edital lançado para a contratação, tivemos 13 mil médicos inscritos no programa. Então agora é esperar abrir essas dez mil vagas e ver se os médicos brasileiros vão se inscrever e aceitar ir para as periferias e para as comunidades indígenas e quilombolas", diz o presidente do Conasems, Mauro Junqueira. Ele explica que a dificuldade histórica dos gestores de saúde municipais é conseguir fixar os médicos nas áreas de maior vulnerabilidade. Junqueira acredita que o Governo brasileiro pode conseguir repor as vagas deixadas pelos especialistas cubanos, mas teme que os trâmites burocráticos para as contratações possam deixar um vácuo de dois ou três meses, o que prejudicaria a assistência, já que os profissionais cubanos representam hoje quase a metade (45,6%) dos médicos do Programa Saúde da Família. "Tudo vai depender da celeridade do Ministério da Saúde agora", diz.

De acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), o Brasil conta o número de médicos formados no país são suficientes para suprir a demanda da população. Por meio de nota, o conselho, sem crítico do atendimento dos estrangeiros, reiterou, porém, que cabe ao Governo oferecer condições de trabalho adequadas aos profissionais, como "infraestrutura de trabalho, apoio de equipe multidisciplinar, acesso a exames e a uma rede de referência para encaminhamento de casos mais graves", uma estrutura ainda distante da oferecida nos municípios. Para estimular a fixação dos médicos brasileiros em áreas vulneráveis e isoladas, o CFM explicou que o Governo "deve prever a criação de uma carreira de Estado para o médico, com a obrigação dos gestores de oferecerem o suporte para sua atuação, assim como remuneração adequada".

O presidente eleito Jair Bolsonaro já havia proposto a criação de uma carreira de Estado durante a campanha eleitoral, mas não chegou a explicar como poderia fazê-la, num contexto de crise de contas do Estado. Para suprir as vagas, o Ministério da Saúde também estuda a possibilidade de negociar com os alunos formados em medicina através do FIES (Programa de Financiamento Estudantil). No entanto, essa ação só será adotada se houver entendimento com a equipe de transição de Bolsonaro.

A possibilidade de um colapso no atendimento de saúde vinha causando apreensão em prefeitos brasileiros, que já haviam acordado uma reunião com a equipe de transição do presidente eleito Jair Bolsonaro para o próximo dia 27 de novembro com o intuito de fazer a defesa ao programa Mais Médicos, alvo de críticas reiteradas do presidente eleito e parte da sua cruzada contra a suposta influência "esquerdista" no país. Bolsonaro questionou a qualidade de formação dos médicos cubanos, ainda que seja um programa referendado pela OPAS (Organização Pan Americana da Saúde), e propôs que os profissionais que estão no Brasil se submetessem ao exame Revalida para continuar no programa, uma velha reivindicação de entidades de classe médicas brasileiras. Além disso, a exigência do novo Governo é que a única via de contratação passe a ser individual, garantindo que o profissional ficasse com todo o salário. Até então, os médicos estrangeiros do programa não necessitavam prestar o exame e a contratação era feita por meio da Opas (Organização Panamericana de Saúde), de maneira que uma parte do salário ficava com o Governo cubano e cerca de 25% da remuneração era direcionada ao profissional.

Sem clareza sobre a transição

Havana não aceitou as condições de Bolsonaro e decidiu antecipar a retirada do Mais Médicos do Brasil –o que deve também ser um duro golpe para as frágeis contas públicas do regime cubano– e jogar para o eleito o ônus de propor alguma transição e/ou solução. O presidente do Conasems, Mauro Junqueira, disse ter sido surpreendido com a decisão na tarde desta quarta-feira. "Entendo que Cuba está sendo precipitada nesse processo porque pelo menos até o dia 31 de janeiro o presidente ainda é Michel Temer", declara. Segundo o gestor, representantes do Ministério da Saúde e das prefeituras vinham se reunindo a cada dois meses com representantes cubanos para avaliar o programa e o acolhimento dos médicos no país com êxito. "Os pagamentos estavam em dia, tudo parecia bem", acrescenta.

Junqueira critica que a retirada dos profissionais cubanos ocorra de forma imediata e defende que seria razoável que o Governo cubano desse um prazo de 90 a 180 dias ao Brasil. "Não estamos trocando mercadorias e sim pessoas, profissionais. Mas as movimentações nos indicam que eles vão sair antes do fim do ano", afirma. Diante da gravidade do problema, o gestor diz que o Conasems e a Frente Nacional de Prefeitos estão se articulando para cobrar o governo e evitar maiores prejuízos à população. Nesta quinta-feira, haverá uma reunião com a Embaixada de Cuba para esclarecer a decisão. Na semana que vem, haverá outra reunião com o ministro da saúde. Junqueiras conta que os prefeitos estão muito incomodados, especialmente aqueles de municípios de pequeno porte que só têm médicos cubanos. "São 3.248 municípios no Mais Médicos e uns 600 deles só com médicos cubanos. Há um receio de que a gente não consiga repor nesses lugares", explica.

O presidente eleito Jair Bolsonaro se pronunciou nesta quarta-feira sobre essa questão e considerou a "decisão unilateral" de Cuba uma "irresponsabilidade". Ele voltou a criticar o acordo feito no governo do PT com a ilha e disse que os profissionais enviados ao Brasil se submetem a "trabalho escravo". Segundo o novo presidente, as vagas que serão deixadas poderão ser ocupadas por brasileiros. "Estamos formando em torno de 20 mil médicos por ano, e a tendência é aumentar esse número. Nós podemos suprir esse programa com esses médicos. O programa não está suspenso. (Médicos) de outros países podem vir para cá. A partir de janeiro, pretendemos dar uma satisfação a essas populações que ficarão desassistidas", declarou em entrevista coletiva.

O presidente também disse que o Brasil poderá dar asilo aos médicos cubanos que queiram continuar no país –uma medida com potencial para irritar ainda mais o regime cubano e que pode atrair parte dos profissionais. Um pequena parcela do contingente cubano no país, estimada em cerca de 2%, já protestava contra as condições do contrato indireto, via Governo cubano, e pleiteava permanecer no Brasil.

Programa teve 20 mil colaboradores em cinco anos

O Programa Mais Médicos, implementado durante o governo da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) em 2013, foi um dos alvos de polarização política durante as últimas eleições. Foi implementado há cinco anos para que os profissionais cubanos ocupassem as vagas não cobertas pelos médicos brasileiros, geralmente em zonas mais isoladas e pobres. "Nesses cinco anos de trabalho, cerca de 20 mil colaboradores cubanos atenderam a 113.359.000 pacientes em mais de 3.600 municípios", afirma a nota através da qual o Ministério de Saúde Pública de Cuba anunciou a retirada do programa do Brasil. O Mais Médicos foi criticado pela classe médica brasileira desde a sua implementação. A Associação Médica Brasileira (AMB) entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal ainda em 2013, alegando que o programa promovia "o exercício ilegal da medicina" pela não exigência dos exames de revalidação de diploma pelos estrangeiros. No final do ano passado, o STF negou o pedido por 6 votos a 2, e o programa foi considerado legal. Entidades de prefeitos e secretários municipais de saúde têm avaliado positivamente o programa na garantia de profissionais em áreas vulneráveis, onde historicamente têm tido dificuldade de fixar o médico brasileiro. No ano passado, o governo cubano já indicava uma crise com o Brasil, quando decidiu suspender o envio de 710 médicos pelo descontentamento com o número de profissionais que, terminado o prazo de três anos no programa, ganharam na Justiça o direito de permanecer no Brasil.

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