Um ano depois, sobreviventes da chacina do Salgueiro não foram ouvidos pela Justiça Militar
Caso foi o primeiro depois de lei de Temer que transferiu para Justiça Militar homicídios de civis por membros das Forças Armadas
Fábio – o nome é fictício – é um rapaz extremamente doce e tímido. Fala baixinho, quase sempre apenas uma frase, e somente responde ao que é perguntado. A maior parte do tempo, com a cabeça baixa. Franzino, anda com as mãos encurvadas e a perna esquerda em uma bota ortopédica. Ainda hoje não consegue caminhar com o pé no chão porque dói.
Um ano depois, as mãos já não doem, mas os dedos perderam a capacidade de fazer o movimento que lhe era mais caro: amassar a massa de pão, tarefa que amava. Ele era padeiro desde os 13 anos numa padaria do seu bairro, o Salgueiro, na cidade de São Gonçalo, Rio de Janeiro.
Na madrugada de 11 de novembro de 2017, ele deixou de ser padeiro e passou a ser sobrevivente. Hoje, aos 20 anos, é um dos poucos que têm uma memória vívida de um dos episódios mais sombrios das operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) realizadas pelo Exército no Rio de Janeiro, que ficou conhecido como a chacina do Salgueiro.
Naquela sexta-feira, pouco depois da meia-noite, homens vestidos com uniformes pretos, capacetes, gorros passa-montanha, escondidos no morro Pé da Serra, atiraram com fuzis com mira a laser em pelo menos dez pessoas que transitavam na estrada das Palmeiras, ao lado do conjunto de casas conhecido como Condomínio da Marinha.
Fábio não é um herói. É uma pessoas comum. Naquela noite, sentiu medo, muito medo. “Eu só pensava que ia morrer”, lembra. Como nos demais dias da semana, saiu às 15 horas da padaria, descansou, foi para a casa da namorada. Voltou depois da meia-noite e, no percurso, combinou de encontrar um amigo que ganhava o sustento vendendo pipoca no terminal de ônibus de Niterói. “Ele fez baldeação de ônibus. Aí dei carona a ele de moto”, disse ele em entrevista à Pública. Pouco antes de entrar na rua das Palmeiras, ele ouviu rojões – sinal de que havia operação policial. Mas seguiu caminho.
“Quando eu cheguei mais pra frente é que eu comecei a sentir os tiros batendo na minha mão. Na minha mão e na minha perna. Aí eu fui surpreendido por esses tiros. Eu e meu colega. Foi tudo junto. Eu e ele e caímos da moto”, relata o jovem. “Aí ele levantou, tentou bater no portão, pedir ajuda ao morador lá, ninguém atendeu. Eu me arrastei pra dentro do valão e fiquei na beira do valão escondido.” Agachado dentro de uma vala, ele sentiu uma poça de sangue se formar debaixo de si. Até então, não tinha visto os atiradores. Sabia apenas que os tiros partiram da mata.
“Depois de um tempo assim, uns dez minutos, os policial saíram da mata, de onde eles tavam”, diz. Os homens – uns seis, segundo ele – quebraram as lâmpadas dos postes da rua e das casas e foram na sua direção. “Aí foram até ele [o amigo], pensaram que ele tava morto, aí depois vieram pra cima de mim. Pegaram meu telefone e falaram que iam voltar pra me matar.” Foi a primeira de duas ameaças de morte que ele receberia em poucas horas. “Eles tavam tudo de roupa preta escura, só dava pra ver o olho deles. Estavam com fuzil. Tinha mira a laser e parece que tinha um flash, uma luz também no capacete deles”, lembra-se.
Ele diz que, nas cerca de duas horas que ficou no chão, ouvia ainda outras pessoas agonizando perto deles. “Eu só pensava que ia morrer.”
A segunda ameaça
Fábio não recebeu nenhum tipo de socorro, e os homens voltaram a se recolher para o mato. Só foi socorrido porque sua irmã mais velha foi avisada de que ele estava baleado. Ela foi chamar o patrão e algumas amigas para irem buscá-lo.
Fábio teve a perna transfixada – o tiro de fuzil rompeu o tendão e atrofiou o nervo da perna, além de quebrar seu pé. Quatro dedos em uma mão e um dedo na outra foram esmagados. Mas o amigo parecia pior: o tiro de fuzil havia pego no lado esquerdo do rosto, e a bochecha estava aberta, com sangue jorrando. Assim mesmo, os dois foram levados em um carro comum até o pronto-socorro mais próximo, sacolejando.
Apesar de ter sido atingido por três tiros, Fábio ficou poucas horas no Centro de Tratamento Intensivo. Mas, enquanto estava lá, por volta das 4 horas da madrugada, ele viu a porta abrindo e três homens entrarem, uniformizados com as camisas cinzentas da Polícia Civil. “Chegou uns policial da civil me ameaçando. Falando pra mim falar a verdade, que eu era bandido, onde tava minha arma, onde tava minhas drogas, pra eu falar a verdade que senão eles ia furar o negócio do meu soro pra me matar. Eu tava lá dentro sozinho, minha tia tava lá fora. Falei que eu era trabalhador normal. Aí depois eles pegaram, pediram meu nome tudo, falaram que ia puxar pra ver se eu era bandido ou não, que se tivesse eles iam voltar lá.”
Não apareceram mais.
O depoimento de Fábio e de outras testemunhas oculares tem sido fundamentais para entender o que aconteceu naquela operação, que ainda hoje é cercada de segredo. Segundo o defensor público do estado do Rio de Janeiro, Daniel Lozoya, os testemunhos apontam para a autoria do Exército. “A arma de mira a laser tanto a Core tem como o Exército. Mas só o Exército tem capacete com visão noturna e visão térmica”, afirma. Tanto a Core, uma força de elite da polícia civil fluminense, quanto o Exército reconhecem ter estado na cena do crime. “E o laudo pericial é compatível com a versão que eles contam, que os disparos vieram da mata, e uma angulação de cima para baixo, uma trajetória descendente”, resume.
O que de fato aconteceu naquela noite ainda é um mistério – e não é por acaso. Policiais e militares reconhecem que estiveram no local, mas negam a autoria dos disparos. Existem atualmente três procedimentos abertos para investigar a chacina: uma investigação no Ministério Público Militar (MPM), para apurar o envolvimento dos militares; um procedimento do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública do Ministério Público Estadual (Gaesp); e um inquérito na Delegacia de Homicídios de Niterói e São Gonçalo. A investigação foi fracionada porque a chacina do Salgueiro ocorreu apenas um mês depois da aprovação da Lei 13.491/2017, que transferiu da Justiça Federal para a Justiça Militar a competência para investigar homicídios de civis cometidos por militares.
O delegado da Polícia Civil que investiga as mortes, Marcos Amin, lamentou ao EL PAÍS as limitações que a lei impõem à sua investigação – por exemplo, os peritos não podem requisitar as armas dos militares para analisar se o disparo partiu delas. Os problemas não param aí, explica o defensor Daniel Lozoya.
“Acompanhamos os três procedimentos. Nós estamos representando as vítimas e elas têm direito de acessar os procedimentos e serem ouvidas. Porém, no MPM ele [Fábio] nunca foi convidado a depor. E o MPM negou entregar uma cópia do procedimento para a gente. O caso vai fazer um ano, a gente já pediu e até hoje não foi feito exame de corpo de delito”, diz Daniel. “A hipótese mais plausível é que havia homens na mata”, completa. “Essa é uma hipótese que precisa ser investigada.”
Em entrevista à Agência Pública, a promotora do Ministério Público do Rio de Janeiro, Andrea Amin, confirmou que o inquérito a respeito dos membros do CORE concluiu que eles não são autores dos disparos. “Não há indícios mínimos acerca da participação dos policiais da CORE nos homicídios”, afirma Andrea. Segundo ela, a investigação deve ser concluída ainda essa semana e a peça do MP deve ser encaminhada à justiça. “Vamos fazer alguns encaminhamentos para a corregedoria investigar eventual falha de normas de segurança e procedimental. Mas não houve crime imputável aos policiais”. Ela afirma ainda que o inquérito não julgou que houve omissão por parte dos policiais no socorro às vítimas. “Não foi constatado omissão de socorro da polícia civil, porque a única vítima que avistaram já estava sendo socorrida por familiares”. Ela relembra que, embora tenha entrevistado os militares que participaram da operação, o MP não pode investigar a conduta dos membros das Forças Armadas. “Só o MPM pode falar dos militares”, resume.
A Defensoria estadual denunciou o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), pedindo a responsabilização da cadeia de comando da operação: de Michel Temer, do comandante militar do Leste, general Walter Braga Netto, do governador Luiz Fernando Pezão e do secretário de Segurança Pública na época, Roberto Sá. A Comissão já pediu mais informações ao Estado e deve decidir em breve se instaura um processo contra o Brasil pelas violações, exigindo reparação das famílias das vítimas.
A promotora responsável pelo caso na Justiça Militar, Maria de Lourdes Sanson, foi contatada pela Pública, mas declinou. “Esclareço que não concedemos entrevistas sobre casos em andamento”, escreveu por e-mail. Questionada se há alguma previsão de conclusão da investigação, a assessoria de imprensa do MPM informou apenas que a equipe está “aguardando documentos requisitados à polícia civil”.
O que se sabe até hoje
Embora haja poucas informações públicas sobre os desdobramentos das investigações, alguns detalhes vieram à luz graças ao trabalho do repórter Rafael Soares, do jornal Extra.
A chacina ocorreu quatro dias depois de uma megaoperação de GLO no Salgueiro, conhecido como reduto do Comando Vermelho em São Gonçalo. A operação contou com 3.500 homens das Forças Armadas, além de homens das polícias Civil, Militar Federal e Rodoviária Federal. Os militares fizeram um cerco terrestre e marítimo. Na ocasião, dois policiais rodoviários foram baleados, cinco homens foram presos e um menor, apreendido. “Não teve mortes mas teve um resultado pífio em relação a uma operação desse porte, em termos de armas e drogas”, explica Daniel Lozoya.
Reportagem do Extra revelou pouco depois a razão do fracasso. Segundo a reportagem, houve uma reunião no dia anterior na qual a cúpula das forças de segurança estadual e as Forças Armadas definiram um plano para encurralar traficantes do Complexo do Salgueiro. O plano era entrar na favela pela Rodovia BR-101 com caveirões, forçando os criminosos a buscar a única rota de fuga possível, pela estrada das Palmeiras. Ali, seriam surpreendidos por homens do Exército que se infiltrariam na mata na noite anterior, deixados por helicópteros. Um roteiro muito similar ao que ocorreu quatro dias depois, na noite da chacina.
O Comando Militar do Leste (CML) reconheceu a existência da reunião e o uso de helicópteros por meio de uma nota, mas nega que helicópteros tenham sido usados de novo na véspera da chacina. O defensor Daniel Lozoya explica que, em contraste, há “relatos de que houve operação em helicóptero, que pessoas podem ter sido deixadas de rapel e teriam sido retiradas na mata nessa operação do dia 11”. A informação chegou à Defensoria por meio do aplicativo Defezap.
Além disso, a perícia feita pelo perito criminal da Delegacia de Homicídios horas após as mortes colheu relato de moradores, que “davam conta de disparos vindos do interior da mata”. Segundo os peritos, os elementos da cena do crime apontam “verossimilhança em tais relatos”.
A presença de 13 homens do 1º Batalhão de Forças Especiais do Exército, vindos da sede em Goiânia, também foi admitida pelo CML após reportagem do jornal Extra. Os homens foram entrevistados pela procuradora Maria de Lourdes Sanson e três auxiliares do MPM. “As armas estão à disposição dos promotores, e eles podem provar que não fizeram nenhum disparo”, reiterou o porta-voz do CML, coronel Roberto Itamar.
Por que militares e policiais da Core estavam no local da chacina?
O coronel refere-se a mais uma peça desse quebra-cabeça. Nas primeiras horas do dia 11 de novembro, houve uma operação conjunta da Core e das Forças Especiais do Exército. Segundo a versão oficial, o comboio era formado por dois veículos blindados do Exército e um da Core, carregando mais de 30 homens. Militares e policiais afirmam que não dispararam, mas “ouviram intensos tiroteios”.
Em seu depoimento à Delegacia de Homicídios de Niterói e São Gonçalo, Rodrigo Teixeira, ao qual a Pública teve aceso, delegado e coordenador da Core, explicou que teria procurado o apoio logístico das Forças Armadas para “aprofundar o mapeamento do local”. “Neste percurso verificou-se a presença de alguns indivíduos baleados caídos ao chão, tendo sido arrecadado junto a estes farto material bélico e entorpecentes conforme apreensão apresentada nesta UPJE [unidade de polícia judiciária]”, afirmou.
No local os policiais da Polícia Civil apreenderam um fuzil, sete pistolas, munições e drogas. Segundo eles, o material estava com seis das vítimas mortas. No dia seguinte a Civil divulgou ainda que “três dos sete mortos tinham antecedentes criminais”.
A vítima Marcelo Silva Vaz, de 32 anos, não teve nenhum objeto ilícito encontrado em sua posse. Vaz era motorista de Uber e chegou a fazer um vídeo do Facebook mostrando sua rotina de trabalho, segundo revelou reportagem do Extra.
Baleado naquela noite, o mototaxista Luiz Otávio Rosa dos Santos, de 27 anos, prestou depoimento ao Ministério Público Estadual antes de morrer, pouco menos de um mês depois. “Por volta de 1h00 de sábado saiu para buscar um passageiro próximo à Guarita da Marinha, em direção à Palmeira. Quando estava chegando ao local ouviu tiros, muitos, tiros altos, típicos de fuzil. Os tiros vinham da mata na direção das casas que ficam do outro lado da estrada das Palmeiras. Sentiu uma dor nas costas, saiu da moto, pediu ajuda a um morador que ligou para sua esposa. O declarante viu luz vermelha e fogo saindo das armas de quem atirava da mata. Viu uns cinco ou quatro pontos de infravermelho.”, afirma o texto ao qual a Pública teve acesso.
Os membros das forças policiais não chamaram os serviços de emergência e, segundo um relatório da organização internacional Human Rights Watch, dificultaram o acesso ao local a moradores e familiares dos feridos. Luiz Otávio disse, em seu depoimento, que a esposa só conseguiu levá-lo ao hospital às 6 da manhã.
Traumas e cicatrizes
Quando a mãe de Fábio chegou ao hospital, na manhã do dia 11 de novembro, o padeiro pediu desculpas. Tinha prometido que não sairia de casa naquela noite. “Ele tava abalado. Tava todo inchado, com o rosto todo deformado”, lembra ela. Suas mãos foram operadas só uma semana depois, para a reconstrução dos ossos dos dedos. Desde então, a recuperação tem sido lenta. Fábio teve que lidar com o medo sozinho, sem nenhum apoio psicológico. A mãe brigava.
“Passava um carro na rua e ele começava a gritar que nem um maluco dentro de casa. Ele botava a mão na cabeça assim. E começava a tremer”, lembra ela. “Aquilo me deixava nervosa, porque eu falava, ele não é maluco. Aí agora ele toma três tiros, tipo assim, acabaram com a vida dele, né? E se ele continua com essa neurose de qualquer barulho?”, lembra
“Eu acho que ele ouviu muito tiro naquele dia.”
Os tremores só passaram quando a família se mudou para longe da casa antiga. “Quando saímos de lá, ele melhorou bastante”, diz. A mãe explica que a mudança foi feita por segurança. “Um sobrevivente de uma chacina pode prejudicar um quartel inteiro, né?”
Fábio ainda espera o começo da fisioterapia e vai passar por mais uma operação para poder retomar o movimento no pé. “Agora ele não tem recursos mais pra trabalhar. O dinheiro dele entrava, ajudava a gente, nós não passava necessidade igual a gente passa agora”, diz a mãe. No dia em que conversou com a reportagem, ela ia buscar uma cesta básica numa igreja para alimentar a família.
Quanto aos movimentos nas mãos, Fábio espera que o resultado da ação por danos morais e materiais que deve ser impetrada pela Defensoria contra a União ajude com os cuidados que serão necessários para o resto da vida. Então, quem sabe, ele pode voltar a fazer o que mais sente falta: pão. “Pão de sal mesmo, pão francês, pudim, quindão, pão doce, sonho, torradas, empadão”, declama baixinho.
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