“Calaram Marcos Vinícius, mas não vão me calar”
Bruna da Silva, mãe de estudante morto em junho durante operação policial no Rio, fala do luto e de sua decisão de exigir responsabilidade do Estado pela tragédia
Bruna da Silva corre. Pendurada em seus ombros está uma mochila laranja com cadernos e o uniforme de escola manchado de sangue de seu filho Marcos Vinícius, o adolescente de 14 anos assassinado durante uma operação policial no Complexo da Maré em 20 de junho. Atrás dela, dois policiais militares a perseguem com as mãos nas pistolas presas em suas cinturas. Uma viatura segue o movimento.
— Por que você correu? Eu por acaso saí da viatura dando tiro? — disse, agressivo, um dos policiais enquanto abria a mochila para revistá-la.
— Desculpa, senhor, meu filho foi morto no mês passado por policiais e eu me assustei.
— Aqui morrem policiais e bandidos sempre. Eu por acaso matei o seu filho? — replicou, ríspido, o agente.
A cena, que se desenrolou diante da reportagem, ocorreu às três horas da tarde da última quarta-feira, 25 de julho. A mãe de Marcos Vinícius havia concordado em conversar com o EL PAÍS e o ponto de encontro era em frente a uma passarela da Avenida Brasil, na entrada da Vila do João, uma das favelas da Maré. Viu o momento em que uma viatura se aproximava até estacionar ao seu lado. Desconfiada, mas sem ser abordada, Bruna seguiu em direção ao local exato do encontro. Havia tomado certa distância quando o veículo começou a segui-la até se aproximar novamente. Assustada, começou a correr.
— Está tranquilo, marcamos de nos encontrar aqui para uma entrevista. — expliquei ao policial — Ela não tem nada e não fez nada, só se assustou.
— E você está se metendo por quê? Aqui não tem ninguém tranquilo. Não fode. — retrucou o PM.
Os policiais desistiram da abordagem e nos mandaram ir embora, sem revistar mais ninguém. “É a primeira vez que isso acontece. Não sei o que poderia ter acontecido se vocês não estivessem aqui, talvez tivessem me colocado dentro da viatura e me levado”, diz Bruna, que havia contado para duas pessoas em uma ligação de seu telefone celular sobre a hora e o local de nosso encontro. Ela teme estar sendo perseguida pelo que vem fazendo há pouco mais de um mês: denunciar que a responsabilidade pela morte de seu filho é do Estado e exigir Justiça. "Eu não escolhi o luto, escolhi a luta", afirma. "Calaram o Marcos Vinícius, mas não vão me calar. Ainda tenho a minha filha, não pode acontecer com ela. Essa luta é por ela. Se eu escuto tiros vindo de longe, a primeira coisa que faço é ver se ela está em casa".
Bruna, 36 anos, mora com seu marido Gerson, 37, e sua filha Vitória, 12, em uma pequena casa de alvenaria na Vila do Pinheiro, uma das 16 comunidades que formam o Complexo da Maré, um bairro da zona norte do Rio de Janeiro espremido entre duas vias expressas do Rio de Janeiro, a Avenida Brasil e a Linha Vermelha, à margem da Baía de Guanabara. Na entrada há muitas plantas verdes, um pedaço de madeira velha que serve de portão e um pano florido na porta. Do lado de dentro, sofá, televisão, caixas de som, pia, fogão e geladeira ocupam o mesmo ambiente. Toda a família dorme no quarto ao lado, sem janelas, mas com um aparelho de ar-condicionado, colchão de casal no chão, cama de solteiro e outro sofá. Uma escada, na qual só é possível andar agachado, leva até a laje da família, onde fica Pit, uma pitbull marrom. Foi nessa casa que Marcos Vinícius cresceu, rodeado de vizinhos e amigos que são como família. "Era o menino mais lindo do mundo. Parecia um franguinho de tão magrinho. Bem pequenininho, mas com saúde", diz Bruna ao lembrar do nascimento do filho, em 3 de fevereiro de 2004, às três e quinze da tarde. "Pesava dois quilos e 260 gramas".
Com sua voz forte, meio rouca, mas sem nunca falhar, mesmo nos momentos mais emotivos, Bruna segue fortalecendo seu novo discurso. Diz querer representar as crianças que vivem em favelas. "O Estado não tem noção do que faz. Elas são pequenas, vão crescer achando que polícia assassina estudante. Isso tem que mudar", diz, sentada no sofá e já encarnada em seu novo papel de também ativista pelos direitos humanos, somando-se a outras dezenas de mães do Rio que também perderam seus filhos pelas mãos de policiais. Conversa com elas em grupos de WhatsApp, participa de reuniões, comparece em protestos... Recebe ajuda e se sente ativa. Em pouco mais de um mês, desde que a tragédia tomou sua casa, já esteve em Brasília denunciando a violência da polícia na Câmara dos Deputados e já apareceu no programa Profissão Repórter, da TV Globo, falando sobre as notícias falsas envolvendo seu filho — fotos de meninos, erroneamente apontados como sendo Marcos Vinícius, segurando armas foram massivamente compartilhadas nas redes sociais. "Se eu me calasse diante de todas essas fake news, meu filho ainda ficaria com má fama. Porque eles assassinam e ainda colocam a vítima como vilão".
Sempre que sai "em nome de Marcos Vinícius", leva a mochila laranja e o uniforme da escola ensanguentados. No momento, não busca os responsáveis diretos pelo crime, mas exige que o poder público seja responsabilizado. "Naquele dia 20, o Estado deveria ter olhado para o meu filho e abrigado ele. Seria tão bonito se isso tivesse acontecido. Mas o Estado mirou, alvejou e assassinou. Eu fico triste falando mal da polícia do Rio, mas ela errou comigo muito feio".
Rajadas e rasantes
A Maré, com seus 800.000 metros quadrados e cerca de 130.000 habitantes, segundo o censo do IBGE de 2010, é dominada majoritariamente pelas facções rivais Comando Vermelho (CV) e pelo Terceiro Comando Puro (TCP) — mas também por milicianos, em determinadas zonas. Naquela manhã de 20 de junho, o Exército e as polícias Civil e Militar decidiram entrar de surpresa na Vila do Pinheiro e Vila do João com o objetivo de buscar os responsáveis pela morte de um delegado em Acari, um bairro vizinho.
Marcos Vinícius havia acordado atrasado, 7h30 da manhã, para a escola. Sua aula começava 8h, mas ele ainda precisava fazer uma parada na casa de um colega para que os dois fossem juntos. Quando finalmente estavam a caminho, por volta de 8h30, um helicóptero da polícia civil fazia voos rasantes na Maré, provocando pânico. Nos vídeos que circularam no próprio dia era possível escutar o barulho de tiros, os quais moradores garantem que estavam sendo disparados da aeronave em direção ao solo. Blindados haviam tomado o local. Nas salas e corredores do Ciep Operário Vicente Mariano, a escola municipal onde os dois colegas queriam chegar, estudantes se agachavam para se proteger.
Decidiram então fazer o caminho de volta. Estavam com a camiseta do colégio e mochila nas costas, mas não adiantou: Marcos Vinícius, que tentava se proteger perto de paredes e pilastras, tomou um tiro na região da lombar. A bala atravessou seu corpo. Moradores levaram o garoto e seu amigo, testemunha do caso, para uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), em meio a vários disparos. Daquele dia restaram as marcas de bala no concreto e no chão.
Operações policiais com intensos tiroteios são frequentes na Maré, que chegou a ser ocupada entre abril de 2014 e junho de 2015 pelas Forças Armadas, assim como os dias sem aula nas escolas. Naquela dia, não deu tempo sequer de suspender as aulas. A Prefeitura tampouco havia sido avisada da operação. Além de Marcos Vinícius, outras seis pessoas, consideradas suspeitas, morreram. Ainda assim, a Polícia Civil considerou a ação um êxito, segundo um relatório interno divulgado pela Globo News. Nenhuma autoridade da intervenção federal, decretada no Rio há quase seis meses, se pronunciou publicamente sobre o caso. "Na minha comunidade, o primeiro a dar o tiro é sempre o Estado. Por isso tem tiroteio. Se o Estado visse com mandado de prisão, a mãe do traficante seria a primeira a entregar o filho para a polícia. Claro, com a certeza de que ele não seria morto na cadeia".
Marcos Vinícius ficou horas na UPA até que a ambulância chegasse. Bruna relata que, segundo uma funcionária do local, policiais na entrada da Maré não autorizaram a entrada do veículo. A Prefeitura teve de intervir, mas o garoto perdia muito sangue. Ainda teve tempo de conversar com a mãe. "Ele dizia 'mãe, a polícia me deu um tiro, o blindado não me viu com roupa de escola? Eu sou estudante, pô!". Bruna tentava acalmá-lo. Uma vez no hospital, ele foi operado para estancar a hemorragia, mas já era tarde demais. "Eu ainda não vi o atestado de óbito do meu filho. Eu tenho ele, mas eu não tenho coração para ver, eu não aceito aquele óbito", diz a mãe.
É uma história que Bruna tem recontado muitas vezes nas atividades e protestos em que se engaja quando não está na casa de família em Copacabana onde trabalha "dia sim, dia não" como doméstica. Até agora, afirma, seus patrões vêm demonstrando solidariedade e compreensão. Nem sempre ela pode estar lá. "Eu preciso do meu trabalho, mas eu preciso conciliar minha luta com ele". Nascida na Maré, conheceu ainda pequena seu marido Gerson, um pernambucano "que chegou moleque no Rio" e trabalha como ajudante de pedreiro. Ele não conseguiu se despedir do filho e estava inconsolável no dia do enterro. Aos prantos, permanecia com a cabeça encostada no caixão, sem soltá-lo, enquanto Bruna "se fazia forte". Agora, tenta agora retomar sua rotina de trabalho. "Porque é preciso, a vida continua e temos a Vitória", explica a mãe, sentada no sofá de sua casa.
O ambiente ganha notas alegres quando o assunto são as lembranças de um Marcos Vinícius brincalhão, "um artista", que sentava no sofá para tomar leite puro, farinha láctea ou danone antes de sair. O menino que inventava apelidos para a irmã caçula e que, há pouco tempo, encheu um copo com leite em pó para jogar nas crianças que faziam barulho do lado de fora enquanto ele tentava assistir a um jogo de futebol na TV. Uma vez, quando Bruna perguntou que profissão gostaria de seguir, respondeu: "Mãe, eu quero ser tanta coisa que no momento eu não consigo te dizer nada". Aos 14 anos, o que ele gostava mesmo era de "ficar na rua e zoar" com os amigos. Dentro de casa, suas tarefas consistiam em encher uma garrafa para os dias em que a família ficava sem água, algo comum, e retirar o lixo. "Eu saio de casa e, quando olho para a lata de lixo, costumo falar 'meu Deus, cadê o Marcos Vinícius pra jogar esse lixo fora?", lamenta.
Bruna e Gerson sempre criaram seus filhos de forma relativamente rígida, cobrando pelos estudos e não deixando que saíssem de perto. E, como "criança em comunidade não pode ficar de mente vazia", sempre fizeram atividades extracurriculares, como oficinas na escola, aulas de jiu jitsu ou karatê. O garoto havia recentemente começado a namorar, de modo que buscava formas de ganhar dinheiro para poder sair mais, curtir mais. Chegou a vender biscoito na Linha Vermelha no ano passado, algo que afetou seu rendimento escolar. Repetiu de ano e acabou deixando de lado o trabalho para voltar a se dedicar aos estudos. Bruna mostra orgulhosa o caderno com a capa do Flamengo — "mas eu o criei como vascaíno" — com a letra caprichada. "Mas ele não podia ficar duro. Outro dia eu precisava de 10 reais. Aí ele me disse que estava juntando dinheiro e que precisava de 40 reais para cortar e fazer reflexo no cabelo para a Copa do Mundo. 'Aí, mãe, eu vou dar esses 10 reais que a senhora está precisando, e a senhora me paga com 40 reais", lembra ela, rindo.
O luto público também traz novas dimensões. Com a repercussão da morte de seu filho, o rosto de Bruna vem ficando conhecido em locais públicos. Nesta semana, uma cobradora do ônibus perguntou se era ela "a mãe do estudante morto na Maré". Na comunidade, essa pergunta não é necessária. Na quarta-feira, enquanto mostrava para a reportagem o percurso que seu filho fazia entre a casa e a escola, uma menina pequena, aparentando menos de 8 anos, a interpelou:
— Tia, cadê seu filho?
— Está no céu, virou estrela.
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