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Celso Amorim: “Não sei quem incentiva as falas do general Villas Bôas. Não são positivas”

Ex-ministro da Defesa, petista critica declarações do comandante do Exército, que especulou sobre a legitimidade do sucessor de Temer

Celso Amorim, durante sua passagem por Madri.
Celso Amorim, durante sua passagem por Madri. Casa de América
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Poucos currículos políticos resistem à comparação com o de Celso Amorim (Santos, 1942). Para começar, é o mais longevo ministro das Relações Exteriores do Brasil. Comandou o Itamaraty em dois períodos: 1993-1994 e 2003-2010, durante toda a era Lula. A última pasta que ocupou foi a da Defesa (2011-2014), no Governo de Dilma Rousseff, deposta no impeachment em 2016. É com base nesta última experiência que Amorim minimiza o efeito dentro dos círculos militares das declarações do general da reserva Hamilton Mourão, candidato a vice na chapa de Jair Bolsonaro, que recentemente falou na elaboração de uma Constituição redigida por não eleitos. O vice de Bolsonaro também disse que, em caso hipotético de anarquia, o presidente poderia dar um "autogolpe" com o apoio das Forças Armadas.

"O militar que passa para a reserva pode ter alguma influência pessoal [no pessoal da ativa], mas é zero. Não influi nas decisões diretamente, isso não me preocupa", diz Amorim, em uma entrevista telefônica realizada na sexta-feira. Antes, o político do PT e ferrenho defensor de Lula já havia conversado com o EL PAÍS, em Madri, onde esteve para participar do seminário Um alerta progressista para fortalecer a democracia e a ordem multipolar, na Casa de América, e analisado da candidatura Fernando Haddad. Leia os principais trechos das conversas.

Pergunta. O que achou das declarações do vice do Bolsonaro, o general Mourão, que falou em “autogolpe” e na realização de uma Constituinte sem a participação de eleitos pelo povo?

Resposta. Eu não dou nenhuma importância às declarações do general Mourão sobre questões militares. Ele está fora [da ativa]. Eu acho que o militar que passa para a reserva, ele pode ter alguma influência pessoal, mas é zero. Não influi nas decisões diretamente, isso não me preocupa.

P. O senhor menciona em entrevistas que são mundos completamente diferentes os dos militares da reserva e da ativa.

R. Ele [Mourão] pode ter influência individual em pessoas, mas isso não influi nas decisões do alto comando. Ele está fora. Claro que eu me preocupo que, na sociedade brasileira, tenha uma ala que favoreça um falso militarismo, um pseudomilitarismo na política. É claro que isso me preocupa sociologicamente. Agora, a influência dele nas decisões nas decisões institucionais das Forças Armadas é zero.

P. As teses que ele reverbera não encontram eco na ativa?

R. O cidadão tem direito de ter qualquer tese. Eu acho que a tese [do Mourão] é totalmente elitista e descabida. É uma opinião dele. Eu fui ministro da Defesa. Nunca ouvi isso lá dentro das Forças Armadas. Eu nunca ouvi nem em conversa de almoço, de cafezinho. Pode ser que tenha algumas pessoas que pensem como ele, mas isso não me preocupa. Não tem nenhum significado do ponto de vista institucional. Sim, o comandante do Exército é que eu acho que tem que ser muito cauteloso.

P. Como o senhor avalia as recentes declarações do general Villas Bôas, comandante do Exército, que em entrevista após o atentado contra Bolsonaro disse que o governo eleito pode ter a sua "legitimidade questionada"? 

R. Eu acho que o militar que está na ativa não deve se meter em política. Se quiser, ele faz como outros que passaram para a reserva, fundam partidos políticos ou atuam nos partidos. Nada impede que o militar faça isso, mas o militar da ativa tem um poder, uma função institucional e um poder de fogo, para ser muito concreto, que faz com que ele não possa e não deva se meter em política. Eu não sei qual foi a intenção dele [Villas Bôas] e eu não posso julgar intenções, mas acho muito arriscado quando, em função de um acontecimento, você, ainda que hipoteticamente, menciona a possível falta de legitimidade de quem vier a ser eleito. Isso é muito ruim porque, evidentemente, ele não é um analista político, ele é um militar. Ele tem o poder de fazer com que as coisas que ele diga aconteçam.

P. Recorda de alguma manifestação semelhante quando chefiou a Defesa?

R. No meu tempo de ministro da Defesa eu não me recordo de nenhum manifestação política do comandado das forças. Quando eles tinham problemas —e, olha bem, eu tive que conduzir a questão delicada da Comissão [Nacional] da Verdade; quando eles tinham problemas, vinham falar comigo. E havia problemas que a gente tinha que tentar resolver, não eram fáceis. Nós encaminhamos da maneira que pareceu a mais adequada naquele momento. E havia naturalmente outros militares da reserva que falaram [em público]. Desde que não fosse algo ofensivo aos poderes instituídos, eles têm direito de falar o que bem entenderem.

Agora, ele [Villas Bôas] é comandante do Exército, então eu não creio que seja possível que fale. E vou repetir algo que eu já tenho dito: eu conheci o general Villas Bôas como um comandante militar de uma área muito importante, a da Amazônia. Sempre me deu a melhor impressão como oficial, pela capacidade técnica, pelo respeito à hierarquia. Eu não sei quem está incentivando esses posicionamentos, eles não são positivos.

P. A quem acha que ele se referiu na entrevista?

 R. Eu não sei, mas quando diz que pode haver dúvida sobre a legitimidade de um candidato qualquer em função desse incidente que ocorreu, eu acho que isso não cabe a ele dizer. Se acha isso, ele que fale com o ministro da Defesa e o ministro fala com o presidente. Chefe militar não tem que se posicionar sobre política porque ele tem que cumprir o que a autoridade civil determina. Com todo o respeito a eles, mas eles são subordinados à autoridade civil. Não acho positivo que haja esse comentário. Não quero especular o que ele quis dizer, mas acho que no momento que é de uma certa tensão... Não só pela prisão do [ex-]presidente Lula, o fato do governo brasileiro não ter respeitado a determinação [do Comitê de Direitos Humanos] da ONU, isso já é um ambiente de certa tensão... Então o que eu acho que o que os militares têm de fazer é ficar quietos e dizer que eles seguirão o que a Constituição prega, porque a Constituição em nenhum momento dá às Forças Armadas a capacidade de arbitrar quando é uma situação que elas devem intervir ou não. Não existe isso, elas têm uma função de defesa do país, da pátria, e uma função de garantir os poderes constituídos e, a pedido deles, a lei e a ordem. Mas não voluntariamente.

P. Já houve uma manifestação política do comandante do Exército na véspera do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula. Ao mesmo tempo há militares em funções de destaque no atual governo, como o próprio ministro da Defesa. Por que há tanto protagonismo dos militares na vida política atual?

R. Isso a mim não me preocupa tanto. São coisas diferentes, eu acho que precisa separar as coisas, não pode misturar tudo no mesmo balaio. Eu acho que a declaração do general Villas Bôas, aquela [na véspera da análise do HC], foi infeliz também, porque obviamente ela pode ser interpretada como ameaça. Não sei se ele tinha essa intenção. Eu não posso lançar nenhuma suspeição sobre o general Villas Bôas, por quem eu tenho uma muito boa opinião. Do ponto de vista de um general competente, que cumpriu perfeitamente com as determinações que vinham —e vinham— dos seus superiores. Mas, de qualquer maneira, aquilo se prestou, foi usado de maneira espetacular pelo Jornal Nacional. Obviamente pode ter sido lido como uma ameaça, ainda que não fosse essa a sua intenção. Como as intenções se prestam sempre a interpretações, eu acho que os militares devem ficar calados.

Agora, outra coisa totalmente diferente é você ter um militar ou civil em determinados cargos. No governo da presidenta Dilma, por exemplo, quando eu fui ministro da Defesa, nós tínhamos alguns militares em posições importantes. Não eram ministeriais, mas eram lugares importantes. Por exemplo, no cargo até de Defesa Civil, porque são competentes para gerir certas situações. Nós tínhamos um excelente militar, um general na Autoridade Olímpica, e tivemos outros. Então isso não me preocupa. Claro, do ponto de vista simbólico, num país que passou por tanto tempo por governo militar, não é o ideal [ter um militar no ministério da Defesa]. Mas, concretamente, eu conheço o general Silva e Luna [ministro da Defesa], ele era chefe do Estado Maior do Exército quando eu era ministro da Defesa. Ele sempre se portou de uma maneira totalmente republicana. Inclusive nesse momento difícil da Comissão da Verdade, procurando sempre atuar de uma forma construtiva. Eu acho que isso é uma generalização.

P. Como o senhor vê a situação atual do Brasil?

R. É difícil definir a situação, mas o que está claro é que vivemos uma crise tripla: uma crise política, obviamente, com um golpe de Estado que tirou a presidenta Dilma e impediu [o ex-presidente] Lula ser candidato; uma crise social, porque o desemprego e os problemas sociais aumentam, e disso o maior sintoma é o assassinato da vereadora Marielle Franco [em 14 de março], pelo qual até agora ninguém foi acusado e muito menos condenado. E uma crise econômica: o país não cresce. É a pior recessão dos últimos 100 anos. Mas, por outro lado, quando há eleições, sempre há esperança. Fui o iniciador de um documento que muitos assinaram [inclusive o ex-presidente do Governo espanhol José Luis Rodríguez Zapatero], chamado Eleição sem Lula É Fraude. Mas devemos aproveitar as brechas que existem, tentar mudar as coisas. Temos um bom candidato.

P. Qual a sua opinião sobre a candidatura de Fernando Haddad?

R. Não é o mesmo que Lula, porque Lula é uma personalidade inigualável no Brasil, mas é um bom candidato. Tem muito apoio, foi indicado por Lula e está subindo muito nas pesquisas, e muito rapidamente. A batalha será agora o segundo turno, ao qual certamente chegaremos.

P. O Partido dos Trabalhadores atrasou a decisão de nomear Haddad, que começou a fazer campanha não como candidato, mas como suposto vice-presidente de Lula. Isso pode prejudicá-lo?

R. Sim, bem, mas primeiro nós tivemos de lutar pelos nossos direitos. Retirar a candidatura de Lula era admitir a acusação da direita, ajudada por uma parte do Poder Judiciário e dos meios de comunicação. Isso por um lado; foi uma decisão de princípios, além de humana, do próprio Lula, que é inocente. Mas, além disso, acredito que pragmaticamente não foi ruim, porque fez o apoio a Lula crescer, e uma parte disso será transferida a Haddad. Agora existem outros indicadores, como a queda da popularidade do juiz [Sergio] Moro, que iniciou a investigação da Lava Jato. No começo, 70% ou 80% das pessoas acreditavam que a Lava Jato era algo bom; hoje são 45% ou 50%.

P. Há aqueles que acusam Haddad de que seu discurso é dirigido às classes médias, que ele ainda tem de aprender a falar com os pobres. O senhor acredita que os possíveis eleitores de Lula votarão nele?

R. Bem, não sei se pode transferir todo o seu capital político. Mas se transferir 60%, 70%, é o suficiente para ganhar. E eu acredito que sim porque, além da crescente identificação entre Lula e Haddad, há o trabalho dos governadores e dos candidatos, que terá efeito sobre essa identificação. Além disso, porque, não esqueçamos, o candidato que se opõe não é simplesmente um candidato da direita; é um candidato extremista, com uma visão totalmente protofascista. Violento, com demonstrações públicas como se estivesse metralhando as pessoas... devemos esperar que uma parte do povo brasileiro desperte para o perigo representado por alguém tão divisionista.

P. Bolsonaro foi esfaqueado em um ato de campanha em 6 de setembro. É um sinal da tensão da campanha? Quais as consequências que isso pode ter?

R. Minha impressão é que isso não mudou tão substancialmente quanto se temia. Acredito que na direita, sim, muita gente que apoiava outros candidatos mais fracos passou a apoiar sua candidatura, então certamente superará o primeiro turno. E depois, não vou dizer que o atentado foi autoinfligido, mas há algo em que isso o beneficia, o fato de tê-lo afastado dos debates e entrevistas, nos quais ia muito mal. Pode chegar a 28%, a 30% dos votos, mas não passará disso, porque é o candidato com mais rejeição. Considero razoável que no segundo turno possamos derrotá-lo. A corrente está a favor, e damos muita importância ao apoio recebido. Tivemos um seminário [em 17 de setembro em Madri] com Felipe González, Baltasar Garzón e Juan Luis Cebrián. Zapatero esteve no Brasil recentemente com Dominique de Villepin, Noam Chomsky... São o tipo de vozes que talvez façam com que a elite brasileira pense duas vezes se queremos estar com eles ou com a onda internacional que representa, por exemplo, gente como Donald Trump.

P. O senhor esteve em Madri para falar sobre como fortalecer a democracia. E cita Donald Trump e o movimento populista. Como vê o panorama mundial?

R. Vejo que o mundo está passando por um momento delicado. Os Estados Unidos, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, não têm um projeto para o mundo. Poderia ser hipócrita ou não, mas antes havia um projeto. Trump também é um exemplo muito perigoso para quem quiser emulá-lo. Caso seu exemplo se multiplique, podemos caminhar rumo a um mundo muito perigoso.

P. Em um vídeo divulgado nas redes, Bolsonaro colocou em dúvida se reconheceria o resultado da eleição...

R. É uma tristeza. Uma coisa que, a rigor, isso sim desqualificaria um candidato na minha opinião. Uma das coisas que você não pode atentar é contra a Democracia.

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