Mãe de Marielle: “Todos os dias se chora muito em casa. É um vazio que não tem como mensurar”
Marinete Silva recorda momentos da vida da vereadora e fala sobre a angústia de esperar por elucidação do crime. Agora, coube-lhe a luta para defender o legado da filha
São nove e meia da manhã de quarta-feira, 25 de julho, e o dia promete ser corrido, como todos os demais, para Marinete Silva. Ela desce de um ônibus vindo de Bonsucesso, bairro da zona norte do Rio onde mora, no centro da cidade para uma entrevista com o EL PAÍS. Carrega uma bolsa, várias pastas na mão e uma grande agenda. Logo depois, por volta de dez e meia, participa de um debate ali do lado, na Faculdade Nacional de Direito, da UFRJ. O dia continua com uma audiência e a ida em dois cartórios, já que deixar de trabalhar não é uma opção para essa advogada de 66 anos, que atua na área cível e previdenciária. No fim do dia ainda precisará buscar sua neta Mariah, de 2 anos, na creche. E, quem sabe, marcar presença em um evento no Complexo da Maré em homenagem a sua filha mais velha, a vereadora Marielle Franco (PSOL), brutalmente executada no dia 14 de março dentro de seu carro junto com o motorista Anderson Gomes.
Se estivesse viva, Marielle teria completado 39 anos na sexta passada. Dois dias antes, Marinete não tinha planos de promover encontro familiar para recordar a data. Tampouco há o que celebrar: quatro meses depois do duplo assassinato, a Delegacia de Homicídios da Polícia Civil ainda não apontou suspeitos e mantém a investigação em sigilo absoluto. Nem mesmo os familiares tem acesso à informação, apenas as veiculadas pela imprensa. A impaciência e a angústia crescem. "Confio muito nessa equipe, o doutor Giniton Lages é um delegado empenhado, sério. Mas para mim é muito doloroso. São quatro meses de espera, um vazio que não tem como mensurar. Não posso mudar isso, a família tem que esperar”, diz ela, muito emotiva e com um ar abatido. "A gente não consegue ver um único motivo para que Marielle fosse brutalmente assassinada como foi... Todos os dias se chora muito em casa".
Contudo, participou no dia do aniversário de sua filha do lançamento de Papo Franco, um site que reunirá as ideias da vereadora sobre os mais diversos temas. Materiais inéditos, como vídeos, estarão na página. Outro projeto é lançar uma “associação que dê certa blindagem e direcionamento” ao nome da vereadora, que está sendo usado e vinculado em vários projetos desde sua morte.
— Como lida com uma morte que ganhou tanta repercussão? Que papel a senhora assume?
— Não assumo papel nenhum, sempre serei uma mãe sofrida, que viu sua filha arrancada, morta com 38 anos. Mas vou defender seu legado e vou para a rua, porque preciso que esse crime seja solucionado. Preciso saber o que motiva alguém a fazer isso com o filho de qualquer pessoa. Não tem explicação.
— A morte de sua filha lhe deu outra dimensão sobre seu trabalho?
— Com certeza. Eu sabia que ela estava em várias frentes, que ela era uma mulher de enfrentamento, mas eu não tinha noção da dimensão que tomou. Virou um mito. Sempre tem alguém me mostrando alguma coisa que ela fez, um vídeo dela... O papel que ela exercia naquele parlamento, com a legitimidade de mais de 46.000 votos... Ela tinha uma garra para defender as mulheres, sabe. Elas todas se viam representadas pela minha filha.
— A senhora se sente acolhida por outras mães que perderam seus filhos?
— Sim, porque passamos pela mesma dor. Marielle sempre esteve com essas mães, cuidando delas e reivindicando os direitos delas. Quando eu me junto, é bom saber que minha filha fazia parte daquele contexto. Eu vou estar sempre com elas. Se a morte dela completar seis meses e não me dão respostas, nós vamos para a rua fazer uma manifestação grande.
Marinete nasceu em João Pessoa (Paraíba) e lá se casou com o carioca Antônio, o Toínho, em 22 de julho de 1978. Um ano e cinco meses depois, em 27 de julho de 1979, nasceu Marielle, que durante cinco anos foi filha única. Moraram durante anos no Complexo da Maré, onde a vereadora teve uma infância cercada de amigos. Lá recebeu uma rígida formação católica, tendo feito primeira comunhão e crisma e trabalhado como catequista, ao mesmo tempo que gostava de frequentar os bailes funk da Furacão 2000 — para muitos, uma contradição. "Uma vez ela levou a irmã [Anielle, de 33 anos] escondida para o baile", lembra a advogada. Marielle tinha 14 anos, e a caçula da família apenas nove. "Fui lá buscar as duas. Eu queria ter entrado para bater nela na frente de todo mundo, mas não consegui. Bati fora!", lembra, rindo. Seu lado mãezona super protetora e doce se mescla com uma severidade tipicamente nordestina.
Sua filha mais velha também desenvolveu bem cedo seu senso de responsabilidade e sua independência. Começou a trabalhar como estagiária aos 11 anos numa universidade, o que fez com que ela e sua irmã conseguissem uma bolsa de estudos numa escola particular. "Ela monitorava a classe, fazia depósitos bancários... Sempre foi muito esperta e sempre trabalhou muito". Marinete também lembra bem da festança que deu para Marielle em seu aniversário de 15 anos. Alugou o clube Bonsucesso e colocou mais de 300 convidados dentro. "Foi muito linda, temos todos os vídeos desse dia".
Pouco tempo depois, aos 18 anos, Marielle engravidou do namorado. Casou-se grávida em 1998, uma novidade para sua mãe. "Foi complicado para mim, que sou muito católica, mas eu também não deixei de defender os desejos dela. O casamento foi lindo". Aos 19, deu à luz a Luyara. "As duas eram como irmãs", conta Marinete, que com a morte da filha ficou responsável por cuidar da neta. Não que isso seja novo: Marielle se separou em 2001, ano em que também pretendia aprofundar seus estudos — se formou em Ciências Sociais na PUC-Rio. Voltou então para a casa de seus pais e lá ficou morando com sua filha até 2010, quando se casou de novo. "A formação do caráter de Luyara ocorreu dentro da minha casa".
Marielle se relacionou ao longo desse tempo com Mônica Benício, mas só engatou um relacionamento estável em 2017, ano em que decidiram morar juntas e formar uma família — e reivindicar a legitimidade dessa escolha. Foi ao longo desse tempo que também se especializou em segurança pública e abraçou pautas como o direito ao aborto.
— Como foi para a senhora, muito católica, ver Marielle assumir sua homossexualidade?
— Eu já não tinha poder sobre a vida dela há muito tempo e não faria nada que pudesse atrapalhar um relacionamento afetivo dela. É uma questão de aprender a lidar com a diversidade. Me dou bem com a Mônica, nunca tive nenhum problema com ela.
— Concorda com todas as pautas políticas que defendia?
— Sempre conversamos abertamente e respeitamos a opinião uma da outra. A gente sempre aprende. Minha formação é católica e sempre fui contra o aborto. Marielle também era católica, mas com tudo o que ela foi vivendo, vendo outras mulheres morrendo... É um processo que tem que ser revisto, porque é um tema de saúde pública, e ela sempre defendeu isso de uma maneira muito coerente.
O que sim opôs mãe e filha foi a decisão de Marielle de se candidatar em 2016 para a Câmara de Vereadores, após trabalhar durante 10 anos no gabinete do deputado estadual Marcelo Freixo. Era mais um passo de uma militância que havia começado muitos anos antes — Marinete não lembra exatamente quando —, após perder uma amiga durante um tiroteio na Maré. "Mas eu pedi para que ela não se candidatasse, já achava seu trabalho maravilhoso. Ela era uma mulher teimosa, de muita garra. Ninguém iria conseguir mudar sua decisão", afirma Marinete. "Marielle queria ter mais voz, defender suas pautas no Parlamento. E foi importante, foi muito bom enquanto deixaram que ela trabalhasse", afirma, orgulhosa. "Por mais que tivesse diferenças com alguém, sempre dialogava. Ela fazia política com amor, com carinho e afeto".
Foi justamente na Câmara que encontrou sua filha mais velha pela última vez, na véspera de sua execução. Chegaram a anunciar seu nome no microfone durante a sessão plenária. "Subi em seu gabinete, tomei um lanche enquanto ela atendia duas pessoas. Depois, eu, Marielle e Anderson rodamos em várias farmácias para encontrar um colírio contra conjuntivite [para Luyara, Anielle e a netinha Mariah]", recorda, emocionada. "Passamos bastante tempo juntas. No dia seguinte, menos de 24 horas depois, a gente não tem mais ela. Foi num piscar de olho".
— Como ficou sabendo?
— Por volta de nove e pouco da noite, um padre que é muito amigo da família ligou perguntando se havia acontecido alguma coisa. Eu disse que não, que deveria ser algum boato de internet. Depois começamos a receber muitas mensagens e ligações, mas ninguém tinha coragem de contar. Tentamos ligar para Marielle, mas ninguém atendia. Quando vou para sala e ligo a televisão... Depois disso, começou a chegar muita gente, muitos amigos, e eu não vi mais nada. Foi uma noite que eu não desejo pra nenhuma mãe, foi horrível. Toínho passou mal, foi uma tristeza. Desde então, Marinete chora quase diariamente. Mas lutar pelo legado da filha assassinada é o que a faz levantar todos os dias para reverenciar sua vida interrompida.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.
Mais informações
Arquivado Em
- Caso Marielle Franco
- Intervenção federal
- Walter Braga Netto
- Milícias Rio de Janeiro
- Polícia militar
- PSOL
- Marcelo Freixo
- Marielle Franco
- Rio de Janeiro
- Violência policial
- Estado Rio de Janeiro
- Forças armadas
- Crime organizado
- Ação policial
- Brasil
- Assassinatos
- Polícia
- América do Sul
- América Latina
- Defesa
- Força segurança
- América
- Delitos
- Política
- Justiça