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Maria Bonita não é ícone feminista, mas é pop

Biografia da rainha do cangaço, que vai para a segunda edição, mostra que a parceira de Lampião era mais submissa e machista do que supõe a simpatia popular a seu nome

Maria Bonita, retratada por Benjamin Abrahão.
Maria Bonita, retratada por Benjamin Abrahão.

Maria Gomes de Oliveira (1911-1938) morreu sem sequer suspeitar que passaria à história como Maria Bonita, a Maria do capitão. A alcunha teria sido dada à companheira de Lampião pelos soldados que receberam a sua cabeça —decepada depois que a volante do tenente João Bezerra atacasse o acampamento do bando— e destacaram sua beleza. O telegrama enviado ao governo comunicando a morte do "maior bandido das Américas" e de seu grupo é o primeiro documento que registra o nome de Maria Bonita. 80 anos depois da sua morte, ela ganhou sua primeira biografia, Maria Bonita - sexo, violência e mulheres no cangaço (Objetiva), escrita pela jornalista Adriana Negreiros. O livro teve sua primeira reimpressão em dezembro e fechou 2018 na lista dos mais lidos do país.

Durante dois anos, Negreiros mergulhou na investigação de documentos históricos, na leitura de jornais da época e percorreu os sertões da Bahia e de Alagoas para preencher as lacunas da vida de Maria Bonita e das demais cangaceiras. Assim, se propôs a contar a história do cangaço de um ponto de vista feminino. "Minha família é de Mossoró (RN) e cresci escutando histórias de como a cidade resistiu à invasão dos cangaceiros, mas sempre contadas com os homens como protagonistas. Decidi contá-las tendo Maria Bonita e as demais mulheres como fio condutor. Foi um ato político", diz a autora.

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Não foi uma tarefa fácil. Apesar do vasto repertório de memória oral sobre o assunto, são escassos os documentos e os poucos objetos que sobreviveram ao tempo estão em mãos de colecionadores. Quando a polícia prendia um cangaceiro, conta Negreiros, destruía seus pertences ou roubava aqueles de maior valor. No caso das mulheres, encontrar rastros de suas vivências é ainda mais complicado. No empoeirado museu dedicado à Rainha do Cangaço, em Malhada do Caiçara (BA), onde ela nasceu, apenas um objeto pertenceu de fato a Maria Bonita: um banco de madeira, no qual ela teria passado tardes românticas namorando Lampião. 

As lendas perpetuadas pelo cordel e a fantasia em torno do cangaço foram outros obstáculos. Neles, Maria Bonita —ou Maria de Déa, como era conhecida no âmbito familiar— era uma cangaceira "arretada", uma matadora que pegava em armas, uma guerreira, amazona do sertão, uma Joana D'Arc da caatinga. Essa fama chegou até os anos 1990, quando ela passaria a ser lembrada, com frequência, no Dia Internacional da Mulher. Poetas populares e memoralistas estabeleceram que sua data de nascimento seria uma predestinação: 8 de março de 1911. Só em 2011 o sociólogo Voldi Ribeiro encontrou o registro de nascimento da cangaceira, no qual consta a data de 17 de janeiro de 1910.

Mas Maria Bonita não era uma feminista. A imagem de mulheres fortes, matadoras de policiais, associada tanto a ela quanto às suas companheiras de bando é, segundo Negreiros, uma inverdade. "A tarefa de pegar em armas e matar a polícia era considerada uma tarefa muito importante para ser realizada por uma mulher. E, de forma geral, elas não estavam ali porque queriam. Eram raptadas quando crianças ou adolescentes. Se um cangaceiro gostasse de uma menina e a desejasse, ela não tinha opção, ou ia com ele ou seria morta, junto com a família", explica. O caso mais extremo, retratado no livro, é o de Dadá, raptada e violentamente estuprada aos 12 anos por Corisco, com quem viveu até o fim da vida.

Maria Bonita, que hoje é ícone da liberação das mulheres e dá nome a diversos coletivos feministas, era, sim, uma "transgressora", defende Negreiros. No sertão dos anos 1920, casada, infeliz com um marido mulherengo e sexualmente insatisfeita, ela se refugiava na casa dos pais e, em vez de chorar pelos cantos, ia dançar no forró do povoado. Há indícios de que teria um amante. Quando conheceu Virgulino Ferreira da Silva (Lampião), não duvidou em fugir com ele, tornando-se a primeira mulher a unir-se ao cangaço e uma das poucas em fazê-lo de livre e espontânea vontade.

"De certa forma, Maria era bela, recatada e do lar. Dizer que ela era uma pioneira do feminismo é um exagero, porque não tinha um comportamento que se opusesse à dinâmica reinante na cultura do cangaço", diz Negreiros. Uma cultura na qual abundavam, por exemplo, os estupros a meninas e mulheres nas cidades pelas quais o bando passava, com a conivência das cangaceiras.

"Não se tinha essa consciência de estupro como existe hoje, não gerava tanto choque. Eles tampouco contavam pra elas, não tinham que dar satisfação. Já se esperava que os homens agissem dessa maneira", explica a autora. Maria Bonita só brigava com Lampião por ciúmes quando este passava semanas sem voltar ao acampamento. Segundo os relatos contidos no livro, ela "montava um barraco" e os cangaceiros comentavam: "A patroa está doida".

Negreiros conclui que o papel que as mulheres tiveram no cangaço é o mesmo que tiveram historicamente em diferentes organizações sociais: a de criar uma situação confortável no ambiente doméstico para que os homens pudessem brilhar no espaço público. "Criaram uma espécie de refúgio do caçador. A estrutura da opressão era muito evidente também no cangaço".

Códigos de conduta

No bando de Lampião, só se esperava fidelidade por parte das mulheres. "O código de conduta era muito rigoroso com elas. Se sequer manifestasse desejo por outro homem, era sumariamente executada. Os homens que ficavam com companheiras de outros cangaceiros, no entanto, permaneciam no bando", relata Negreiros. O livro narra diferentes histórias de cangaceiras executadas por esse motivo, muitas denunciadas pelas próprias companheiras.

Apesar de viverem em condições extremas, sempre levantando e montando acampamentos, muitas vezes passando fome e sede durante dias, sob a constante ameaça policial, o conceito de sororidade ou simples solidariedade parecia ser inexistente entre as cangaceiras. "O único momento de empatia era quando davam à luz e se ajudavam entre elas", comenta Negreiros. Os bebês eram pouco depois levados a alguma cidade e relegados ao cuidado de alguma família.

"Havia muita disputa, estimulada pelos próprios cangaceiros e as mulheres tinham um comportamento extremamente machista. Mas elas viviam muito isoladas, eram muito sofridas, então não dá para exigir delas essa perspectiva de gênero", explica a autora.

As violências às quais as cangaceiras foram submetidas se perpetuaram depois da dissolução do bando. As poucas que sobreviveram e foram presas deram seu testemunho em entrevistas, relatando os estupros e outros aspectos da rotina no cangaço, mas foram desacreditadas. "Essa negligência sobre os relatos, o silenciamento dessas mulheres foi o que mais me chocou no processo de pesquisa para o livro", diz Negreiros.

A jornalista e escritora conta que, ainda hoje, em plena era do #MeToo, quando viaja aos locais por onde o bando de Lampião passou ou mesmo nas redes sociais, ouve e lê coisas como: "Tudo isso é mentira. Lampião era um herói. Essas histórias de estupro e violência são inventadas".    

Enquanto o maniqueísmo popular mantém como hegemônica a figura do "Robin Hood" do sertão, Maria do capitão transita entre o esquecimento e o lugar de uma Joana D'Arc do folclore nacional. Adriana Negreiros parece ficar em um meio termo, mas relembra no seu livro as palavras do interventor Agamenon Magalhães, no relatório da operação que culminou na morte do rei e da rainha do cangaço: "É pecado contra a pátria endeusar Maria Bonita".

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