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“Se conseguirmos a lei do aborto, não será vitória de Macri, mas das feministas”

Na Flip, escritora argentina Selva Almada fala sobre feminicídio, literatura e jornalismo. Senado do país vota legalização do aborto em 8 de agosto

Escritora argentina durante debate na Flip
Escritora argentina durante debate na FlipWalter Craveiro

Garotas Mortas, da escritora Selva Almada, saiu, em 2014, a tempo da primeira marcha Ni Una Menos, que levou às ruas da Argentina, em 2015, milhares de mulheres para protestar contra um caso de feminicídio. Agora, quando o livro é lançado no Brasil, a Argentina atravessa outro momento histórico em que o aborto pode ser legalizado depois que um projeto de lei foi aprovado na Câmara dos Deputados e será votado, em cerca de dez dias, no Senado.

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Almada, que é apontada como uma das principais ficcionistas contemporâneas argentinas, teve a sensibilidade de captar o momento, ainda que intuitivamente, e escrever sobre o assunto num misto de relato pessoal e não ficção que investiga o assassinato de Andrea Danne, María Luiza Quevedo e Sarita Mundín. No Brasil, onde participou de uma mesa nesta quinta-feira na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) ao lado da pesquisadora Djamila Ribeiro, a escritora conversou sobre feminismo, jornalismo e literatura com o EL PAÍS.

Pergunta. Você disse que tinha problemas em se nomear feminista antes de escrever o Garotas Mortas. Por quê?

Resposta. Eu sempre senti que vivia de acordo com a ideia feminista, tratando de levar uma vida feminista, mas nunca havia participado publicamente de algum movimento. Por isso, não sabia se podia ou não chamar-me de feminista. E a verdade é que até muito pouco tempo atrás também havia uma visão muito negativa em relação ao feminismo, havia muitos preconceitos, que, com o tempo, foram se desmanchando, mas que ainda estão presentes em uma grande parte da sociedade. Coisas básicas como acreditar que as feministas são mulheres que querem matar os homens ou que querem uma sociedade sem homens. Mas, por sorte, as gerações mais jovens, as meninas que têm hoje entre doze e vinte anos, dizem-se justamente feministas, abraçam a causa, saem às ruas e leem teoria feminista. É um avanço tremendo em relação à minha geração.

P. Quando você publicou o livro em 2014, a palavra feminicídio ainda não era muito usada, não é?

R. Começava a ser. Não toda a imprensa, mas parte dela já tinha começado a usar o termo, como o Página 12, que é um jornal mais de centro-esquerda. Foi nesse diário que li pela primeira vez a palavra. Depois custou um pouco mais para ela começar a aparecer em veículos mais conservadores, como Clarín e La Nación. Mas, sim, começava-se a falar mais fortemente do tema quando eu comecei o livro e durante o tempo em que levei escrevendo. Foi um pouco depois da publicação, em 2015, que aconteceu a primeira marcha Ni Una  Menos, um marco para que o tema se consolidasse. Essa foi uma manifestação que se instalou depois de um feminicídio de uma menina de 14 anos que estava grávida. Quem a matou foi seu namorado, da mesma idade, e a família dele o ajudou a esconder o corpo. Esse foi um crime que causou muita comoção e, através das redes sociais, saiu a convocação para essa marcha multitudinária. A partir daí, para a sociedade em geral, o tema estava posto.

P. E agora há uma lei que condena à prisão perpétua homens condenados por feminicídio. Você acha que só o recrudescimento das leis pode solucionar esse problema?

R. Na verdade, a lei é anterior, porque ela é de 2012 e a marcha foi em 2015. Mas, sim, há essa lei. Só que eu acredito que se a lei não está acompanhada de campanhas, de educação, não há impacto na vida dos cidadãos. Só as penas duras não detêm os feminicídios, porque há que se pensar que o feminicídio é uma questão cultural, basicamente. São homens que foram criados em uma cultura que os fez acreditar que eles têm direito sobre a vida das mulheres. Até que não se mude essa maneira de pensar, não importa quantos anos de prisão eles têm pela frente. Acho certo, contudo, que haja uma lei especial para um crime em especial.

P. Como foi a decisão de escrever sobre esses três crimes que você retrata mais detalhadamente no Garotas Mortas?

R. Eu conhecia a história de Andrea Danne [assassinada na própria casa, enquanto dormia] desde criança e sempre quis escrever sobre isso, porque era uma história que me impactou muito quando eu era pequena. Na medida em que fui crescendo e entendendo como funcionam as coisas também comecei a me perguntar sobre a questão da violência e por que em algumas famílias era natural que o marido batesse na mulher, por exemplo. Foi um processo de muitos anos de interesse nesse tipo de temática. Então, dá para dizer que de repente os planetas se alinharam um pouco nesse sentido e acabei me encontrando com outro caso parecido com o de Andrea. Depois, fui em busca do terceiro caso e aí já estava pronto o projeto do livro.

P. E em sua obra, essa foi a primeira vez em que você nomeou essas coisas, feminicídio, feminismo, tão claramente?

R. Acredito que, se você quiser ler outros livros meus com essa perspectiva, é possível. Em romances meus em que as histórias estavam centradas nos homens, por exemplo, havia protagonistas mulheres que estavam ocultas ou silenciadas. E isso quer dizer algo também, apesar de não explicitamente.

P. E por que mesclar gêneros, usando um pouco de jornalismo, literatura e relato pessoal?

R. Não sou jornalista, sou escritora, mas fiz todo o trabalho de investigação que tinha de fazer para escrever um trabalho dessas características, mas depois, na hora de começar a escrevê-lo, encontrei essa dificuldade: se é um livro de investigação jornalística e eu tenho que escrever como se fosse jornalista, a coisa não me saía natural. Aí foi que decidi, conversando muito com minha editora, buscar um tom que tivesse mais a ver comigo como escritora. Decidi, então, usar as mesmas ferramentas que uso para escrever ficção. Os dados duros, reais, eu coloquei, mas sempre buscando uma maneira um pouco mais poética de dizer.

P. E como escritora você acredita que o jornalismo pode ganhar força ao usar as ferramentas da literatura?

R. Sim, porque eu gosto de ler jornalistas que têm um estilo mais literário, mas também entendo que é um tipo de jornalismo que leva muito mais tempo e que, justamente, o que não há é dinheiro para pagar esse tempo. Por isso é que a obra de um jornalista acaba precarizada, porque se você está correndo atrás de escrever vinte artigos por dia para sobreviver não haverá tempo para fazer algo com elementos mais ricos e ferramentas literárias. Mas eu gosto muito da crônica, da não-ficção, feita por jornalistas que imprimem uma identidade literária. E existe toda uma tradição desse tipo de jornalismo na América Latina. Na Argentina, por exemplo, há uma celeuma sobre a paternidade da não-ficção. O pai desse gênero é sempre apontado como sendo Truman Capote, com A Sangue Frio, mas anos antes, em 1957, Rodolfo Walsh escreveu Operación Masacre, que também é um livro de não-ficção. Então sempre há essa disputa de quem inventou a não-ficção. Uma disputa só para os argentinos, claro.

P. E como é a situação do jornalismo na Argentina?

R. Esse é o problema. Para fazer esse tipo de jornalismo é necessário tempo e, pelo menos na Argentina, esse é um trabalho que está muito precarizado. Faz um mês, por exemplo, despediram massivamente mais ou menos 300 jornalistas da única agência de notícias oficial que existe.

P. Falando sobre cortes, há uma coluna recente da Leila Guerriero, colunista do EL PAÍS, em que ela diz que o presidente argentino Mauricio Macri está usando a pauta feminista para ocultar medidas impopulares. Você concorda?

R. Não li a coluna de Leila, mas, sim, é algo que se diz. Pode ser que Macri queira fazer isso, mas acredito que é absurdo pensar que o feminismo é tão estúpido de confundir a lei do aborto com Macri. Não acredito que isso vá acontecer. Acredito que o feminismo na Argentina é muito inteligente, muito crítico, então isso não vai acontecer. Se Macri está fazendo isso, não sei, mas acredito que há estratégias políticas e a verdade é que até este ano nenhum Governo havia possibilitado um debate sobre isso. Se vai acontecer com esse Governo, que para mim é nefasto, acredito que tudo bem que os movimentos se aproveitem do momento. Depois não acredito que nenhuma das feministas vai votar em Macri por isso. Temos muito claro que se conseguirmos a lei do aborto, não foi o macrismo ou qualquer outro Governo que conseguiu, mas os movimentos de mulheres.

P. E como estão as expectativas para a votação no Senado para aprovar ou refutar a lei do aborto, já aceita entre os deputados?

R. Bom, isso vai acontecer em cerca de dez dias, em oito de agosto. Eu acredito que todas esperamos que passe na segunda instância, mas é muito difícil o prognóstico, porque, em geral, os senadores e senadoras são pessoas muito mais conservadoras que os deputados. Acredito que, até o último momento, não vamos saber.

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