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Joselia Aguiar: “Esta será uma Flip voltada para o mundo de dentro: amor, morte, Deus”

Responsável por criar uma programação mais diversa do encontro literário, curadora conta sobre as escolhas para o evento este ano, que começa dia 25 de julho

Joselia Aguiar, durante a Flip do ano passado
Joselia Aguiar, durante a Flip do ano passadoWalter Craveiro

No ano passado, a curadoria de Joselia Aguiar para a Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, foi marcada por uma programação que colocou no mapa a literatura que estava fora dos radares convencionais. A diversidade de autores convidados foi o atestado disso. Seja por essa novidade, seja pelo momento histórico brasileiro, o evento acabou ganhando fortes ares políticos. Agora, a curadora diz que se no ano passado a Flip olhou para fora, desta vez deve mirar para dentro, para questões da existência humana. Não à toa, a homenageada deste ano é a poeta Hilda Hilst, bem diferente do combativo Lima Barreto, lembrado na edição anterior. Em entrevista ao EL PAÍS, Aguiar fala sobre as escolhas da festa literária que começa na próxima quarta-feira, 25, que mantém a diversidade na programação, mas promete ser mais intimista.

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Pergunta. É impressão ou a Flip deste ano, ao contrário da do ano passado, deve passar um pouco mais ao largo de questões políticas?

Resposta. A Flip do ano passado, por homenagear Lima Barreto, autor cujo projeto literário lidou diretamente com temas políticos e sociais do tempo dele, acabou tendo mesas que refletiam essas questões na atualidade. Ao falar do autor carioca, era impossível não ter o debate sobre racismo na programação, o que aconteceu, por exemplo, em uma mesa com a presença de Lázaro Ramos e Joana Gorjão Henriques. Nesse sentido, a Flip de 2018 é bem diferente. Quer dizer, a preocupação com a pluralidade dos convidados continua, mas os temas são mais intimistas, mais da existência humana: amor, morte, desejo, Deus, transcendência. Há também a intenção de que seja uma Flip mais artística com uma programação que tem nomes ligados à fotografia, música e teatro. A homenageada Hilda Hilst tem uma presença forte no teatro, por isso essa linguagem também vai aparecer, não à toa, temos Fernanda Montenegro e Iara Jamra nas mesas. Em 2017 tivemos um Flip voltada para fora, esta será mais voltada para o mundo de dentro.

P. Você mencionou a pluralidade da programação e este foi um dos aspectos mais ressaltados da sua curadoria no ano passado. Acha que isso será encarado de forma mais natural agora?

R. Sim, não queremos mais falar de percentual, porque fizemos um balanço e concluímos que acabou nem sendo tão bacana ressaltar isso. Depois que a programação saiu no ano passado, ficou um papo constante sobre porcentagens e cotas para autores, mas o fato é que eu queria ter mais diversidade sem, contudo, estabelecer números. Mas é claro que eu controlo esse aspecto de perto, porque nesse processo de enviar convites para autores e esperar respostas é possível perder a mão da diversidade. Se formos contar, neste ano há mais mulheres do que homens convidados e o percentual de cerca de 30% de autores negros se manteve. Outra coisa, que acabou surgindo meio espontaneamente, é a grande presença de autores com origem africana, talvez a maior na história da Flip, como a Leila Slimani, a Isabela Figueiredo e o Alain Mabanckou.

P. E por que a escolha de Hilda Hilst, autora tão diferente do último homenageado, Lima Barreto?

R. Quando terminou a última Flip e eu fui convidada para voltar a ser curadora, eu disse que para mim só faria sentido se a homenageada fosse uma mulher. Eu tinha dois ou três nomes em vista e um deles era a Hilda. No caso do Lima Barreto, ele era visto como um pré-modernista, sendo que, na verdade, ele era um moderno antes do modernismo. No caso da Hilda, ela não se vincula a essa corrente. Tudo que ela começou a fazer não se relacionava com nenhum sistema existente naquele momento no Brasil. Ela fazia as mais variadas leituras de autores de todo o mundo. Ela tinha uma pesquisa, por exemplo, com filosofia e física. Ela construiu uma obra única e é uma autora que fica de fora desse cânone por não se encaixar em uma linhagem por quem lia ou por quem estudava esses autores. É, enfim, uma autora que vem alargar nosso horizonte de leituras.

Hilda construiu uma obra única e é uma autora que fica de fora do cânone por não se encaixar nele. É uma autora que vem alargar nosso horizonte de leituras

P. E ela sempre foi tachada como uma escritora hermética também.

R. É verdade, só que a sensação é de que os leitores de hoje estão também cada vez mais abertos ao texto dela. É uma obra completa que tem esse frescor e que nos leva a debater outras questões importantes também neste momento. Eu lembro que quando a Hilda Hilst foi anunciada como homenageada, estava acontecendo aquele momento de debate sobre a exposição Queermuseu. De imediato, as pessoas lembraram de O Caderno Rosa de Lori Lamby [um dos últimos livros da autora que, em forma de diário, conta a história de uma menina que, com apenas oito anos e incentivada por sua mãe, passa a se prostituir] e ficaram pensando na repercussão que a escolha da Hilda traria num ambiente como esse. Isso porque a literatura dela causa incômodos, faz você refletir e não se enquadra em certas expectativas do que deve e do que não deve ser retratado na arte. A Hilda bagunçava um poucos as expectativas.

P. Outra marca da edição passada foi a presença de pequenas e médias editoras seja na programação oficial, seja em eventos paralelos. E a sensação para quem acompanha o mercado editorial é de que no último ano houve um crescimento dessas editoras. Acha que foi um efeito da Flip?

R. Talvez isso seja resultado do efeito da Flip, talvez do efeito do momento político. A verdade é que apareceram muito mais eventos relacionados a pequenas editoras. Teria que quantificar melhor, mas eu tenho essa impressão de que aumentou muito. A presença de mais de vinte casas parceiras da Flip que vão oferecer uma programação paralela neste ano é um indicativo disso para mim. Também acredito que o sucesso delas é dado pelo nicho em que elas estão. Quer dizer, o editor e a editora que mais estiverem conectados com o leitor que eles querem atender vai ser mais bem sucedido. As pequenas e médias precisam ter certa criatividade de onde vender e como vender. Além de usar bastante a internet para divulgar e fazer um trabalho de encontrar veículos que estejam abertos a resenhar os livros.

Outra coisa, que acabou surgindo meio espontaneamente, é a grande presença de autores com origem africana, talvez a maior na história da Flip

P. Há muitos autores convidados que nasceram em um país, mas fizeram sua carreira e foram publicados em outros. É só uma coincidência?

R. Mais ou menos, porque os autores acabam tendo que fazer este caminho: os livros deles fazem sucesso depois de terem sido publicados por uma editora americana ou europeia. Assim, quando eu vou procurar esses escritores, eles já estão vivendo fora de seus países de origem. No caso da literatura de língua portuguesa, por exemplo, isso fica muito claro. Os escritores de São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, acabam sendo editados em Portugal primeiro.

P. E o que você gostaria de corrigir e o que gostaria que se repetisse nesta edição da Flip?

R. Primeiro pelo que vamos corrigir. No ano passado foram 46 autores e este ano serão 33, além disso, teremos menos quatro mesas. Para a curadoria, claro, é ruim ter menos escritores, mas, ao mesmo tempo, acho que para a programação principal acabou sendo melhor, assim há mais respiro. O que eu gostaria que se repetisse é essa vibração que teve no ano passado. Você tinha a sensação de que alguma coisa diferente e importante estava acontecendo. Eu queria muito que isso acontecesse de novo e acho que vai acontecer, mas de outra maneira. A Hilda era uma autora muito interessante, muito surpreendente e acho que esse clima hilstiano já está no ar.

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