Cabelo não ganha jogo
A crítica insistente ao penteado de Neymar soa tão preconceituosa quanto os rompantes racistas de João Saldanha, técnico genial, mas que implicava com jogadores de black power
Em 2002, a seleção inglesa tinha quatro cabeleireiros à disposição durante a Copa do Mundo. Às vésperas da partida contra o Brasil, pelas quartas de final, David Beckham bancou a viagem do próprio cabeleireiro ao Japão. O jogo anterior da Inglaterra, que venceu a Dinamarca por 3 a 0, acontecera sob forte chuva em Niigata. Victoria Beckham teria se inconformado com o estado do cabelo do marido ao fim do duelo e sugeriu a ida emergencial do hair stylist Adee Phelan com o intuito de retocar o penteado do astro. Curiosamente, o responsável pela falha no gol da eliminação inglesa, marcado por Ronaldinho Gaúcho em cobrança de falta, foi o cabeludo David Seaman.
Dois anos antes, Alex Ferguson, lendário técnico do Manchester United, havia obrigado Beckham a raspar o moicano no vestiário antes da final da Supercopa da Inglaterra. Seu time levou 2 a 0 do Chelsea. Cabelo não ganha nem perde jogo. Parece óbvio, mas, quando o juiz apita, o que realmente conta é o desempenho em campo. Nesse sentido, nada mais inútil e exagerado que a discussão em torno dos penteados de Neymar ou dos cabeleireiros que prestam serviço à seleção brasileira. “Ah, mas jogador tá mais preocupado com o cabelinho do que em jogar bola.” Atletas de futebol não vivem 24 horas em função do trabalho. Na concentração, muitos se distraem com videogame, baralho, dominó, livros, celulares e, em alguns casos, até tomam um vinho ou uma cerveja para relaxar nos momentos de folga dos treinos. São seres humanos, não robôs.
Aproveitar o tempo livre para cortar o cabelo, fazer o pezinho, alisar o topete ou mudar o corte a cada partida não deveria ser um parâmetro para avaliá-los. Dar um trato nas madeixas no cabeleireiro da esquina ou na barbearia gourmet tampouco define o caráter de alguém. Neymar merece críticas pelo excesso de individualismo, por cavar faltas desnecessárias, por prender demais a bola em zonas improdutivas do campo e, inclusive, por temas que fogem às quatro linhas, como as acusações de sonegação de impostos e a conduta pouco profissional em sua primeira temporada no PSG. Ao inserir o penteado no mesmo bolo de questionamentos, torcedores e parte da imprensa apenas reforçam a síndrome de perseguição que o craque alimenta desde os tempos que despontou no Santos.
Depois de três meses se recuperando de uma lesão, julgando-se vítima de censuras injustas a seu comportamento, Neymar poderia ter se poupado da exposição ao atrair holofotes para o cabelo – o que não é incomum ao longo de sua carreira – logo na estreia do Brasil na Copa. Talvez tenha se inspirado em Ronaldo, que, antes da semifinal do Mundial em 2002, sentia dores na virilha e resolveu adotar o exótico corte à la Cascão para desviar a atenção de sua condição física. A diferença é que o ex-camisa 9 só lançou moda na reta derradeira da Copa, além de ter marcado os gols que deram o pentacampeonato ao Brasil. Neymar passou em branco contra a Suíça, com pouco brilho individual. Embora não esteja totalmente recuperado da lesão, não precisava se expor tanto por causa de um novo visual, sobretudo após ter jogado bem os amistosos preparatórios contra Croácia e Áustria.
Ainda assim, há exageros que descambam para o linchamento de cunho capilar. Não gostar do jogador ou do sujeito que aparenta ser fora dos gramados é do jogo. Usar o corte de cabelo para atacá-lo beira a falta de bom senso e a intolerância. Além de pouco construtiva, a crítica insistente ao penteado de Neymar soa tão preconceituosa quanto os rompantes racistas de João Saldanha, um dos técnicos mais geniais da história do futebol brasileiro, mas que implicava com os atletas de black power. “Sou radicalmente contra jogador cabeludo na seleção. Nos crioulos que usam uma grama desse tamanho na cabeça, a bola amortece na hora de cabecear”, dizia. Telê Santana, treinador da seleção em duas Copas, também não gostava de penteados extravagantes. Porém, em um dos times mais fantásticos que dirigiu, o Brasil de 82, se destacavam cabeleiras como as de Sócrates, Júnior e Falcão.
Por que atletas homens não podem exibir vaidades, lágrimas e emoções como bem entenderem, sob o risco de serem depreciados por isso? Por que, embora não se autodeclare negro, um craque como Neymar tem o direito de alisar e pintar seu cabelo da cor que quiser cerceado pelo crivo ridicularizador dos fiscais de penteado? Em um país repleto de preconceitos enraizados, a linha entre a crítica futebolística e o acosso discriminatório é sempre muito tênue. Em seu auge, Beckham era visto como um símbolo bem-sucedido de marketing pessoal, o ídolo que influenciava gerações pelo simples fato de cortar o cabelo. Sua liderança como capitão da seleção inglesa jamais foi colocada em xeque pelo inconfundível estilo moicano. Apesar de ter mais talento que Beckham com os pés, Neymar sofre cornetadas ferozes ao adotar o mesmo expediente de transformar a própria aparência. Por favor, mais críticas ao desempenho dos jogadores, menos implicância e preconceito com o cabelo dos outros.
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