Uma outra história: a iconografia de um país nada cordial
Exposição em cartaz no IMS, em SP, abrange 75 anos de conflitos mostra país longe de ideia conciliadora
Quando olha para as disputas, conflitos e violências atuais, o Brasil tem muitas vezes dificuldade em entender de onde partiu a centelha do conflito, exatamente. Afinal, o retrato do brasileiro como um povo cordial, pacífico e conciliador abunda tanto na historiografia, quanto na iconografia. As grandes imagens do Brasil falam, muitas vezes, de um país icônico: jangadas ao mar, religiões afro-brasileiras, novas cidades sendo erigidas em meio ao cerrado. Oferecer uma outra representação, que ilustre os conflitos e violências constantes que fizeram e fazem parte da história do país, é o que pretende a exposição Conflitos: Fotografia e Violência Política no Brasil 1889-1964, que, depois de uma temporada no Rio de Janeiro, chega ao Instituto Moreira Salles (IMS) de São Paulo nesta terça-feira, dia 8.
Cobrindo um período de 75 anos, as cerca de 400 imagens que compõem a exposição fazem um percurso através de revoltas populares, rebeliões, guerras civis, golpes de Estado e tentativas de revolução que se deram a partir da proclamação da República, em 1889, até o golpe militar de 1964. O grande período abarcado pela mostra e as especificidades de cada evento – são 19 ao todo – têm em comum o fato de que todos os conflitos retratados tiveram, de alguma forma, o envolvimento do Estado e foram parte de um processo maior de disputa política.
Na exposição, capítulos menos e mais conhecidos da história brasileira ganham, através das imagens, uma materialidade que permite uma compreensão maior de suas reais dimensões e reverberações, como a Guerra de Canudos (1896-1897) e o Tenentismo, que durou boa parte da década de 1920. A primeira foto que abre o percurso de eventos retratos, por exemplo, mostra um homem sendo degolado durante a Revolução Federalista (1893-1895), conflito pela disputa do poder do Rio Grande do Sul. Na época, a cruel degola era um evento corriqueiro desde, pelo menos, a Guerra do Paraguai (1864-1870), por motivos tão fúteis quanto a economia de munição e afirmação de superioridade. Chocante, contudo, a imagem é simbólica de uma prática disseminada não só naquele Brasil, mas também neste – quando se lembra das atuais rebeliões e disputas de facções em presídios.
Outras fotos, como a de duas crianças em meio aos escombros de uma casa bombardeada em plena Vila Mariana, bairro de classe média de São Paulo, durante a Revolução de 1924, fazem refletir sobre o tamanho que determinados eventos tiveram e a imagem que se têm deles hoje. Em 1924, a revolta de tenentes descontentes com o Governo Federal de Arthur Bernardes foi um dos passos que resultaram na Revolução de 1930, em que Getúlio Vargas assumiu o poder. Do conflito, que sitiou a capital paulista por cerca de 20 dias, saíram milhares de feridos e mortos. Apesar da história ser conhecida, a fotografia dá contornos reais para o drama da população civil, bombardeada pelo próprio Governo, e faz pensar na real dimensão de acontecimentos que às vezes são tratados como capítulos protocolares nos bancos escolares.
Em conversa com o EL PAÍS, a curadora da exposição, Heloísa Espada, ressalta o fato de que, se por um lado, a mostra é um resgate de acontecimentos marcantes da vida nacional, também serve como uma pequena história da fotografia documental e do fotojornalismo no Brasil. “No século XIX, por exemplo, o lugar da fotografia ainda era muito distante da denúncia do fotojornalismo, então, muito do que há disponível é material oficial, que mostra uma determinada narrativa”, diz. Muito do que era produzido tinha a intenção apenas de revelar o lado vitorioso do Governo, mesmo em ocasiões dramáticas, como a Guerra de Canudos, que resultou na morte de 20 mil pessoas, entre soldados e a população do local que foi dizimada. Os relatos das grandes mazelas só vinha por texto e à imagem era reservado um caráter de história oficial.
A evolução das tecnologias fotográficas fazem com que as narrativas também mudem. Se antes as fotos eram estáticas, a partir dos anos 1930 elas começam a mostrar ação e pontos de vista diferentes e não oficiais – ainda que, como lembra Espada, toda produção iconográfica seja carregada de intenções. Impressionantes, por exemplo, são as imagens do dia do suicídio de Getúlio Vargas, em 1954: a praia do Flamengo, no Rio de Janeiro, então capital federal, completamente tomada por um cortejo de pessoas que levava seu corpo até o aeroporto; os caminhões de grande parte da imprensa, identificada pela população por fazer uma campanha anti-getulista, depredados. Aí, o fotojornalismo já era uma realidade e as revistas ilustradas, como a Cruzeiro, tinham alta vendagem. As intenções por trás de quem tira a foto e a edita, contudo, nunca deixaram de ser uma questão.
“Toda imagem realizada num conflito é interessada e abordá-la é abordar também os fatores que moldam seus significados”, diz Espada na abertura do livro catálogo – que pode ser lido e comprado separadamente. Por isso, segundo ela, o material serve ainda como um registro de como e por quem foi contada a história das violências brasileiras. Na elaboração de Conflitos: Fotografia e Violência Política no Brasil 1889-1964, foram gastos cerca de quatro anos, entre pesquisa e confecção do material, em que a curadora contou com o apoio de uma equipe de pesquisadores. A socióloga Angela Alonso, que participou do processo, escreve também no livro: “Se você aprendeu na escola que este é um país pacífico e conciliador, vai desaprender. Aqui se descortina uma sociedade de faca, tiro e bomba. Não pense que se fala de um mundo à parte, o dos 'marginais'. É do coração da República que se trata”.
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