As memórias da família brasileira numa fotopintura na parede
Mostra resgata tradição de retratistas e revela antigas técnicas que permanecem até hoje

O dia é de romaria em uma cidade qualquer no interior do Nordeste. Uma família posa para uma série de retratos em frente a uma lona pintada com a imagem de Nossa Senhora Aparecida e ao lado de uma estátua de Padre Cícero, o Padim Ciço. O cenário é adornado também por lâmpadas coloridas, plumas e um punhado de outras quinquilharias, como cavalinhos de pau e ursinhos de pelúcia. O fotógrafo, por sua vez, usa um equipamento rústico de madeira pintada e apoiado em um tripé: é uma câmera lambe-lambe. A cena explica o mote da exposição Retrato Popular: do vernáculo ao espetáculo, em cartaz no Sesc Belenzinho, em São Paulo, até 31 de julho, dedicada a resgatar a memória fotográfica brasileira.
Não são apenas as imagens, mas também todo o universo que cercava retratados e retratistas, que está exposto na mostra. No Brasil, e em especial no Nordeste, a fotografia sempre esteve vinculada a dois tempos mágicos: ao da religiosidade e ao da terra. É que por muito tempo, os retratos eram feitos quase que exclusivamente em feiras agrícolas e durante romarias. Essa circunstância acabou por criar uma identidade muito comum a essas imagens que hoje servem como um registro de um tempo que passou – tanto como consequência de avanços socioeconômicos, quanto principalmente por mudanças tecnológicas que acabaram com antigas práticas de fotógrafos –, mas que mesmo assim resiste aqui e ali.
“A fotografia popular se encontrava informalmente em lugares de grande aglomeração como passeios públicos, praças, feiras, circos e romarias. Faz parte do dia a dia de quase toda a população e assim da identidade brasileira”, diz o curador Titus Riedl. A exposição, na verdade, começou pelo menos dez anos antes, quando a curadora Valéria Laena formou um acervo do tema e o expôs no Museu da Cultura Cearense – Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza, que hoje é parte da exposição de São Paulo. Durante anos, ela circulou de Canindé a Juazeiro do Norte, no Ceará, passando por todas as cidades em que houvesse uma feira e uma romaria atrás de fotos, retratistas e equipamentos. "Destacamos essa produção fotográfica como forma de valorização de uma memória e transmissão de ofícios na maioria realizados por profissionais e mestres anônimos", diz Valeria.
Documentário Câmera Viajante, de Joe Pimentel
“Em um momento de mudança de tecnologia, em que a câmera digital começava a chegar com mais força, os dois percorreram lugares de romaria para levantar um acervo e registrar o trabalho dos fotógrafos que usavam técnicas que hoje praticamente desapareceram”, conta a também curadora da mostra, Rosely Nakagawa. Graças ao trabalho de preservação dos dois, hoje a exposição do Sesc tem o registro físico de monóculos, pequenas peças de plástico em que se vê um slide contra a luz; das câmeras instantâneas lambe-lambe, criações caseiras de madeira que tinham um laboratório de revelação integrado; e da fotopintura, que mescla fotografia e pintura.

Do trabalho, além do acervo histórico, nasceu o documentário Câmera Viajante, que fala sobre a vida desses antigos fotógrafos andarilhos, que viviam viajando de uma cidade a outra em busca de clientes. Se o meio de vida de muitos desses retratistas e suas antigas técnicas sumiram com o tempo, algumas coisas também permanecem. "Hoje todos tem uma câmera no celular e tiram selfies o tempo todo, mas uma selfie nunca será suficiente para fazer um voto ao santo de devoção, por exemplo. Por isso, o trabalho dos retratistas, ainda que com outros suportes e técnicas, resiste", diz Rosely. A lona pintada, tão simbólica, por exemplo, continua presente em lugares de romaria: a diferença é que no lugar de uma câmera lambe-lambe vai uma câmera digital e muitas vezes dentro da própria estrutura de madeira antiga.
Como há resistência, também há renovação. É o caso, por exemplo, de Mestre Julio, que tem suas obras expostas na mostra. Tendo trabalhado com fotopintura manualmente durante toda a vida, hoje ele usa o photoshop para fazer intervenções em fotografias originais ou para resgatar rostos de fotografias danificadas. Tradicionalmente, a fotopintura, tão emblemática no imaginário popular, foi usada para criar montagens a partir de uma foto 3x4 reproduzida com pintura, mas hoje o material necessário para fazer o trabalho não existe mais. “Era muito normal, por exemplo, que um vendedor passasse de sítio em sítio recolhendo fotografias que depois ele levaria para o fotopintor que criava o contexto que as pessoas quisessem. Algumas tinham o desejo de serem retratadas com roupas chiques, outras, que não tinham registros de seus casamentos, de noiva e noivo”, comenta Rosely.

Ao lado da identidade tradicional, atrelada também a novas linguagens, como a de Mestre Julio, a exposição apresenta o trabalho dos fotógrafos Tiago Santana e da dupla Tonho Ceará e Luiz Santos. Enquanto o primeiro se dedica a retratar as peregrinações de romeiros a Juazeiro do Norte, os outros dois registram a movimentação dos povos nômades, como indígenas, circenses, ciganos e sem-terra, fazendo, também, um trabalho de resgate de antigas técnicas, como o uso da câmera lambe-lambe. Estabelecendo uma ponte entre a identidade fotográfica brasileira e o trabalho de fotógrafos de hoje, Retrato Popular é a cara do Brasil que foi e, em alguns casos, continua sendo, ainda que de outras formas. "Hoje as pessoas querem se ver retratadas como universitários, por exemplo, é uma mostra que as aspirações mudaram junto com o crescimento do país e a melhora da região", diz Rosely.
'Retrato Popular: do vernáculo ao espetáculo'
Sesc Belenzinho
Visitação: de 06 de maio a 31 de julho de 2016.
Terça a sábado, das 10h às 21h.
Domingos e feriados, das 10h às 19h30.
R. Padre Adelino, 1000
Mais informações sobre a programação da mostra aqui.