Faltam dados no debate sobre a prisão após condenação em segunda instância
Apesar do 'fla-flu' entre defensores e críticos, ninguém sabe quantos foram presos desde que o STF mudou regra em 2016 que levou Lula à cadeia
A prisão após condenação em segunda instância entrou de vez no debate nacional depois da detenção do ex-presidente Lula, em 8 de abril. A nova jurisprudência, adotada pelo Supremo Tribunal Federal no final de 2016, também embarcou na lógica da polarização partidária que tomou conta do país. Segundo pesquisa do Instituto Datafolha divulgada nesta terça-feira, 57% dos brasileiros defendem a medida, enquanto que 36% são contrários. Seus defensores - dentre eles os integrantes da força-tarefa da Operação Lava Jato - afirmam que ela coíbe a impunidade, evitando que os criminosos do colarinho branco se escondam atrás de infindáveis recursos protelatórios às cortes superiores até que as penas prescrevam. Já os críticos da medida afirmam que ela apenas colabora para seguir inchando o superlotado sistema carcerário brasileiro ao prender mais pessoas pobres, além de negar ao réu o direito à plena defesa previsto na Constituição. Apesar de ser um dos temas mais comentados no meio jurídico, faltam dados que corroborem estes argumentos pró e contra a prisão após condenação em segunda instância.
Se o debate sobre a constitucionalidade ou não da medida fica no plano teórico e está sujeita a diferentes interpretações da lei, seus impactos práticos são desconhecidos. Por um lado não se pode afirmar categoricamente que a mudança na jurisprudência fortaleceu o combate à corrupção, mas tampouco é certeiro dizer que ela teve um efeito negativo nos presídios do país. O STF não tem nenhum balanço nacional das prisões após condenações em segunda instância. Já o Tribunal Federal da 4ª Região, Corte que revisa as sentenças do juiz Sérgio Moro, informou que não possui dados gerais sobre o tema, mas que no âmbito da Lava Jato são dez pessoas nesta situação – dentre elas Lula. O Tribunal de Justiça de São Paulo também afirmou que não possui dados específicos sobre o assunto. Assim, não se sabe quantas pessoas foram presas no país com base no novo entendimento do STF aprovado em 2016, nem por quais crimes. Não se sabe se são ricas, pobres, traficantes ou corruptos.
Para o professor da Fundação Getúlio Vargas-Rio Thomaz Pereira, “seria de extrema relevância ter acesso a estes dados”. Ele destaca que já faz quase dois anos da nova jurisprudência, e que “é preciso ferramentas para avaliar o impacto que isso teve no sistema penitenciário e na sociedade”. “Dito isso, é preciso lembrar que muitas pessoas estão presas preventivamente, independentemente da condenação na segunda instância”, afirma. É o caso, por exemplo, do ex-ministro do PT Antonio Palocci, preso em abril de 2016 pela Lava Jato e desde então detido preventivamente sem previsão de soltura, apesar ter ter sido apenas condenado por Moro em primeira instância. Cerca de 40% dos pouco mais de 726.000 encarcerados brasileiros se encontram na situação do petista: são presos provisórios, sem condenação definitiva. “É preciso saber quantos são os Lulas [presos após condenação em segunda instância] e quantos são os Paloccis [sem condenação] dentro do sistema para que se possa fazer uma avaliação mais precisa”, diz.
Um dos poucos dados disponíveis sobre este tipo de prisão foi obtido pela Defensoria Pública de São Paulo. No dia 11 de abril a entidade enviou uma manifestação ao ministro Marco Aurélio Mello criticando a nova jurisprudência e o “impacto de prisões automáticas em segunda instância sobre a superpopulação carcerária, sobretudo aos pobres”. De acordo com o documento, entre fevereiro de 2016 (quando o entendimento sobre a prisão foi alterado pelo STF) e abril de 2018, ao menos 13.887 mandados de prisão foram expedidos pelo Tribunal de Justiça do Estado tendo como base a decisão do Supremo sobre o assunto. No entanto, nada se sabe sobre o perfil destes presos ou seus crimes: se são pessoas pobres condenados por crimes de drogas (perfil de quase um terço do total da população carcerária) ou executivos corruptos.
Defensores públicos ouvidos pela reportagem apontam que “a grande maioria” destes 13.887 presos após a mudança jurisdicional tem o mesmo perfil da população carcerária brasileira: 51% tem o ensino fundamental incompleto, 64% são negros e 28% estão presos por tráfico de drogas. Logo, segundo este entendimento, a nova jurisprudência estaria penalizando apenas aqueles que já estão na mira da Justiça. No entanto, não existem estatísticas que confirmem a afirmação dos defensores.
A decisão do STF autorizava a detenção, mas não a tornava mandatória. Cabe ao juiz da primeira instância determinar ou não se expede o mandado de prisão
Fábio Tofic, do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, faz coro com essa opinião. Para ele, a mudança de jurisprudência como justificativa para a prisão de corruptos é falaciosa. “O Brasil, sem a prisão em segunda instância, já é um dos países que mais prende no mundo sem condenação alguma. Quantos destes são réus da Lava Jato, poderosos e ricos? Estamos falando de centenas em um universo de milhões”, afirma.
Outro ponto que tem sido criticado com relação à prisão após condenação na segunda instância é sua obrigatoriedade. A decisão do STF autorizava a detenção, mas não a tornava mandatória. Cabe ao juiz da primeira instância determinar ou não se expede o mandado de prisão para que o condenado comece a cumprir a pena. Alguns ministros da Corte e advogados agora afirmam que muitos tribunais de primeira instância estão adotando a nova jurisprudência como se fosse obrigatória. O ministro Gilmar Mendes, em entrevista à Folha de S.Paulo, afirmou que pedir o início do cumprimento de pena "virou regra, como se tivesse sido um axioma. Se tornou imperativa, nesse ambiente de caça às bruxas”. No entanto, sem um balanço de como os tribunais estão adotando (ou não) a prisão após condenação em segunda instância, as falas de Mendes são achismo.
No campo mais teórico, com relação ao cerceamento do direito de defesa dos réus, existem análises acadêmicas que trazem mais luz sobre a questão. A pesquisa da Fundação Getúlio Vargas-Rio intitulada Panaceia universal ou remédio constitucional? Habeas Corpus nos Tribunais Superiores, coordenada pelo professor Thiago Bottino, aponta que entre 2008 e 2012 mais de 66% dos pedidos de habeas corpus feitos pelas defensorias foram acatados pelo STJ, e 43% pelo STF. Estes dados confirmariam a tese de que a terceira instância frequentemente reforma as sentenças das instâncias inferiores. Logo prender alguém antes do trânsito em julgado poderia ser entendido como uma violação de direitos.
O mais famoso expoente da mudança na jurisprudência foi o ex-presidente Lula. A ordem de prisão assinada pelo juiz Sérgio Moro foi emitida dias após o STF ter negado o habeas corpus do petista. Atualmente ele cumpre pena de 12 anos e 1 mês na sede da superintendência da Polícia Federal em Curitiba por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do tríplex no Guarujá. Outro político que pode se ver atrás das grades em breve é o ex-governador de Minas Gerais Eduardo Azeredo, do PSDB. Ele deve ter seus últimos recursos julgados pelo Tribunal de Justiça ainda em abril. Caso sejam negados, ele pode começar a cumprir pena.
Estão pendentes de discussão no STF duas ações que pedem a revisão da prisão após condenação em segunda instância, mas não há um prazo para que isso ocorra.
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