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Delatores da Lava Jato: penas menores do que o previsto e patrimônio mantido

Executivos e doleiros que colaboram com a Justiça firmam acordos para manter patrimônio obtido muitas vezes de forma ilícita

Gil Alessi

Enquanto presos comuns se amontoam em cubículos, empresários, diretores e doleiros que firmaram acordos de colaboração premiada com a Justiça no âmbito da Operação Lava Jato vivem uma realidade bem diferente. Responsáveis por desvios milionários, pagamentos de propina a agentes públicos, lavagem de dinheiro, formação de cartel entre outros crimes que lesaram os cofres públicos, eles negociaram com o Ministério Público Federal acordos nos quais puderam manter parte do patrimônio obtido muitas vezes de forma ilegal, além de terem as penas reduzidas além do que prevê a lei de colaborações. Hoje muitos estão em coberturas de luxo e condomínios abastados cumprindo suas penas. O juiz Sérgio Moro já condenou, até o momento, 87 pessoas, e no total a Lava Jato firmou mais de 140 acordos de delação.

Alberto Youssef chega à Polícia Federal em Curitiba
Alberto Youssef chega à Polícia Federal em CuritibaAniele Nascimento (AGP/AE)

O caso do doleiro Alberto Youssef, por exemplo, é emblemático. Ele é um dos principais delatores do esquema de corrupção da Petrobras, e em seu caso a redução de pena foi muito superior aos dois terços previstos em lei. Condenado em vários processos a mais de 121 anos de prisão, conseguiu emplacar em seu acordo uma cláusula que prevê no máximo o cumprimento de três anos em regime fechado. Ele cumpriu dois anos e oito meses de prisão, e migrou para o regime fechado domiciliar, onde permanecerá mais quatro meses. Atualmente mora em um edifício de luxo localizado a cinco quadras do parque do Ibirapuera, em um dos metros quadrados mais caros da capital paulista - com varanda gourmet e equipes de segurança da empresa Haganá rondando o quarteirão. No dia em que a reportagem visitou o local, o doleiro estava se exercitando na academia do prédio, de acordo com funcionários do condomínio.

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O artigo 4º da lei de delações premiadas, sancionada pela ex-presidenta Dilma Rousseff em 2013, prevê que o colaborador possa ter a pena reduzida em até dois terços ou até mesmo extinta. Isso se as informações oferecidas em troca levarem à recuperação de ativos, prisão de peixes maiores ou previnam outros crimes. Mas no âmbito da Lava Jato, a lei tem sido aplicada de forma diversa.

O ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa, um dos primeiros presos pela Lava Jato, em março de 2014, foi responsável por abrir a caixa de Pandora do esquema de corrupção nas diretorias da petroleira. Dono, junto com seus familiares, de 12 empresas offshores abertas para movimentar milhões de dólares, foi condenado por Sérgio Moro em sete ações penais a um total de 128 anos de prisão. Desde o final de 2016 ele já cumpre pena em regime aberto sem tornozeleira eletrônica. Ele deixou o regime fechado um dia após seu acordo de delação premiada ter sido homologado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki, morto no início deste ano. No total ficou cinco meses atrás das grades. Atualmente, mora em um condomínio de luxo na região serrana do Rio de Janeiro. Posteriormente o Ministério Público Federal pediu que Moro suspenda os benefícios de sua delação, uma vez que ele e suas filhas teriam mentido e tentado ocultar provas nos depoimentos, de acordo com o Buzzfeed. Até o momento o magistrado não se posicionou sobre o pedido.

Em nota, o MPF, responsável pelos acordos, defende a redução das penas além do que está previsto na lei. “O juiz, nesses casos, tem o poder máximo que lhe pode ser deferido pela lei, que é o de conceder perdão, ou ainda o poder bastante significativo de substituir a pena privativa de liberdade pela restrição de direitos”. Logo, prossegue o texto, “por qual motivo então, considerando que o juiz pode o mais – o perdão ou a substituição pela restritiva de direitos -, não poderia ele ir além da redução da pena em 2/3?”. Para o órgão, é importante ressaltar que “é inerente ao sistema de colaboração a adequação da pena à importância da colaboração para as investigações”.

A força-tarefa da Lava Jato fala do assunto com propriedade. Afinal de contas, mesmo sofrendo críticas com relação a seus métodos, os procuradores já conseguiram repatriar mais de 4 bilhões de reais, um número recorde no país. Mas os investigadores ainda estão atrás de outros 6 bilhões, que, de acordo com o site de prestação de contas da Operação, "são alvo de recuperação via acordos de colaboração". Além disso, procuradores de outros países da América Latina onde empreiteiras brasileiras também pagaram propinas a agentes públicos - os desdobramentos internacionais da Lava Jato - vieram ao Brasil no início do mês para alinhar uma estratégia comum de combate à corrupção e aprender com a equipe brasileira.

O lobista Fernando Soares, vulgo Fernando Baiano, considerado o braço do PMDB no esquema da Lava Jato, é outro delator que cumpre pena em regime domiciliar. Mas sua residência não é qualquer uma: trata-se de uma cobertura de 800 metros quadrados na orla da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, um dos metros quadrados mais caros do país. Pelo acordo de colaboração ele terá que pagar uma multa de 2 milhões de reais.

Para Walter Bittar, advogado e autor do livro Delação PremiadaDireito Estrangeiro, Doutrina e Jurisprudência (Editora Lumen Juris), existe uma falta de critério na aplicação das penas. “A lei é omissa nesse ponto: ela diz que a pena pode reduzir em até dois terços ou pode perdoar”, afirma. “Mas como os juízes podem optar por perdoar eles estão agindo de forma arbitrária, o que não gera segurança e gera desproporcionalidade entre o crime cometido e o benefício concedido. Qual o critério?”, indaga. O advogado também questiona o valor das multas aplicadas: Youssef, por exemplo, terá que pagar 311.200 reais. “O dano moral causado à coletividade é difícil mensurar”, diz.

Mas lobistas, doleiros e ex-diretores da Petrobras não são os únicos que conseguiram negociar penas mais amenas. É o caso do empreiteiro Ricardo Pessoa, dona da UTC Engenharia, que foi beneficiado por um acordo de delação. Condenado após desdobramentos da Lava Jato a mais de oito anos de prisão por corrupção e pertencer a uma organização criminosa, ele cumpre pena em regime aberto diferenciado, no qual não pode viajar ao exterior. Ele ficará neste regime até 17 de novembro, e depois terá cumprido sua pena. No total, Pessoa ficou seis meses preso em regime fechado.

“Trata-se de um patrimônio obtido de maneira ilícita. Se o Estado devolve ao infrator mesmo via delação premiada esses valores, está na prática lavando dinheiro”

No entanto, existe uma expectativa de que os empreiteiros que começam a assinar seus acordos de delação apenas agora, tardiamente, enfrentem um cenário diferente. É o caso dos executivos e diretores da Odebrecht, a última empresa de construção a admitir seus malfeitos e colaborar com a Justiça. A empresa negou o quanto pôde sua participação no esquema de corrupção, até que outras delações tornaram insustentável a negação de Marcelo Odebrecht – ele já está preso em regime fechado há sete meses, e deve amargar ao menos mais dez meses na cela.

Lavagem de dinheiro sujo

Para além das penas e condições nas quais ela é cumprida, o caso de Youssef tem outra peculiaridade. O contrato firmado por seus advogados com o MPF contém uma cláusula de performance: ele poderá manter 2% de todo o dinheiro que ajudar a recuperar. A quantia pode chegar a até 20 milhões de reais, a metade do patrimônio do doleiro que foi confiscado pela Justiça. Estima-se que ele tenha ajudado a movimentar mais de um bilhão de dólares. Ao jornal O Globo o advogado Antonio Figueiredo Bastos, um dos defensores de Youssef, afirmou à época do acordo que “não se trata de privilégio, pelo contrário, tudo foi negociado estritamente dentro da lei”, e que “a delação é premiada, portanto, pressupõe vantagens ao meu cliente”. Soma-se a isso o fato de que, pela letra da lei, Youssef não poderia fazer a delação premiada na Lava Jato: ele já havia feito acordo semelhante em 2003, durante as investigações do escândalo do Banestado, e mentiu em seus depoimentos.

Bittar afirma que a devolução do patrimônio dos delatores equivale “ao Estado lavar dinheiro sujo”. “Trata-se de um patrimônio obtido de maneira ilícita. Se o Estado devolve ao infrator mesmo via delação premiada esses valores, está na prática lavando dinheiro”, diz. De acordo com o advogado, essas cláusulas no acordo de colaboração com a Justiça tornam o crime vantajoso. “No final das contas ainda está compensando cometer os crimes e delatar”, diz. O advogado ressalta ainda que nenhum benefício concedido pode tornar “atrativo” para um criminoso “cometer ilícitos”.

“O que está acontecendo no Brasil agora? Todo indivíduo que é preso e condenado em primeira instância já começa a cogitar a delação”

O jurista Maierovitch aponta que críticas aos métodos de delação premiada são comuns em vários países nos quais esse mecanismo existe. “Na Itália as autoridades foram muito criticadas por devolver 100% do patrimônio do mafioso Tommaso Buscetta”, diz. Buscetta, que chegou a morar no Brasil por anos, foi um dos primeiros criminosos ligados à Cosa Nostra que colaborou com a Justiça. Seu depoimento é visto até hoje como sendo responsável por ferir de morte a organização siciliana, e ele também teve sua pena de prisão cancelada pelas autoridades. “E lá ainda existem casos nos quais o Estado de certa forma paga para o delator. Isso ocorre nos casos em que o colaborador precisa mudar de nome, cidade, e ser protegido ativamente pelas autoridades”, explica. Maierovitch ressalta, no entanto, que este caso tem relação com criminosos ligados ao crime organizado e a grupos terroristas.

Para o MPF, apesar de complexas, “não há qualquer ilegalidade nas cláusulas de desempenho”. Esse mecanismo seria necessário “para a superação de impasses em negociações, bem como para criar um incentivo extra para a colaboração”. De acordo com a nota do órgão a cláusula de desempenho “ faz parte da natureza pragmática e utilitária do instituto [da colaboração]”. Além disso, continua o texto, “o que é comprovadamente produto do crime sempre é perdido (...) não se pode confundir produto do crime com o dever de indenização”. No entanto especialistas apontam que em muitos casos é uma operação complexa separar dinheiro sujo do dinheiro limpo.

O advogado Marlus Arns de Oliveira defende cerca de 20 pessoas investigadas na Lava Jato. Já negociou acordo de colaboração para quatro de seus clientes – “Mas todos tiveram interesse em conhecer este dispositivo”, afirma. De acordo com ele, não há “previsão legal” para cláusulas de desempenho. “Quanto mais a prova oferecida pelo colaborador servir, mais benefícios ele vai ter, mas não benefícios financeiros, e sim de redução de pena”, afirma. Oliveira afirma também que o patrimônio obtido de forma ilegal não pode ser mantido: “Você pode manter sim o patrimônio obtido de forma lícita, e esse patrimônio acaba sendo usado para pagar multas”.

Outro advogado crítico às cláusulas de performance é Antonio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay. Ele defende vários réus da Lava Jato, inclusive alguns ex-funcionários da Odebrecht, além de ter trabalhado para Youssef. Para ele, a cláusula “foge ao sentido da delação”. “Ela incentiva o criminoso a não apenas entregar informações para as autoridades, mas também a ser um agente do Estado”, afirma. Kakay critica também o recall de algumas delações. “Quem vai fazer delação hoje sabe que pode mentir se quiser, proteger pessoas, omitir informações, e caso seja pego na mentira faz um recall e está tudo bem”, diz.

Já o jurista Walter Maierovitch, estudioso da operação italiana Mãos Limpas, que serviu de inspiração para a Lava Jato, discorda. Ele afirma que precisa ser sempre colocado no primeiro plano em uma delação premiada o interesse do Estado. “O direito premial [que oferece benefícios ao colaborador] é imposto no interesse do Estado, e não no interesse individual do delator. O que interessa o Estado? Compete ao Ministério Público avaliar: é uma relação custo benefício”, diz. Com essa premissa em vista, mesmo que os benefícios oferecidos não estejam previstos na lei, “sua interpretação e aplicação é aberta, levando-se em conta a dificuldade que as autoridades têm para apurar alguns crimes sem a ajuda de delatores”.

Muitos delatores, histórias repetidas

Maierovitch destaca, no entanto, que a falta de experiência com a lei de colaborações premiadas no país pode levar a alguns equívocos. Ele cita como exemplo os 77 delatores da empreiteira Odebrecht. “Estas delações vão se multiplicando e premiando pessoas, quando no fundo você poderia passar um pente fino: entre as 77 vão haver informações repetidas e fatos menores”, afirma.

Para Bittar, o alto número de funcionários da empresa pode provocar o que ele chama de “delação da delação”. “É a delação que corrobora o que foi dito em outra delação. O STF já entendeu que a delação quando corroborada por outra delação não tem valor, precisa de provas”, afirma. O advogado questiona ainda o fato de que, uma vez identificada a responsabilidade pelos crimes, “por que todos vão receber benefícios?”. “O que está acontecendo no Brasil agora? Todo indivíduo que é preso e condenado em primeira instância já começa a cogitar a delação. Passa-se de um processo investigativo para uma barganha”, afirma.

O advogado Marlus Arns de Oliveira, afirma que a “vulgarização do uso da delação premiada traz o risco de acabar com o instrumento”. “Hoje assistimos no país uma proliferação muito grande do instituto. E aí ele ganha um ar de salvo conduto. Se todo mundo faz acordo ninguém é condenado”, diz.

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