O roteiro de negligências que matou a turista espanhola na Rocinha
Polícia Civil pediu a prisão preventiva do tenente por homicídio doloso, mas juiz negou
María Esperanza Jiménez pagou 140 reais pelo passeio que acabou com sua vida. Era uma parte pequena dentro de uma viagem que passou por Bogotá, Buenos Aires e Foz do Iguaçu, e que devia ter terminando no Peru. Mas María Esperanza, de 67 anos, queria conhecer uma favela carioca. No último dia 20, ela, seu irmão e a cunhada desembarcaram no Rio de Janeiro; no domingo pediram para a guia responsável pelas suas atividades turísticas, Rosângela Reñones, uma visita a uma comunidade. Esperanza era a “mais empolgada” com o plano, disse à polícia Carlo Zaninetta, o motorista italiano responsável pelo trajeto. Era pela Rocinha, uma favela conflagrada, mas os espanhóis não sabiam isso. Na segunda-feria, María Esperanza foi morta pelo disparo de um policial militar.
A instável situação que vive a Rocinha há mais de um mês, com tiroteios, operações policiais recorrentes e até o cerco das Forças Armadas por uma semana, foi contada aos familiares de María Esperanza só após o acidente. Nem o motorista nem a guia os alertaram, segundo os depoimentos dos turistas à polícia. Perguntada pelos turistas por que escolheu a Rocinha, Reñones, que fazia esse passeio desde 2002, respondeu que era “uma comunidade grande e as pessoas gostam de conhecer”. Eles não questionaram mais.
Ninguém, nem a guia, conhecia a situação na favela
Segundo os depoimentos, a guia não mencionou, no entanto, que era a primeira vez que ela voltava à comunidade com turistas depois do dia 17, quando uma disputa interna na facção que domina o tráfico na favela tornou o local cenário de confrontos armados constantes. Antes do conflito estourar, ela disse ir na comunidade com os turistas de três a quatro vezes por semana.
Ela tampouco mencionou que, no dia anterior ao passeio, procurou saber como estava o clima na comunidade com um agente de turismo local e que este lhe respondeu que estava tenso, mas que mesmo assim ele seguia fazendo o tour. No dia em questão, a guia sequer procurou se informar e disse desconhecer que um confronto deixou dois policiais e um suposto traficante feridos apenas uma hora antes de Esperanza ser atingida.
Rosângela era a subcontratada de uma empresa locadora de carros com motorista, a Carioca Rio Tour, subcontratada pela Brasil Operadora que, por sua vez, era subcontratada da Exoticca, a agência espanhola que organizou toda a viagem da Espanha. “Nossos clientes reservaram uma viagem combinada Argentina, Brasil e Peru. Todos os serviços do Brasil foram contratados com a empresa local com a qual trabalhamos: Brasil Operadora. Nunca foi oferecido nem da Exoticca nem da Brasil Operadora um passeio às favela. E mais, a Brasil Operadora sempre nos desaconselhou a realizar esse passeio precisamente pelo risco que implica. É por isso que desconhecemos a empresa Carioca Rio Tour e desconhecemos como María Esperanza e seus acompanhantes concretizaram esta atividade”, disse a agência de viagens espanhola a este jornal.
No passeio na favela, suspeitas da polícia
Depois de recolher o grupo num hotel de Botafogo, o motorista levou os turistas à parte baixa da favela e combinou de aguardá-los enquanto eles passeavam pelas vielas de uma das maiores favelas de América Latina. Durante o tour, e por conta do tiroteio ocorrido uma hora antes, os espanhóis e a guia encontraram muito mais policiais do habitual, o que, paradoxalmente, os confortou, disseram em depoimento. Como chovia, Reñones pediu para o motorista subir o morro e procurá-los para evitar a descida a pé sob a chuva. O italiano foi ao encontro do grupo e, na subida, chegou a ser parado por uma blitz, foi revistado e liberado em seguida quando disse que iria recolher turistas. Mas, segundo divulgou a TV Globo, os policiais ficaram monitorando o veículo, um Fiat Freemont com os vidros muito obscuros, pelo rádio e o WhatsApp. Suspeitavam que o italiano estivesse sendo usado para transportar traficantes.
Com o grupo no carro, o motorista foi pegar a curva do Largo do Boiadeiro, uma região comercial, embora também ponto de venda de drogas, quando três policiais deram a ordem para que ele parasse. O veículo não parou. Entre os agentes estava o soldado Luís Eduardo de Noronha, que disparou para o alto, e o tenente Davi dos Santos Ribeiro, que atingiu duas vezes o veículo matando Esperanza com um tiro no pescoço. O oficial se defendeu dizendo que atirou no chão. Os dois chegaram a ser presos em flagrante nesta segunda.
O policial não deveria ter disparado
Não há protocolo policial que justifique o procedimento adotado pelos agentes, embora a Polícia Militar do Rio venha enfrentado vários episódios nos quais fica evidente que há abordagens nas quais dispara antes de perguntar. Em outubro de 2015, por exemplo, a PM matou dois rapazes que estavam em uma moto ao confundir um macaco hidráulico com um fuzil. Internamente, na corporação, esses tipos de reações justificam-se no contexto de crise, violência, “guerra assimétrica”, e condições nas quais os policiais do Rio trabalham. “Não há previsão para o ato desses policiais em nenhum manual da PM ou da Secretaria de Segurança. Contudo, a PM reconhece todo o ambiente de estresse que esses policiais têm vivido ao longo de mais de 30 dias ocupando a Rocinha, sobretudo num dia em que tivemos companheiros feridos”, disse o porta-voz da PM, Major Blaz, após mencionar a “má conduta” dos policiais.
Nesta terça-feira, a Polícia Civil pediu a prisão preventiva do tenente por homicídio doloso [com intenção de matar] qualificado, mas um juiz negou sua prisão. “Se, de um lado, o trágico acontecimento repercutiu nesta capital e no mundo, fato é que o custodiado estava trabalhando, possui imaculada ficha funcional, não havendo indícios de que solto possa reiterar o comportamento criminoso ocorrido à luz do dia”, afirmou o juiz na decisão, que determinou que o tenente deve ser afastado do exercício de patrulha ostensiva, exercendo apenas atividades administrativas. Ambos, no entanto, continuam presos até a Justiça Militar analisar um outro crime cometido: disparo de arma de fogo em via pública.
Ninguém no carro viu o sinal dos agentes. Só souberam que algo não ia bem quando ouviram o primeiro tiro. Depois, um segundo e, depois, um terceiro, que fez tremer o veículo. A van branca que ia na frente acelerou, e o italiano, por instinto, também. Uns 30 metros depois cerca de 15 policiais o detiveram. “Sai do carro, filho da puta, desce, desce!”, gritaram. “Por que não parou?! Estávamos correndo atrás de você gritando para você parar!”. Só quando o irmão de Esperanza foi sair do veículo, percebeu que ela tombou no banco. No hospital Miguel Couto apenas certificaram o óbito. “Foi uma situação realmente surreal, sem sentido nenhum, e estou muito abalado”, escreveu o motorista ao EL PAÍS, após se recusar a falar sobre o caso.
A morte de Esperanza, a quarta de um turista estrangeiro numa favela do Rio no último ano, escancarou uma sequência de negligencias. As de uma operadora turística que coloca em risco seus clientes, e as da polícia militar do Rio – a que mais mata e a que mais morre do Brasil – que, apesar de o carro dos espanhóis não apresentar nenhum risco, atirou.
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