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Colson Whitehead: “Os EUA ainda não assumiram o episódio da escravidão”

Convidado da Flip, escritor recria a fuga à liberdade de uma afro-americana no século XIX

O escritor Colson Whitehead, em Barcelona.
O escritor Colson Whitehead, em Barcelona.ALBERT GARCIA

A primeira vez em que ouviu sobre o assunto, o menino Colson Whitehead estava no quarto ou quinto ano do Fundamental. Foi “apenas uma breve menção porque nos EUA não se fala, não se estuda e não se assume o tema da escravidão dos negros”, diz. Sim, em meados do século XIX existiu uma rede de brancos que ajudava escravos foragidos a passar a terras de Estados livres do Norte. A rede era conhecida como a ferrovia subterrânea. “Quando criança achei que essa metáfora era real”. Mas mesmo ao se tornar adulto Whitehead (Nova York, 1969), já escritor, continuou acreditando e imaginado, pensando sobre isso desde 2000: “Não tinha a história e os personagens, mas tinha a estrutura: um trem subterrâneo real que os transportava e onde cada estação era no fundo uma parte da história americana”. Durante 15 anos foi acumulando ideias e informação, “mas não acreditava estar preparado tecnicamente como escritor para abordá-lo”, afirma. Quando o fez, em seis meses nasceu The Underground Railroad - Os Caminhos Para a Liberdade, lançado pelo braço brasileiro da editora americana Harper Collins, que obteve seis prêmios literários, entre eles três dos mais prestigiosos dos EUA: o Pulitzer, o National Book Award e o Indies Choice das livrarias independentes.

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O trem de Whitehead, autor de romances como Zone One (sem tradução ao português), descendente de escravos e que participa da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no dia 28, às 17h30, vem carregado: estão, com detalhes documentais brutais, dos preços que custavam os escravos a seus rituais, crenças e danças, e os sentimentos e a crueldade sem fim dos brancos, que cortavam genitais, os colocavam na boca da vítima e assavam os fugitivos caçados; mas também aflora a impiedade dos próprios negros, com guetos e párias entre eles nas plantações e a participação de libertos como caçadores de seus irmãos de raça que fugiam das plantações do Sul... Tudo é visto a partir de Cora, que escapará da Geórgia, mulher mais forte do que qualquer um dos homens que passam pelas quase 400 páginas do livro. Mais até do que Ridgeway, o implacável caçador de recompensas que a persegue.

A ideia inicial era que o protagonista fosse um homem que procurasse sua mulher que havia sido vendida ou um pai procurando seu filho, mas a leitura de Incidents in the Life of a Slave Girl (também sem tradução), autobiografia de Harriet Ann Jacobs, jovem mãe e escrava fugitiva, publicada em 1861, mudou tudo. “No livro ela conta os detalhes de como em uma plantação ao passar de menina à mulher tudo se complica ainda mais: você se transforma também em escrava sexual do amo e precisará ter filhos porque isso significa mais braços para o trabalho e mais dinheiro para o fazendeiro... O das mulheres era um inferno diferente do dos homens, ainda pior, e quis explorá-lo”.

Cora descobre em uma das estações, na Carolina do Sul, um programa de esterilização de negros, testado a partir da difusão da sífilis entre eles sem que sejam tratados. Existe até um particular Josef Mengele, com a aquiescência de muitos brancos supostamente abolicionistas. “Cada parada me permite abordar a história de diversos períodos históricos dos EUA e sim, existiu um programa de esterilização, mas foi no final do XIX e destinado a imigrantes pobres e doentes para que o Estado não tivesse mais gastos sociais; em 1940, também se testou com negros doentes de sífilis; no romance, não me prendo aos fatos e sim à verdade, que é diferente”, afirma Whitehead, que no jogo tácito de espelhos que faz com o genocídio nazista lembra que “a Alemanha de Hitler se inspirou em cientistas norte-americanos”.

De tão inverossímil pelas crueldades da época, The Underground Railroad: Os Caminhos Para a Liberdade destila realismo mágico, mas Whitehead prefere falar de Thomas Pynchon (“básico por sua crítica social”), a Odisseia (“me deu a estrutura alegórica por episódios”), Toni Morrison (“a atmosfera do fator humano da escravidão”) e “toda a cultua pop e, principalmente, a ficção científica, leituras que compartilho com pessoas de minha geração como Junot Díaz e Jonathan Lethem e que explicam minha tendência a abordar a cidade, a raça, a cultura popular e o humor”.

Também ajuda à atmosfera irreal a inclusão de pequenos textos que lembram os avisos de “Procura-se” e que estão no início dos capítulos do livro. “São textos reais, anúncios e cartazes de oito linhas, mas que dizem muito da vida dos escravos: ‘Procura-se Lizzie, que fugiu sem motivos’. E você se pergunta, é sério? E que ao descrevê-la afirmam que tem ‘uma cicatriz no braço direito’ e ‘na cara’ e você se pergunta, como isso aconteceu?... Esses cartazes mostram que existiam caçadores de escravos, mas também ferreiros, carpinteiros e jornalistas que sustentavam o sistema”.

Mas o ar mais tristemente fantástico do livro vem da função de Cora em um museu de história da jovem nação onde trabalha como figurante, lembrando a série de televisão Westworld: “Talvez porque na série esses robôs também são escravos, realizam trabalhos forçados e as meninas são brinquedos sexuais”, diz. No museu, Cora, atrás da vitrine, decide assustar os visitantes, porque em toda corrente há um elo frágil: “Tento enviar a mensagem de que você pode acabar convencendo as pessoas nem que seja de um em um, somando para mudar as coisas”.

Também atrás dessa vitrine, a protagonista reflete sobre sua situação, dizendo “corpos roubados trabalhando em terra roubada”, que pode funcionar como ácido resumo da história dos EUA. “Muita gente acredita que o pecado capital está na escravidão, quando está no genocídio indígena e no roubo de suas terras; existem muitas histórias da História dos EUA que não são contadas”. Por isso Whitehead acredita que seu país ainda não assimilou seu passado de negritude. “A escravidão quase não é abordada na escola; dedicam-se 10 minutos à escravidão e aos direitos civis e 40 a Lincoln e Martin Luther King: o sistema centra-se em quem resolveu o problema, em quem sanou a situação, e não em analisar o problema em si e o que resta dele”. Porque a ferida, afirma, não está totalmente cicatrizada: “Acabamos de eleger um presidente que ainda acredita na supremacia branca, fanáticos de ultradireita, pessoas que maltratam mulheres... Os EUA ainda não assumiram o episódio da escravidão”.

Abordando prisões arbitrárias, obrigações e restrições de direitos relacionadas à escravidão, The Underground Railroad: Os Caminhos Para a Liberdade não deixa de descrever angústias do século XIX que podem ser aplicadas ao incipiente século XXI. “A verdade era uma vitrine viva em uma loja”, se reflete em um livro que, entretanto, ganhou três prêmios de grande importância. “São tempos de pós-verdade, dessa vitrine viva..., mas é difícil sair dessa espiral porque tudo bem, tenho três prêmios, mas a ficção tem o caminho que tem nos EUA e não acho que meu livro irá fazer com que os que assistem notícias na Fox e muitos eleitores de Trump façam um exame de consciência e digam: ‘Sim, como meu ponto de vista era errado...”. Mas sempre resta a teoria de Cora: toda corrente tem um elo frágil.

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