Teju Cole: “Se você é negro, o momento atual dos EUA não te surpreende. É familiar”
Escritor e fotógrafo norte-americano diz que espaço intelectual se simplifica sob Trump. “O projeto americano é fundamentalmente brutal. Nunca pretendeu proteger todo mundo"
Na última vez que visitou São Paulo, o escritor e fotógrafo Teju Cole perdeu o interesse em capturar a realidade. Foi em 2015, quando estava obcecado com uma foto que o sueco René Burri havia feito do alto de um arranha-céu paulistano em 1960: quatro homens engravatados no terraço, diante de uma avenida repleta de carros diminutos e emoldurados pelos trilhos do bondinho. Cole passou cinco dias no alto de todos os arranha-céus que pôde, numa cidade onde praticamente não há outra coisa, empenhado, como o capitão Ahab, em encontrar o ângulo exato da imagem e desvendar o que tanto o fascinava. “Quando algo me emociona, preciso me colocar em seu lugar”, justificou na época. Só encontrou o lugar – o Banespa – um dia antes de voltar para casa: era um dos terraços pelos quais já havia passado, mas o havia visto através de uma lente errada. Só isso. Passar pelo lugar real não o havia ensinado nada. O edifício não tinha mudado, mas era um mundo; e a imagem, outro. “Tudo é uma exploração da impossibilidade de capturar a realidade”, explica agora, com sua característica aridez, sentado numa animada sacada do bairro da Consolação, na capital paulista, onde discorre na companhia de um café. “Você tem que testemunhar uma realidade, mas, se quiser capturá-la, só pode cair em lugares-comuns."
Hoje, 10 anos depois de publicar seu primeiro romance, Cole pode ser chamado de “referente intelectual norte-americano”. Ele discordará, claro, mas não pelo termo “intelectual”, como se poderia supor, e sim pela última palavra. “Nos Estados Unidos, o espaço intelectual está se contraindo. Você encontra muito ruído e pouco pensamento útil. Parece que tudo o que é preciso é ser contra Trump, e isso não exige muito esforço intelectual. Até os monstros estão contra Trump”, lamenta. “Esforço intelectual seria se perguntar não como chegamos até aqui, mas há quanto tempo já estávamos aqui.”
Em teoria, a resposta é fácil: há 42 anos Cole gira pelo mundo, tendo passado 17 deles na Nigéria com seus pais antes de voltar ao país natal. No momento da entrevista, estava há dois dias em São Paulo, preparando uma palestra sobre fotografia. Ministra essas conferências em universidades do mundo inteiro desde que seus dois romances, sobretudo o segundo, o aclamado Cidade Aberta (Companhia das Letras, 2012), lhe conferiram autoridade, prestígio e uma coluna semanal sobre fotografia na revista do The New York Times. Mas tudo isso é em teoria. Cole, um homem negro nos EUA, expressa o que muitos brancos só descobriram com a vitória de Donald Trump: que algumas das pulsações que mais movem o país são as que estão mais ocultas. “Mais do que me surpreender, o momento atual me parece familiar”, diz. “O projeto americano é fundamentalmente brutal. Nunca pretendeu proteger todo mundo, embora isso é o que esteja escrito numa linguagem preciosa, pois depende muito de uma classe oprimida, que obviamente foram os negros, ainda que também houve outros. Veja, Obama não cumpriu muitas de suas promessas, mas pelo menos nos abrimos ao fato de que pudesse haver mudanças pequenas. Nos permitimos a possibilidade de ter esperança. Agora vem esse sujeito, e só nos resta recordar que ele não vai durar, que morrerá um dia."
Para retratar Cole, no entanto, não basta lhe perguntar sobre suas não poucas preocupações (“A mudança climática, o custo dos medicamentos... e por que colocamos tanta gente na prisão?”, dispara). Com o físico magro e a expressão severa, reservada não se sabe se por predisposição filosófica ou por ser uma celebridade cultural, seu semblante se ilumina apenas quando fala de coisas como a importância dos detalhes e o caráter ilusório da realidade. De imagens. Quando lhe perguntamos sobre sua forma de escrever, centrada nas minúcias, por exemplo, ele responde: “Ao ver uma imagem, tendemos a buscar o que ela tem em comum com o que conhecemos.” Aponta para o edifício à sua frente: “Em Nova York também temos cafés, portões e interfones. Mas aqui logo vemos que os edifícios têm nome, e que esse nome é mais importante na fachada que o número da rua. É preciso se esmerar nos detalhes porque isso muda tudo.”
Quando escrevia literatura, Cole era famoso por seus tuítes; em 2014, abandonou o Twitter e migrou para o Instagram. Agora, é famoso por suas fotos e acaba de lançar um livro com elas, Blind Spot. De fato, é um dos fotógrafos mais famosos da década, tão especializado em naturezas mortas assépticas que foi chamado de herdeiro de Stephen Shore, o retratista oficial da banalidade norte-americana desde os anos setenta. Ele também tende a mostrar o que, na aparência, não é nada: prateleiras, fachadas e paredes, sobretudo – e deixar que o espectador lhe dê sentido. “Me atrai o detalhe psicológico, a existência de ambiguidade e incerteza. Se você faz uma foto de alguém que ri, é simples: é uma foto feliz, o que acaba entediando muito rápido. Mas se faz uma foto de alguém de costas, estará feliz, triste, com raiva ou melancólico?”, explica. “Me interessa deixar essa margem. Deixar que qualquer coisa entre no espaço da foto. Fazemos uma foto dessa parede, que aparentemente não é nada, e deixamos que as coisas aconteçam. Talvez alguém venha e te conte a história do bairro da Consolação. Talvez alguém perceba que os garçons têm pele mais escura que a dos clientes. Talvez te contem sobre como era o bairro antes da vinda dos apartamentos caros. Isso não está na foto, apenas abri essa possibilidade.”
E isso o remete à sua obsessão atual: como um fotógrafo se entedia com a realidade, assim como os filósofos com Deus. “Você se propõe a ir ao Brasil e tirar fotos dos índios, de pessoas dançando no Rio, do Cristo Redentor, da Avenida Paulista. Isso é o Brasil, mas ao mesmo tempo não é. Porque isso não está, e isso também é Brasil, embora, ao mesmo tempo, por si só, não é nada. Você se convence de que capturou a realidade, mas é só um clichê. Está se apoiando em gestos preestabelecidos. Tem que abandonar a ideia de que pode plasmar a realidade; assim, você se libera para fazer um trabalho mais autêntico e buscar outras formas de tensão.”
E, assim, volta a estar no alto do edifício Banespa, no centro de São Paulo, no lugar indicado, com a lente errada, para buscar uma realidade que existia apenas parcialmente, e o pouco que existia não resolve nada. “A pressão na vida, em qualquer momento, se você é artista, é a mesma. Você deve testemunhar. Não sou dessas pessoas que só são fotógrafas quando levam um tripé consigo. No Banespa, usei a lente errada. Mas qual é a melhor câmera para fazer uma foto de desconhecidos em São Paulo? Bem. A que tenho é esta. De modo que é a melhor.”
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