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Anúncios de “escravos fugidos” revelam face desconhecida da resistência negra na Inglaterra

Pesquisadores britânicos reconstroem a vida dos escravos no século XVIII a partir de centenas de anúncios de jornais que relatavam suas fugas

Sir Hector Munro, pintado por David Martin (1785), exposto na National Gallery de Londres.
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Não se sabe se ele se arrependeu, mas o general sir Hector Munro parece que estava disposto a lhe dar uma segunda oportunidade. “No caso de o escravo decidir voltar ao serviço de seu amo por vontade própria, sua ofensa será perdoada.” Com este gesto de suposta benevolência terminava o anúncio que o parlamentar escocês publicou em 22 de junho de 1771 no jornal Caledonian Mercury para avisar que uma pessoa de sua propriedade, rebatizada como César, “de 25 ou 26 anos, pouco mais de 1,5 metro de estatura, com cabelos pretos compridos”, havia escapado. A nota, que aparentemente passou despercebida pelos anos, foi recuperada por um grupo de pesquisadores da Universidade de Glasgow junto com mais de 800 anúncios similares, como parte de um projeto que busca reconstituir a vida dos escravos na era do Império Britânico, oculta em uma sombra da história por falta de documentação.

“Durante muitos anos os historiadores sugeriram que foram os brancos que aboliram a escravidão. Por sorte, agora também reconhecemos o papel dos escravizados que, por si mesmos, encontraram formas de lutar”, afirma Simon Newman, especialista no tráfico de escravos na idade moderna e responsável pela iniciativa. Para este pesquisador, a criação de uma base de dados online com centenas de histórias de escravos que desafiaram o sistema vigente é uma forma de tornar visível e dignificar outros protagonistas que foram deixados fora do relato oficial dos acontecimentos. “Com exceção de episódios de rebelião, fugir foi a maneira mais significativa de resistência à subjugação.”

Embora não haja registros oficiais e seja difícil apresentar dados exatos, Newman calcula que na Londres do século XVIII havia cerca de 10.000 pessoas, a maioria de origem africana e algumas poucas vindas da Ásia, submetidas a um amo. Muitas chegaram ao solo britânico procedentes das colônias do império para servir em famílias abastadas com vínculos empresariais com os territórios de ultramar. Trabalhavam como marinheiros ou empregados do serviço doméstico e sua perda constituía para os proprietários, além de uma redução no patrimônio, uma afronta pessoal, já que a prática de tê-los poupado do sofrimento do trabalho nas plantações era considerada um presente.

Por isso, a prática de colocar anúncios na imprensa era algo normal, como demonstra o fato de que o caso de César apareceu ao lado de propagandas de venda de óculos na loja de Mr. Moffat e da confortável estadia em uma escola chamada Corstorphine. No Brasil, não foi diferente. Gilberto Freyre foi um dos primeiros a apontar a importância dos anúncios de escravos em jornais brasileiros do século XIX. No livro "O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX", Freye destaca as relações entre escravizados e "senhores" em uma pesquisa com cerca de dez mil anúncios.

Até a aprovação no Parlamento britânico do Ato do Comércio de Escravos em 1807, que sentou as bases legais para acabar com o tráfico de pessoas no Atlântico, era comum também ver nos jornais propaganda de compra e venda de homens, mulheres e crianças. “Com frequência, os anúncios são a única prova que temos de sua existência. Da maioria não sabemos se a fuga foi bem-sucedida”, comenta o pesquisador. Em um exercício de ficção histórica, Newman se aventura a prognosticar que aqueles que conseguiram alcançar a liberdade possivelmente inventaram um novo nome e buscaram refúgio se alistando no Exército, empregados como marinheiros, iniciando uma carreira eclesiástica e até tentando se integrar como trabalhadores livres e com um salário a serviço de outro burguês ou aristocrata endinheirado.

Na época se tornou célebre a figura de Olaudah Equiano, um escritor e ativista abolicionista africano que comprou sua liberdade depois de ter sido vendido aos 11 anos como escravo nas antigas colônias europeias nos Estados Unidos. A narrativa de sua resistência em uma autobiografia publicada em 1789 – no mesmo ano da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – constitui um dos escassos testemunhos em primeira pessoa da experiência de um escravo liberto no século XVIII. Para Newman, a vida de Equiano e o destino em suspense de tantos escravos fugidos são uma prova de que as circunstâncias adversas não são um empecilho para se mudar o curso da história.

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