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Referendo independentista da Catalunha: uma situação inédita na União Europeia

A Europa já sofreu todo tipo de tensão separatista, mas nunca um referendo unilateral num Estado democrático

Guillermo Altares
Manifestação independentista catalã, em Barcelona.
Manifestação independentista catalã, em Barcelona.ALBERT GEA (REUTERS)

A União Europeia se considerou, desde seu nascimento, o remédio mais eficaz contra os nacionalismos que haviam envenenado o continente durante a primeira metade do século XX. De fato, a rapidez – alguns empregariam a palavra precipitação – com que se expandiu para os países do Leste não ocultava a vontade de aplicar o mesmo bálsamo aos Estados que tinham recuperado a liberdade depois da queda do Muro de Berlim. Em parte funcionou: mesmo que algumas fronteiras tivessem se entrincheirado em velhos rancores nacionais que pareciam indeléveis, não ocorreu nada nem remotamente similar à violenta eclosão da antiga Iugoslávia dos anos noventa.

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Entretanto, dentro dos próprios países membros, os movimentos separatistas ressurgem de forma periódica, com maior ou menor virulência, embora nenhum Estado da UE tenha passado por algo semelhante ao desafio independentista que a Espanha enfrenta. Já foram realizados, dentro das fronteiras europeias, referendos para determinar a saída de um território da UE, mas sem abandonar o país ao qual pertence (caso da Groenlândia em relação à Dinamarca) e, em 2014, um referendo de independência na Escócia, em comum acordo com Londres, que resultou na derrota dos separatistas. A Espanha, um Estado da UE, está diante de um referendo pirata, unilateral e não reconhecido por nenhum outro país.

“Nunca em nenhum outro país europeu aconteceu nada similar ao que está acontecendo na Catalunha, é algo inédito”, diz Álvaro Gil Robles, ex-defensor do Povo da Espanha e o primeiro comissário de Direitos Humanos do Conselho da Europa. “Nenhuma região, nem na Itália, nem na França, nem tampouco a Escócia, agiu assim contra a ordem constitucional democrática”, prossegue esse especialista em direitos humanos, atualmente presidente da Fundação Valsaín.

Na quarta-feira passada, a polícia espanhola deflagrou uma operação para barrar o plebiscito independentista que o Governo regional catalão planeja para o próximo 1 de outubro. Os policiais chegavam com mandados de busca e apreensão em 41 escritórios das Secretarias do Governo que trabalhavam na organização do referendo. Após um dia inteiro percorrendo diferentes locais, a polícia prendeu 14 pessoas, membros do comando para a preparação da consulta, e apreendeu 10 milhões de cédulas de voto.

A Europa sempre foi uma terra de encaixes nacionais difíceis, cheia de povos e fronteiras que raramente coincidiam. Como escreve Tony Judt em seu clássico Pós-Guerra, “o continente foi outrora uma intrincada colcha de línguas, religiões, comunidades e nações entremeadas”. Essa Europa misturada e diversa, simbolizada pelo Império Austro-Húngaro ou por romancistas como Stefan Zweig e Joseph Roth, foi destruída depois das duas Guerras Mundiais, mas se recompôs graças ao enorme poder de atração da UE. Excluindo os países que pertenceram ao bloco comunista, não houve na Europa Ocidental nenhuma mudança significativa nas fronteiras desde os anos cinquenta, quando se resolveu o problema de Trieste, apenas o seu desaparecimento, graças ao Tratado de Schengen, que na prática aboliu os limites entre 26 países.

Entretanto, depois da queda do bloco soviético, as declarações unilaterais de independência se multiplicaram na Europa nos antigos países comunistas. Assim foi em 1991 com as três repúblicas bálticas, Lituânia, Letônia e Estônia, que haviam sido anexadas pela URSS em 1941, e também na antiga Iugoslávia, cuja dissolução levou a quatro guerras (Eslovênia, Croácia, Bósnia e Kosovo), que se prolongaram entre 1991 e 1999. São situações incomparáveis com as das democracias consolidadas: pertenciam a países costurados por ditaduras que acabaram eclodindo quando o comunismo se dissolveu. De novo, a UE se revelou crucial: todos aqueles Estados são hoje parte do clube europeu, ou mantêm negociações para entrar, ou desejariam mantê-las.

O projeto europeu serve, também, para frear possíveis conflitos antes que eles estourem. Os húngaros da Romênia, por exemplo, uma minoria castigada e perseguida sob a ditadura de Ceausescu, longe de reclamarem a independência ou a adesão à Hungria depois da queda do regime, contribuíram de forma decisiva para sustentar a estabilidade política que permitiu o ingresso do país na UE. O mesmo se pode dizer dos turcos da Bulgária, 10% da população, cujo partido se mostrou essencial no processo de adesão.

Declaração unilateral

Depois da ruptura pacífica entre tchecos e eslovacos, em 1993, as últimas filigranas daquela gigantesca alteração de fronteiras acabaram de ser resolvidas na década dos anos 2000. Montenegro, que compunha com a Sérvia o pouco que sobrara da Iugoslávia, obteve sua independência em 2006 graças a um referendo combinado com Belgrado e fiscalizado pela comunidade internacional, que seguiu, além disso, as regras da lei de transparência canadense (a participação deveria superar 50%, e o sim deveria ter pelo menos 55% dos votos emitidos). Com o apoio de uma parte da comunidade internacional, Kosovo, que havia sido uma província da Sérvia, mas nunca uma república iugoslava, declarou unilateralmente a independência em 2008, apoiando-se em um plano esboçado pelo enviado da ONU, Martti Ahtisaari. Até hoje, 110 países reconheceram Kosovo, embora outros, entre eles a Espanha, não deram esse passo, esperando antes esse reconhecimento por parte da própria Sérvia, com a qual as autoridades de Pristina mantêm exaustivas negociações.

A independência unilateral de Kosovo contém um problema adicional: 90% da sua população é albanesa, partidária da independência, enquanto 10% é sérvia e não a aceita, o que criou um país dentro do país, onde a autoridade de Pristina praticamente não existe. Para o analista suíço Matthias Bieri, especialista em nacionalismos europeus do Centro de Estudos da Segurança de Zurique e autor, em 2014, do relatório Separatismo na UE, o único paralelismo possível com a situação catalã é a República Srpska (República Sérvia), uma das duas entidades que formam a Bósnia-Herzegovina. “Trata-se de um contexto muito diferente, já que a Bósnia vive um pós-guerra ainda com uma presença internacional”, observa, “mas o presidente da República Sérvia, Milorad Dodik, reiterou que deseja organizar um referendo de independência em 2018, sem o acordo das autoridades nacionais nem internacionais.” “Existem outros movimentos nacionalistas que querem organizar referendos, como o Süd-Tiroler Freiheit, no Tirol do Sul”, acrescenta Bieri. Esse partido político deseja unir a província italiana de Bolzano ao Tirol austríaco, mas até agora teve pouquíssimo sucesso: nas últimas eleições regionais, conseguiu 7% dos votos.

Egoísmo econômico

Por trás da maioria dos separatismos europeus se oculta um egoísmo econômico: costumam ser as regiões ricas que desejam romper com o Estado ao qual pertencem, ou aquelas que imaginam uma perspectiva de riqueza (a Escócia e o petróleo do mar do Norte). O analista francês Bernard Guetta assim resumiu recentemente a situação: “É verdade que na Catalunha, como na Escócia, em Flandres e em menor medida na Córsega, mas também no norte da Itália, inventaram para si uma identidade nacional para camuflar o simples desejo de não compartilhar as riquezas com outras regiões. Do egoísmo regional a reafirmação de uma cultura própria, as aspirações independentistas na Europa se nutrem de numerosas causas. O problema é que os Estados europeus se enfraquecem atualmente a um ritmo superior ao que a UE se fortalece, e isso poderia provocar, algum dia, uma espécie de vácuo”.

Dentro da UE, a crise, tanto a econômica como a institucional do projeto europeu, impulsionou os movimentos separatistas, em alguns casos transformados em partidos xenófobos e antieuropeus como a italiana Liga Norte e, em outros, com uma aposta muito forte na identidade, mas sem ter por enquanto nenhum tipo de consulta independentista no horizonte, como ocorre com a Nova Aliança Flamenga na Bélgica. Nos casos escocês e catalão, por outro lado, seu separatismo se nutre da falsa perspectiva de seguir na UE. “Os separatistas catalães estão condenados a ter um discurso de absoluta lealdade ao que significa a UE, porque do contrário perderiam 80% de seus seguidores”, diz Álvaro Gil Robles. “Hoje ninguém está disposto a ficar isolado, e por isso mentem desesperadamente sobre o fato de que uma hipotética Catalunha independente ficaria automaticamente fora.” Depois de todas as vicissitudes da primeira parte do século XX, do desastre a que os nacionalismos levaram a ex-Iugoslávia, a UE ainda é o principal fiador da paz na Europa. Mas a história representa a principal advertência de que, quando alguns gênios saem das suas garrafas, tudo pode ir realmente mal.

GROENLÂNDIA, FORA DA UE, DENTRO DA DINAMARCA

Embora evidentemente seja possível encontrar pontos comuns, os nacionalismos europeus, como as famílias infelizes de Tolstói, o são cada um à sua maneira. E a Groenlândia, o imenso território polar do Atlântico norte, situado muito mais perto do Canadá do que da Dinamarca, à qual pertence, é o mais complexo. Com uma população muito pequena (57.000 residentes, dos quais 50.000 são nativos inuits), é uma colônia dinamarquesa desde 1775, tornou-se uma província do país nórdico em 1953, e em 1979 obteve a autonomia.

Em 1985, seus habitantes votaram por sair da UE, mas continuar dentro da Dinamarca, com o objetivo principal de impedir que as cotas europeias incidissem sobre a sua pesca, um dos principais recursos dessa imensa terra gelada. Em 2008 houve um segundo referendo, de caráter consultivo, para aumentar sua autonomia em relação à Dinamarca. Uma expressiva maioria de 75% votou a favor de mais autogoverno, da mudança do idioma oficial (do dinamarquês para o kalaallisut) e, claro, de um maior controle sobre os recursos petrolíferos. Em questões de defesa e política externa, continua sendo dependente da Dinamarca.

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