Doria planeja reformar e modernizar região da cracolândia: continuarão nela seus moradores?
Prefeitura e Governo de São Paulo querem construir habitações populares no centro da capital. Críticos acreditam que por trás existe a intenção de expulsar moradores pobres
“Mas tu acha mesmo que vão dar alguma coisa pra gente?”, questiona Maria Soares, de 51 anos. Ela acha que em algum momento será obrigada a deixar a pequena casa da Alameda Dino Bueno onde mora com mais nove pessoas, a maioria filhos e netos. Maria reside nessa mesma via do centro de São Paulo, no bairro de Campos Elíseos, há 36 anos, desde que chegou de Mairi, no interior da Bahia. Era lá onde funcionava, até o último dia 21 de maio, o mercado aberto de drogas da Cracolândia. Após uma operação policial que expulsou usuários e traficantes do local, a Prefeitura, dirigida por João Doria (PSDB), também lacrou, quase que imediatamente, uma série de imóveis residenciais e comerciais que ali funcionavam — de forma irregular, segundo o Executivo municipal. Ao mesmo tempo anunciou a construção, em parceria com o governo estadual de Geraldo Alckmin (PSDB) e a iniciativa privada, de prédios residenciais que poderão ser financiados e comprados por pessoas de baixa e média renda.
Maria Soares é exatamente o tipo de moradora que estaria impossibilitada de comprar uma nova residência. Ela já chegou a ter três bares em Campos Elíseos, com os quais sustentava seus oito filhos: "Eu pari sete, quatro homens e três mulheres. O outro menino é meu filho de criação. Conseguia sustentar todos, dar dinheiro para eles comerem uma pizza no fim de semana, e ainda sobrava 1.000 reais só pra mim", recorda. Nos últimos tempos, vendia comida na porta de sua casa para os frequentadores da Cracolândia. Conseguia pagar todas as suas contas. Mas desde que eles se moveram de lá — agora estão em uma rua paralela, na Alameda Cleveland —, diz ter dificuldades de continuar com seu negócio. O aluguel de 1.200 reais de sua casa de três quartos está atrasado, assim como as contas de luz e gás. "Tá todo mundo no sufoco. Se estivéssemos trabalhando como antes, estava ótimo", afirma.
As últimas intervenções na Cracolândia, que fica no bairro central de Campos Elíseos, resultaram em uma série de especulações sobre quais interesses estariam escondidos. A principal aposta de associações, movimentos populares e vizinhos é o interesse da “especulação imobiliária” pelo local, encarnada pela seguradora Porto Seguro, que tem sede no bairro e vários empreendimentos. Além disso, o fato de Doria ter rebatizado a região como Nova Luz levantou a suspeita de que seria resgatado um ambicioso e polêmico plano da era do prefeito Gilberto Kassab de remodelagem do centro antigo da cidade. Entretanto, o que sim existe até o momento, segundo as secretarias municipais de Habitação e Urbanismo, são planos de "revitalizar" o bairro através da construção de edifícios residenciais voltados para a população de baixa e média renda. No que diz respeito às duas quadras onde funcionava, até o último dia 21 de maio, o chamado “fluxo” da Cracolândia (veja em amarelo na foto abaixo), a ideia é desapropriar os imóveis, que estão em Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), para erguer habitações sociais e instalar serviços públicos nos edifícios que estão tombados. Mas nessa mesma área vivem 525 pessoas e 275 famílias, segundo a secretaria de Habitação. A grande maioria é mais pobre e aluga quartos em cortiços e pensões. Os projetos respeitarão e melhorarão a vida dessas pessoas? A secretaria de Habitação garante que sim, mas críticos à proposta dizem que não.
Isso porque o principal instrumento para a construção de moradias populares será a Parceira Público-Privada (PPP) da Habitação assinada pelo Governo do Estado e a construtora Canopus Holding em março de 2015. A Prefeitura, na época comanda por Fernando Haddad (PT), se comprometeu a ceder terrenos próprios ou desapropriados em troca de contrapartidas como construir equipamentos públicos (creches, postos de saúde, etc) no entorno e melhorá-lo. O acordo prevê a construção de um total de 3.683 moradias no centro de São Paulo: 2.260 de Habitação de Interesse Social (HIS), financiadas por bancos e subsidiadas pelo Governo do Estado a famílias com renda mensal de até 4.344 reais; e outras 1.423 de Habitação de Mercado Popular (HMP), para famílias com renda mensal de até 8.100 reais.
Um dos projetos em andamento é o do Complexo Júlio Prestes, que vem sendo construído desde janeiro a poucos metros da antiga Cracolândia em um enorme terreno onde ficava a antiga rodoviária e, posteriormente, o shopping Luz (veja em vermelho na foto acima). O terreno pertence ao Governo do Estado, que prevê a construção de 1.202 apartamentos (1.130 de HIS) em quatro edifícios de 17 andares, uma creche, a nova sede da Escola de Música Tom Jobim, comércios — o Plano Diretor determina que os edifícios tenham fachada ativa — e um boulevard que dará continuidade a rua Santa Ifigênia. Do total de moradias sociais construídas, 80% serão destinadas para pessoas que trabalham no centro mas moram longe, com o objetivo de aproximar as pessoas de seus respectivos trabalhos. Os outros 20% poderão ser comprados após um sorteio entre os interessados que moram e trabalham na região central. Em todos os casos, é necessário comprovar renda e vínculo empregatício. Além disso, as HIS da PPP são destinadas a famílias com renda mensal entre 1 e 4 salários mínimos e que podem conseguir crédito junto a Caixa Econômica Federal, excluindo aquelas que possuem renda zero e que o Plano Diretor da cidade abarca.
A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik acredita que a PPP não tem como objetivo produzir moradia digna para os que, como Maria, vivem na região. "A população que está ali é mais precária e com menos vínculos empregatícios e muitas vezes sem ter como provar que trabalha no centro. E esses 20% poderão ser adquiridos após um sorteio, ou seja, não será destinada para aquelas pessoas removidas de imóveis demolidos”, explica. O problema, argumenta a professora da USP, não é “trazer pessoas de fora para morar no bairro”, mas sim que “muitos estão lá morando precariamente”. É “fundamental”, diz ela, priorizar essas famílias “As condições de encortiçamento precisam de uma intervenção. Mas aí você remove essas famílias, coloca elas no meio da rua e não dá nenhuma alternativa? Para construir apartamentos para quem mora fora do centro? Não tem sentido. Estão criando um problema de moradia, porque pessoas que tinham uma casa e passam a não ter”.
Em entrevista ao EL PAÍS, Fernando Chucre, secretário de Habitação da gestão Doria, rebate esta ideia ao defender que se faça um novo edital para os terrenos nos quarteirões da antiga Cracolândia que a Prefeitura pretende ceder à PPP. “Assim, determinado número de unidades habitacionais seriam devolvidas ao Município como contrapartida. Isso garantiria que atendêssemos a demanda específica das pessoas que moram lá”, explica o secretário, que também assegura que sua secretaria cadastrou todas os residentes da área. “Estamos tomando todos cuidados para garantir os direitos das famílias que moram ali. Estamos muito seguros com relação a isso”. O dispositivo para assegurar a demanda delas, explica, “ainda não está fechado, mas a discussão está encaminhada” para que assim seja feito. “A nossa segunda opção, se não tivermos a garantia de que vamos atender essas pessoas, é não aportar o terreno para a PPP. Aí teríamos que buscar um outro financiamento para um empreendimento próprio da Prefeitura”, conclui.
A concepção do projeto para a área ainda está em andamento. A Prefeitura tem a intenção de instalar uma escola e um posto de saúde, mas não se sabe, por exemplo, o número de apartamentos que seriam construidos e para quem seriam ofertados. Qualquer proposta apresentada precisará, tendo em vista que se trata de uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), ser antes debatida e aprovada por um Conselho Gestor. Este deverá ser formado por 10 membros do poder público e 10 da sociedade civil — entidades que atuam na região e no mínimo três moradores das duas quadras onde será feita a intervenção. Críticos acreditam que o Executivo municipal, ao querer incluir apenas os moradores dos dois quarteirões, "manobra a legislação" para agilizar o processo, uma vez que o Plano Diretor determina que toda a área de ZEIS deve estar representada. Já a Prefeitura assegura estar seguindo a legislação e justifica que a inclusão apenas desses moradores se dá porque eles serão os mais afetados pelas intervenções. Seja como for, a votação e formação desse conselho está agendada para esta segunda-feira, 24 de julho.
O vereador Nabil Bonduki (PT), arquiteto e urbanista que coordenou o programa de desenvolvimento urbano de Haddad e foi relator do Plano Diretor na Câmara, vê como positivo a construção de habitações sociais no centro, mas faz uma série de ponderações: diz que é preciso estar atento a se o Plano Diretor será respeitado, se os projetos de fato atenderão as demandas locais, se a qualidade dos empreendimentos será boa e se a gestão dos edifícios não cairá nas mãos do crime organizado. "Não acho a PPP problemática. É um avanço sair de um plano para construir uma escola de dança, que não dialogava com o entorno, e pensar a produção de habitação", explica Bonduki, que nos últimos anos da gestão Haddad foi secretário de Cultura. "Também não acho que tenhamos que produzir só HIS na região. É prioritário, mas é importante que se tenha também habitação para rendas de até 6 ou 10 salários mínimos. É uma demanda que existe, é uma população que também está sendo excluída das regiões privilegiadas da cidade. O problema é como equilibrar isso com a construção de HIS e com o atendimento da população que mora lá".
Nilson Messias, de 38 anos, vem participando das reuniões e poderá fazer parte do Conselho Gestor, já que mora em um quarto de pensão há cinco anos e administra outros 46 em um dos imóveis da Alameda Dino Bueno. Um deles começou a ser demolido com pessoas dentro pela Prefeitura dois dias depois da operação do dia 21 de maio. Ele opina que a saída do mercado aberto de drogas da rua deixou o clima mais tranquilo, mas reclama que a ação policial foi muito bruta, “como se tudo fosse Cracolândia”, desconsiderando os comerciantes e moradores na zona. “Muita gente ficou sem emprego e muito fornecedor ficou sem cliente”, conta. Ele cobra mensalidades de 600 reais ou diárias de 25 para pessoas e famílias que queiram ocupar um dos quartos da pensão, que fica nos fundos do que antigamente era um estacionamento. “Nada aqui é invadido. O imóvel tem proprietário, pagamos os impostos, as contas de água e de luz”, argumenta ele, que também conta que a Prefeitura "vem trabalhando melhor" nos últimos tempos. “Se eles garantem moradia para quem é do bairro, ótimo. Mas que as pessoas que moram aqui sejam prioridade. Aqui é conhecido como Cracolândia, mas antes é Campos Elíseos, com vizinhos, comércios, escolas…”.
Breve história de Campos Elíseos
A histórica fachada do imóvel onde Nilson vive e trabalha remete a uma época na qual Campos Elíseos era um bairro de altíssima renda, o primeiro no centro a abrigar, no século XIX, a burguesia do café e seus luxuosos palacetes. Essa população foi crescendo e se movendo em direção a bairros como Higienópolis, Bela Vista e Jardins — que ao longo do tempo se reinventaram e se verticalizaram — ao mesmo tempo que abandonava Campos Elíseos. Rolnik, urbanista da USP, explica que esse abandono por parte das elites se deu por vários motivos, entre eles a saída da sede do governo estadual da região, a instalação de uma rodoviária na década 60 e a construção do Minhocão. A saída da classe alta também resultou na retirada de serviços públicos básicos — coleta de lixo, iluminação, asfaltamento, entre outros —, o que degradou o bairro ao longo do tempo. Permaneceram os palacetes e áreas inteiras tombadas, além de uma série de propriedades com problemas de herança e imbróglios na Justiça. Isso inviabilizou os investimentos privados que hoje tanto dependem do poder público para realizar desapropriações e demolições.
Também permaneceu uma população de baixa renda que, como Nilson, transformou enormes palacetes em pensões e cortiços. Hoje existe, entretanto, um crescente interesse do setor imobiliário pela região, que pode ser visto em novas torres residenciais que avançam da Barra Funda e de Santa Cecília em direção a Campos Elíseos. O mercado, aposta Rolnik, “tem o objetivo de abrir uma nova frente de expansão” no centro de São Paulo.
Heloisa Proença, secretária municipal de Urbanismo e Licenciamento, admite que o mercado de fato caminha em direção a Campos Elíseos. “A ideia é capturar um pouco dessa vontade do setor privado, que já está no local, e trazer essa força para ajudar na requalificação da região”, explica. Ao contrário do projeto Nova Luz, que até 2012 previa “mudar o perfil” do bairro de Santa Ifigênia (vizinho a Campos Elíseos) e transformá-lo em um novo polo financeiro e imobiliário, Proença garante que a “âncora” dos novos planos é “social”. A curto prazo, a frente urbanística do programa Redenção, da Prefeitura, prevê ocupar espaços e instalar imediatamente equipamentos públicos provisórios. A médio prazo, construir conexões urbanas, escolas, postos de saúde e as já mencionadas habitações populares. Outra ação prevista é o Projeto de Intervenção Urbana (PIU) do terminal de ônibus Princesa Isabel, também na região da Cracolândia, que concederá a gestão da estação a um ente privado. Este, em contrapartida, deverá realizar intervenções urbanas demandadas pela Prefeitura em um raio de 600 metros com o objetivo de melhorar o lugar. “Queremos devolver aquele espaço, ocupado pelo tráfico e pelo crime, para a população que mora e transita por ali”, assegura Proença.
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