A droga para aplacar a dor
A notícia de que o irmão de Suzana Richthofen foi internado após uso de drogas remete ao que acontece todos os dias na cracolândia
A notícia que Andreas Richthofen teria sido encontrado na cracolândia em estado de surto por aparente abuso de substâncias ilícitas chocou e comoveu as redes sociais nesta terça-feira. Andreas tornou-se involuntariamente famoso em todo o país pela história macabra que envolveu a sua família. Sua irmã, Suzane, planejou o assassinato dos pais em 2002, executado pelo então namorado e seu cunhado. Curiosamente, o caso de Andreas despertou solidariedade em vez do repúdio que parte da população de São Paulo sente pelos usuários de crack. Seu caso evidencia o óbvio: por trás de cada um dos dependentes químicos, dispersados pela cidade após a operação policial do dia 21 de maio, existe uma história pessoal de perda, dor ou sofrimento desconhecidos. No caso de Andreas, hoje com 29 anos, muitos entenderam que seu trauma poderia estar sendo mascarado com o uso de drogas.
Andreas, na verdade, não foi localizado na cracolândia. Segundo informações dos jornais desta quarta, ele foi encontrado dormindo numa residência que invadiu na zona sul. Roupas rasgadas e higiene precária, olhos vidrados, conforme o boletim médico, segundo o portal G1. Era fácil relacioná-lo com a população que vive no centro de São Paulo, que voltou aos holofotes nas últimas duas semanas. “O uso da droga está muito relacionado à perda de vínculos, sobretudo familiares. Quando a pessoa usa, ela acaba se isolando”, diz uma assistente social que atua na cracolândia, que prefere não ser identificada. “São dramas muito pessoais, mas, em geral, a pessoa usa a droga porque não suporta a realidade dela”, afirma.
Claudinei da Silva, de 37 anos, começou a usar drogas depois que sua esposa o deixou e desapareceu com a filha. Ficou deprimido e começou a tomar cerveja. Logo passou para a maconha. E depois para a cocaína. Até que colocaram um cachimbo de crack em sua boca. Pelos sete anos seguintes, a droga foi sua companheira. "Comecei então a olhar para os que usavam e vi que estava muito errado. Foi aí que decidi parar", conta ele, que buscou o programa Recomeço, do governo do Estado. Chegou a ficar internado por 15 dias. Ao sair, teve uma recaída, mas depois disso parou de vez. Não usa crack há oito meses.
Mesmo com o vício, Claudinei continuou a trabalhar como garçom. Mas está desempregado há mais de um ano. "Eu ainda fumo maconha. Não estava fumando não, mas com toda essa tensão de não ter trabalho..." Ele conta que ainda frequenta a cracolândia porque, afinal, está na rua o dia todo. Dorme em um albergue da Prefeitura e durante o dia não tem para onde ir. Prefere então ficar com seus amigos de sempre, na praça Princesa Isabel – onde a cracolândia segue tão viva quanto antes –, ainda que para isso tenha que resistir à tentação de voltar ao crack. "Estou buscando trabalho, mas tem todo o preconceito com quem não tem moradia e tal. Às vezes dá vontade de jogar tudo para o ar". Ele agora tenta retirar de novo seus documentos, perdidos durante a operação policial na cracolândia, para se inscrever em um novo programa da prefeitura de Doria, batizado de Trabalho Novo, que oferece uma ocupação profissional para os moradores em situação de rua. "Eu estava dormindo na barraca, mas a polícia chegou chutando. Não deixaram nem a gente pegar nossos documentos. Eles não podiam ter chegado assim não...".
Quem vai para a cracolândia geralmente tem poucos recursos financeiros. “A pobreza está relacionada, é um dos grandes fatores para que alguém acabe aqui”, diz a assistente social. Para ela, a empatia com a dor dos usuários é fundamental para ajudá-los na cura. “A gente não tem muito a oferecer não. Mas o toque, o abraço, o calor humano é muito importante para eles", diz, enquanto seus olhos se enchem de lágrimas. "Se você tem 1.000 pessoas e 100 se salvam, é um avanço. Mas você nunca vai conseguir acabar com 100% do número de pessoas dependentes. A política pública tem que estar presente não para impor algo, mas para que a pessoa tenha para onde ir, ser acolhida, quando decidir parar. Não adianta internar 20 vezes, porque aí quando ela quiser realmente largar o vício, já não vai acreditar nos médicos”, opina.
Andreas Richtofen é doutor em Química pela Universidade de São Paulo e nasceu de uma família abastada. Já Ana da Silva, de 34 anos, conta que sempre “viveu na miséria e na prostituição”. Ela largou o crack há três anos, mas teve uma recaída há um ano e meio. Nessa época, já estava grávida do pequeno Celso. "Então parei de vez, porque queria muito esta criança". Agora, ela está grávida de novo e mostra orgulhosa uma barriga de sete meses enquanto empurra um carrinho de bebê. Seu filho Celso corre pela rua com o pai enquanto ela conta que mora em um hotel da Prefeitura, do programa Braços Abertos. Já seu marido, Anderson, que trabalha nos semáforos de trânsito do centro da cidade, vive em um albergue municipal. Durante o dia, estão juntos. Na rua. "É complicado, a gente não quer essa vida pra gente não. Morar em hotel é ruim porque tem muito barulho e muita gente usando drogas. Não quero meus filhos convivendo com isso", lamenta Ana. Além de querer trabalhar, ela diz ter apenas uma ambição na vida: "Quero ter um lugar parar morar. Um lugar meu, que eu saiba que, quando eu morrer, meus filhos vão ter onde ficar".
Superar as fronteiras junto aos usuários e à população da cidade é um desafio. Um verso escrito em um antigo edifício esverdeado de dois andares, na esquina da rua Helvétia com a alameda Dino Bueno, ali na cracolândia, bem poderia resumir este drama a céu aberto: "A vida é um emaranhado de nós". Uma delas é a de Cícero Rodrigues, que vive agora a 400 metros dali, na praça Princesa Isabel. Sem camisa e com alguns arranhões no peito, ele caminha lentamente com uma grande moldura de quadro preta apoiada em seus ombros e segurando duas telas de pintura. Ele é conhecido entre seus amigos e assistentes sociais da Prefeitura como "artista". "Pego muito material no lixo", conta ele, que se vira como pode para pintar, para fazer a sua arte. Magro e com aspecto saudável, mas com o olhar disperso e a fala um pouco confusa, conta que usa crack há 21 anos. "Eu até gostaria de parar. Mas para eu parar, tenho que ter algo que signifique para mim”.
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