Este é meu nome, minha casa é a cracolândia e eis os meus medos
Durante três noites, o EL PAÍS andou pela cracolândia e outras ruas do centro de São Paulo para ouvir as histórias dos dependentes químicos
'Sonhador', 40 anos
— Não coloca meu nome verdadeiro, por favor.
— Qual nome você gostaria?
— Sonhador.
— Por que? Qual é o seu sonho?
— Ser advogado.
Sentado na calçada com um grande cobertor em suas costas, Sonhador chora. Com 40 anos e marcas no rosto que lhe dão uma aparência de 60, conta, com a voz rouca, que ainda não conseguiu superar uma grande mágoa de família. Uma traição dupla que "destruiu" a sua vida. "Peguei meu irmão com minha esposa. Só não o matei por causa da minha mãe".
Natural de Guarulhos, município da região metropolitana de São Paulo, naquela época Sonhador trabalhava em uma grande empresa como servente e office boy. Também escrevia poemas. "Eu trabalhava mas também roubava. Com o meu salário eu caia na gandaia. Com o que roubava, sustentava minha família", conta. Chegou a ficar preso durante sete anos, mas hoje, mesmo com as dificuldades de morar na rua, garante que não faz mal a ninguém.
Sonhador é usuário de crack e vive nos arredores da cracolândia, no centro de São Paulo. Com exceção de sua mãe, perdeu contato com o resto da família. "Meu tio era PM. Disse que era para eu morrer longe de casa, longe dele". Ele quer recomeçar, quer uma nova oportunidade, mas tem medo. Sempre que pensa em pedir auxílio em uma escola para retomar seus estudos, acha que vai ser discriminado. "É muito difícil quando as pessoas me olham. Parece que estão vendo um monstro. Eu mesmo quando me olho no espelho me pergunto se estou mesmo vivo. Às vezes acho que Deus já tirou minha vida e eu ainda não percebi", explica, entre lágrimas. Ainda assim, diz que nas ruas vive "em paz", sem ninguém "enchendo o saco". "Eu quero voltar para a minha estrada. Mas pegar a estrada é difícil. E não quero chegar até o meio da estrada e depois voltar tudo de novo. Tenho medo", explica. Ainda sonha em ser advogado como sua irmã e sua tia. O desejo pela profissão nasceu em seus anos na cadeia, aonde chegou a ter aulas de Direito. "Não é só um sonho. Eu vou ser advogado".
Saul Cardoso dos Santos, 33 anos
Em um dia do ano 2000, quando estava com os amigos Alexandre e Diogo na casa deste último, Saul experimentou crack pela primeira vez. "E a primeira vez a gente nunca esquece. O problema é que a primeira vez é também a última oportunidade de largar a droga. Na segunda vez, já era", relata. Um ano depois saiu de casa e foi morar na rua porque, segundo conta, viver com sua família passou a ser constrangedor. "Peguei um monte de coisas para trocar pela droga. Chegou um momento em que já não queriam me deixar sozinho em casa. Ficavam com medo e diziam: 'vamos sair e, enquanto estivermos fora, é melhor você buscar alguma coisa para fazer'. Era muito ruim pra mim e decidi sair".
Hoje, com 33 anos, vive nas ruas do centro e dorme em um hotel – "minha casa" – que pertencia ao programa De Braços Abertos, da Prefeitura. Por causa do programa também começou a trabalhar como varredor e a receber 130 reais por mês. "Consegui diminuir meu consumo por causa disso. A cabeça fica ocupada e, durante o tempo em que estaria usando droga, estava trabalhando", diz ele. "Além disso, trabalhar me permitia vislumbrar algo melhor para o futuro".
Saul nasceu no Rio de Janeiro e, quando seu pai morreu, veio para São Paulo com sua mãe, que tinha familiares na capital. Tinha então 7 anos. "Minha história é a mesma de muitos. É sempre a mesma, só muda o personagem". Hoje, mesmo longe de casa há anos, ainda mantém contato com sua mãe. "Ela sempre vem na rua me visitar. Mãe é mãe, né. Sempre fica com saudades".
Luciano Aparecido Raimundo, 37 anos
Na cracolândia, Luciano é conhecido por ser uma pessoa muito inteligente e trabalhadora. "Seu forte é culinária. Sabe cozinhar muito bem. Ele ainda vai longe", conta seu amigo Eduardo. Luciano hoje trabalha com computação pelo antigo programa De Braços Abertos e mostra seu crachá com orgulho para a reportagem. Também já fez três cursos no Senai.
Luciano não se lembra muito bem quando começou a usar crack e nem quando foi para a rua. Explica que voltar a estudar e trabalhar fez com que diminuísse o consumo. Na última quinta-feira se dividia entre escutar um rap na tenda da Prefeitura da rua Helvétia, conversar com a reportagem e embrenhar-se no "fluxo". Natural de Osasco, município da região metropolitana de São Paulo, diz esperar apenas uma coisa da sociedade: "A oportunidade de viver a vida". Ele ainda acrescenta: "Gosto de respeito e gostaria que as portas estivessem abertas para mim".
Andreia Garcia, 37 anos
Andreia começou a usar cocaína muito jovem, há 20 anos. Na casa de um amigo foi apresentada ao crack. No ano seguinte, em 1998, foi presa por assalto à mão armada e na cadeia ficou até 2004. Ao sair reconstituiu sua vida: deixou as drogas, fez uma faculdade de Administração, se casou, teve três filhos e virou gerente de uma grande loja de tintas de Jacareí (interior de SP). Sua vida deu uma nova guinada em 2014, quando descobriu as traições de seu marido. “Me separei e voltei a sair, a ir pras baladinhas... Até que dei um tiro”, conta ela sobre o dia em que voltou a usar cocaína, após 10 anos limpa de qualquer droga. Até que lhe ofereceram o crack dias depois. E ela não negou. “Fumei e no mesmo dia troquei tudo o que tinha por droga. Raspei todo o caixa”.
Nessa mesma época conheceu o marido Leandro Ferraz, que também é viciado em crack. “Ele me levou para a casa da família dele já me apresentando como namorada!”. O casal migrou há um mês para a capital paulista em busca de novas oportunidades de trabalho e de se livrar de uma dependência química que já tentaram inúmeras vezes superar. Em uma das vezes, seu marido Leandro estava internado se recuperando. “Então decidi parar também. Imagina ele fazendo todo aquele esforço e eu chego toda horrível para a visita? Que estímulo ele teria para continuar?", indaga. Andreia engravidou nessa mesma época e permaneceu livre das drogas. Mas assim que deu à luz, há dois anos, a Justiça entregou sua menina à sogra. “Então desabamos e voltamos pra rua de novo”, conta.
Seus outros três filhos – um menino e duas meninas – moram com o pai em Jacareí. "O garoto usa drogas e está envolvido com tráfico. Mas que moral eu tenho para ensinar o que é certo? Minhas filhas... Tenho vergonha de ver, não quero que me vejam neste estado". Ela diz sentir falta de clínicas de reabilitação nas quais possa se internar junto com seu marido, para que um dê apoio ao outro e os dois possam progredir juntos. Também acredita que a Prefeitura deveria oferecer "oficinas remuneradas" nas quais os usuários possam estudar e trabalhar. "As pessoas não arranjam emprego com esta aparência. Precisamos de ajuda para recomeçar". Com 37 anos, Andreia exibe um corpo franzino, um semblante pálido e um olhar fixo e assustado. Chora quase sempre que fuma pedra.
Leandro Ferraz, 29 anos
Leandro caminha a passos largos pela rua Helvétia. Olha ansioso para todos os lados, como se estivesse procurando ou esperando alguém. Veste bermuda, camiseta e tênis limpos e um boné para trás esconde os cabelos pretos raspados. Com 29 anos, está só há um mês na cracolândia com sua esposa Andreia Garcia. Mas já fuma crack desde sua adolescência. “Lembro até hoje como foi. Estava sentado num bloquinho e, na hora que dei um trago, veio um furacão. Uma brisa muito louca”, conta. Seu pai é alcoólatra, mas, ainda assim, não culpa problemas familiares pelo vício. “Tive uma criação da hora. Já usava outras coisas, só de curtição mesmo”.
Em uma dessas tentativas, ele chegou a ficar internado por sete meses em uma clínica particular que sua família pagava. Ao sair, arranjou um emprego como chapeiro em uma lanchonete, sua esposa engravidou e ambos conseguiram ficar longe das drogas. "Aluguei um lugar pra gente ficar e já tinha até conseguido a licença da Prefeitura para vender um espetinho na rua", conta.
Os últimos tempos ficaram marcados por brigas familiares e também por uma crescente desconfiança dos vizinhos de Jacareí, que arranjavam bicos pra ele e sua esposa. “Sabiam que íamos gastar tudo em drogas”, conta Leandro. "Mas se estou trabalhando e minha cabeça está ocupada, sem ver outras pessoas fumando, não fumo”. Há pouco mais de um mês estava em uma comunidade terapêutica e sua esposa em outra. Ele saiu, buscou Andreia e os dois vieram para São Paulo atrás de um novo recomeço. Na capital, trabalha no semáforo e garante que reserva seu dinheiro para primeiro pagar a comida e um hotel barato nos arredores da cracolândia. "O problema é que estou na rua e sempre vejo gente fumando...".
Marcos Costa, 46 anos
A primeira vez que Marcos chegou a São Paulo tinha apenas 22 anos. Recém-formado em contabilidade em sua cidade, Salvador (Bahia), pouco tempo depois abriu sua empresa. Ganhou dinheiro, teve filhos e expandiu seus negócios para a sua cidade natal. “Tinha tudo, viajava bastante...”. Seu mundo desabou anos depois – ele não lembra exatamente a data – quando sua filha foi estuprada. “Claro que me vinguei do cara que fez isso!”, exclama. Como o abusador vinha “de uma família grande”, Marcos decidiu fugir para que não devolvessem a vingança.
Logo começou a beber. Viajou para os Estados Unidos, gastou todo o seu dinheiro e, após voltar para São Paulo, acabou na rua. Da bebida ao crack foi um pulo. “Uso desde sempre”, conta Marcos, que tem 46 anos, o rosto enrugado, barba e cabelo curtos e grisalhos e uma estatura baixa. Um colchão dentro de uma barraca improvisada no centro da cidade, os cobertores com os quais fica meio escondido, seu RG, um anel no dedo indicador e um cachimbo remendado de crack são alguns dos poucos pertences que lhe restam. Sua família, com a qual já não tem contato, está espalhada por várias outras cidades.