A alegria insolente do paulistano saiu do controle
Milhares vão às ruas e ignoram regras da Prefeitura, que tentou limitar o público dos blocos
Os vagões do metrô de São Paulo ficaram abarrotados de noivas, abelhas, joaninhas, gregos, índios e melindrosas. Na Linha Amarela, o capeta se encontrava com o anjo, enquanto lá fora muita gente se desesperava no trânsito por não conseguir se locomover em vários pontos da cidade mal sinalizada. Nos blocos, o cortejo fluía perfeitamente. Às vezes uma sereia beijava um palhaço obstruindo a passagem. Findado o beijo, a multidão seguia em frente. Assim foi dada a largada do Carnaval de São Paulo no último final de semana.
Não faltaram fantasias de tigres, misses, Mario Bross, e tudo que a imaginação permitiu. Nem as altas temperaturas meteram medo nos foliões que estão se acostumando ao movimento de ocupar as ruas da cidade nesta época do ano. Pelo contrário. No domingo, enquanto o Instituto Nacional de Meteorologia apontava a marca do dia mais quente deste verão - os termômetros chegaram a 34,6 graus - o bloco Acadêmicos do Baixo Augusta arrastava 350.000 pessoas, segundo a secretaria de Cultura, pela rua que batiza o bloco. "Primeiramente a cidade é nossa", era o lema do bloco, um dos maiores da cidade, lembrando da onda de apropriação do espaço público.
Essa onda colaborou para que o público deste pré-carnaval em São Paulo superasse - e muito - a previsão da Prefeitura. Calculando que 250.000 pessoas passassem pelos cerca de 60 blocos da programação deste fim de semana, a administração municipal se surpreendeu ao se deparar com 750.000 foliões só no sábado. Até o fechamento desta reportagem, a Prefeitura ainda não havia divulgado o balanço dos dois dias. "A situação saiu um pouco do nosso controle por triplicar a quantidade de pessoas em relação ao previsto", afirmou Sérgio Avelleda, secretário de Transportes, nesta segunda-feira, ao jornal Bom Dia São Paulo, da TV Globo.
Tentando se preparar para o evento, foram publicadas há duas semanas no Diário Oficial algumas regras para a festa de rua poder acontecer. Foram proibidos os trajetos em ruas e avenidas pelos bairros de Pinheiros e da Vila Madalena por onde, tradicionalmente, blocos passavam até o ano passado. A festa deveria acabar até as 20h e os blocos deveriam ter "até 20.000 pessoas".
Vinte mil pessoas por bloco? O limite colocado na festa por meio de um decreto colocou em dúvida a realização dos cortejos já que o público não sabia como esse controle seria feito. No final, o paulistano não só foi desobediente como fez piada com a tentativa de controle. "Daqui pra lá ninguém mais passa", gritava um folião, no meio do Bloco Soviético no sábado, fazendo piada com o limite de público. "Já tem 20.000 pessoas neste bloco. Agora chega", repetia, entre homens fantasiados de bailarinas e um outro vestido de banana.
Um muro no carnaval
No sábado à tarde, um grupo de cinco meninas com chapéu de palha mexicano, tipo sombreiro, vestia um pano estampado com desenhos de tijolos e descia a rua Augusta, em direção ao centro de São Paulo. Estavam fantasiadas de "muro de Trump". Logo atrás, um homem segurava uma cerveja e vestia a máscara do presidente norte-americano, inspirador da discórdia com os imigrantes mexicanos. A poucos metros dali, um casal vestido de cinza da cabeça aos pés fazia as vezes do "muro de Doria", menção ao episódio em que o prefeito de São Paulo pintou de cinza muros antes grafitados pela cidade. Um par de foliões vestiu-se de gari, em mais uma homenagem ao prefeito tucano que já se notabilizou com seu uniforme de varredor de ruas.
Se os foliões vestidos de gari ficassem ali por algumas horas a mais, corriam o risco de encontrar com o criador da fantasia: João Doria vestiu-se, mais uma vez, de varredor de rua e foi fiscalizar a limpeza das vias pela cidade depois que a multidão passou por diversos bairros da cidade, principalmente da zona oeste e centro.
Com as ruas lotadas acima do previsto e o lixo espalhado, Doria admitiu falha nos cálculos. “Houve preparação inferior ao que deveria ter sido. Falhamos, deveríamos ter previsto mais público”, disse o prefeito, no domingo. Nesta segunda, as ruas da cidade brilhavam, refletindo o glitter grudado no asfalto e confetes esparramados por algumas ruas... vestígios de sujeira ou memórias de um final de semana de alegria? Depende do humor de quem interpreta.
Duas semanas antes, a Prefeitura anunciara a contratação de 14.000 diárias de banheiros químicos para atender os blocos. A quantidade de mijões nas ruas, no entanto, revelou que a iniciativa da Prefeitura foi pouca para tanta cerveja... Oito mil vendedores ambulantes estavam vendendo as latinhas e long necks por toda a cidade para dar conta dos foliões sedentos sob o forte calor. Não faltou catuaba, água, gelinho de vodka e drinques coloridos em bancas improvisadas. Os mais ousados cheiravam loló, apesar dos policiais espalhados pelas ruas e avenidas paulistanas. Era São Paulo tendo seus dias de circuito Barra-Ondina, de Salvador...
Talvez a tentativa de controle e a expectativa de público tenham sido a grande fantasia da Prefeitura neste Carnaval, que terá ao todo quase 400 blocos. Nos últimos anos, o paulistano redescobriu a cidade, num movimento que dificilmente tem volta e a festa pagã é um dos maiores símbolos de retomada do espaço público. E não vai ter muro nem decreto que controle a multidão descendo a rua Augusta cantando "Ê faraóóó" com uma garrafa de Catuaba na mão.
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