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Impeachment abre novo capítulo no conflito da área indígena mais desmatada do país

No Mato Grosso, os novos problemas de uma velha disputa que envolve os xavantes

Crianças indígenas do Vale do Araguaia, no Mato Grosso.
Crianças indígenas do Vale do Araguaia, no Mato Grosso.Rai Reis

A luta dos índios xavantes para reocupar uma faixa de terra no centro do Brasil, que completou meio século neste ano, ganhou um novo capítulo com o processo de impeachment que tirou Dilma Rousseff (PT) da Presidência.

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Localizada no divisor das águas das bacias do Araguaia e do Xingu, no nordeste do Mato Grosso, a terra indígena Marãiwatsédé — que significa “mata densa” no dialeto xavante, derivado do tronco linguístico jê —, foi homologada há quase duas décadas, mas só desde o ano passado está sob a posse efetiva dos indígenas. A troca de comando no país, com a assunção do vice-presidente Michel Temer (PMDB), reacendeu um dos mais antigos conflitos da Amazônia.

Posseiros, produtores rurais e políticos retirados da região por forças federais, entre 2012 e 2013, se articularam pela terceira vez em meados de maio para reinvadir a terra de 165 mil hectares — área equivalente a 165 mil campos de futebol. O ressentimento com o governo Dilma fez com que Alto Boa Vista, município de 6 mil habitantes encravado no epicentro do conflito, se transformasse na cidade mais antipetista do país nas eleições de 2014, votando em peso no candidato derrotado do PSDB, Aécio Neves (ele recebeu 83% dos votos no primeiro turno).

A ação que retirou os não indígenas do local acabou com o Posto da Mata, distrito de quase 5 mil habitantes que tinha casas, escola, igrejas, hotel, além de silo e posto de pesagem de grãos.

A região percorrida pela reportagem da Pública. Clique para ampliar o mapa ilustrado.
A região percorrida pela reportagem da Pública. Clique para ampliar o mapa ilustrado.Caco Bressane

Expulsos do local há 50 anos, os xavantes tentam manter o controle do território, que é cortado por duas estradas federais, no Vale do Araguaia, região ainda hoje conhecida como vale dos esquecidos — referência às áreas inacessíveis, agora cortadas por estradas de terra, mas ainda sem a presença do Estado. Uma das últimas fronteiras agrícolas do Mato Grosso, a área convive há décadas com o desmatamento ilegal, grilagem e venda irregular de lotes, crimes de pistolagem e seguidas violações aos direitos humanos.

A tentativa de reinvasão há três meses provocou a primeira crise do então governo interino de Michel Temer, constantemente pressionado pelos ruralistas do Congresso para promover mudanças nas regras de demarcação das terras indígenas. À época, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, recebeu em seu gabinete em Brasília representantes dos xavantes, que pediam ajuda federal. Agora efetivado no cargo, Temer ainda não definiu um nome para comandar a Fundação Nacional do Índio (Funai), cujas atividades estão praticamente paradas há meses.

O Ministério Público Federal, que investiga os crimes cometidos na terra indígena, pediu a prisão, em maio, de dois dos líderes da frustrada reocupação: o vereador Osvaldo Levino, conhecido como Nivaldo do Posto da Mata e o marido da vice-prefeita de Alto Boa Vista, Irene Maria Rocha Santos, Jovenil dos Santos, o Benil, detidos pela segunda vez.

Em 2014, eles já haviam sido presos após serem flagrados em interceptação telefônica tramando a reinvasão da terra. Num dos áudios obtidos pela Pública, um fazendeiro que tinha negócios no local comenta que “o Nilton Leitão [deputado federal] falou que é pro povo descer, e entrar pra dentro da área mesmo. Que é pra dar força. Para voltar com máquina, voltar com gado (…) e que ele [Nilson Leitão] pediu 30 escrituras para arrumar pra ele”. No caso de Benil, o áudio revela uma conversa dele com posseiros da região: “Nós tá grilando umas terra aqui” (sic), disse, referindo-se à Marãiwatsédé.

Nilson Leitão (PSDB-MT) foi quem presidiu a comissão na Câmara que propõe alterar a Constituição para transferir do Executivo para o Congresso a decisão final sobre a criação e a modificação de terras indígenas. Ele é investigado no Supremo Tribunal Federal por incitar a invasão e pela suspeita de negociar títulos de posse na reserva dos xavantes. Leitão nega os crimes e diz que a investigação contra ele é uma retaliação do PT e de indigenistas por ele apoiar a chamada PEC 215, ainda em trâmite na Câmara. Os ex-ocupantes da área alegam também perseguição política.

Em resposta ao plano de invasão mais recente, 130 xavantes acamparam por uma semana na encruzilhada, dentro da terra indígena, onde ficava o antigo Posto da Mata, que fora completamente destruído em uma nova desintrusão realizada em 2014 — a única construção que sobrou no distrito é uma imagem branca de um Jesus Cristo de 12 metros de altura que paira com os braços abertos em meio aos destroços.

Cacique Damião Paridzané.
Cacique Damião Paridzané.Rai Reis)

O cacique Damião Paridzané, líder político da etnia, avisou às autoridades em maio: “Xavante, quando perde a paciência, perde o juízo, vai entrar na cidade, vai acontecer sangramento, morte, ninguém sabe”.

Reconhecidos pelo vigor físico e pela fama de guerreiros, os xavantes deram o recado: se houvesse uma nova reinvasão, eles iriam para a guerra.

A reserva mais desmatada do país

A reserva Marãiwatsédé é um microcosmo da história de conflitos no campo no Brasil, com o choque entre o desenvolvimento do agronegócio — atividade extremamente importante para o PIB brasileiro — e o dilema preservacionista das florestas e o dos direitos dos povos indígenas. Além disso, escancara as dificuldades dos órgãos federais como Funai e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na resolução dos problemas de sua competência. O caso contrapõe conceitos antigos, mas, como se vê no nordeste do Mato Grosso, eles também se misturam.

A reportagem da Pública viajou 3.700 km pelo Vale do Araguaia durante as três primeiras semanas de julho. De Barra do Garças (511 km de Cuiabá), no sudeste do estado, até São Félix do Araguaia, no nordeste, são 648 km. Essa faixa de terra, ao norte do rio das Mortes, passando pela mítica serra do Roncador, é tradicionalmente ocupada pelos xavantes, índios típicos do centro-oeste, desde meados do século 19.

BR-158 é usada, sobretudo, pelos caminhões de gado e soja.
BR-158 é usada, sobretudo, pelos caminhões de gado e soja.Rai Reis

No Mato Grosso, onde está reunida, a população xavante tem atualmente quase 20 mil índios, segundo censo da Funai. Cerca de 900 deles vivem nas quatro aldeias de Marãiwatsédé, numa região que era de transição do cerrado para a floresta amazônica — quem conheceu a região nos anos 1960 fala com saudosismo do mato fechado que encobria até as estradas. A mata, contudo, desapareceu. Rodeada por fazendas com soja e gado, ela ganhou o título de terra indígena mais desmatada do Brasil, com cerca de 80% de seu território destruído.

“Os xavantes são como os hebreus, que levaram décadas para conquistar a Terra Prometida”, compara o missionário italiano Bartolomeo Giaccaria, 84 anos, que acompanha a saga dos indígenas na região desde 1954, ano em que se mudou para o Brasil. Salesiano, Giaccaria auxiliou os índios quando eles foram expulsos com a ajuda dos militares, em 1966, da região onde seria demarcada Marãiwatsédé, naquele tempo conhecida como Suiá-Missu, rio que é um dos afluentes do Xingu e corta a área. “Se não tivéssemos recebido os xavantes, a etnia tinha sido extinta”, afirma.

Cerca de 300 índios foram retirados à força, em aviões da Força Aérea Brasileira (FAB), para dar lugar à expansão da fazenda Suiá-Missu, que naqueles anos se transformaria no maior latifúndio do Brasil, com cerca de 800 mil hectares. Logo após a expulsão da área, um surto de gripe e sarampo matou 80 indígenas, cerca de 30% do grupo. Os xavantes da Suiá-Missu espalharam-se por outras terras ocupadas pela etnia, no sul do estado, a cerca de 400 km de onde estavam.

Nos anos de ditadura (1964-1985), o único apoio recebido pelos indígenas partiu dos religiosos — os xavantes são católicos, religião que começou a ser difundida entre eles ainda no final da década de 1940. Um dos principais aliados na Igreja, com protagonismo ainda hoje, é dom Pedro Casaldáliga, 88 anos, religioso espanhol que chegou à região em 1968. Conhecido como bispo dos pobres, Casaldáliga já denunciava a expulsão dos índios na primeira carta pastoral que escreveu, em 1971, logo quando foi ordenado bispo de São Félix do Araguaia. “É um momento ruim para os povos indígenas do Brasil, mas ao mesmo tempo eles estão empenhados na causa como nunca estiveram”, afirmou Pedro Casaldáliga à Pública.

“As mulheres querem mudar a cultura, querem mais liberdade”, diz a cacica Carolina.
“As mulheres querem mudar a cultura, querem mais liberdade”, diz a cacica Carolina.

Na desintrusão da terra indígena, no final de 2012, o bispo, que já era octogenário e padecia dos males do Parkinson, foi ameaçado de morte e precisou deixar São Félix do Araguaia por dois meses, refugiando-se na casa de um amigo em Goiânia. Não seria a primeira ameaça.

Do general Castello Branco (primeiro presidente-militar da ditadura) a Michel Temer, a luta dos xavantes para reocupar definitivamente a área já dura cinco décadas, atravessando as mudanças do sistema político no país e percorrendo todas as instâncias do Judiciário.

A BR-158, “um câncer que corta a terra”

Em meados de julho, ao receber a reportagem em Marãiwatsédé, o cacique Damião Paridzané lamentava o abandono decorrente da crise política. Além de não ter um presidente, a Funai estava praticamente estagnada por causa do ajuste fiscal. “A crise política contribui para agravar a nossa situação”, afirmou num início de tarde de intenso calor na A’öpa, uma das três aldeias criadas no ano passado.

A terra indígena, mesmo com todas as dificuldades, está se expandindo. A taxa de natalidade entre os xavantes é alta, o que contribuirá para o aumento da população local. Domingos Tsereõnorãté Hö’Awari, 42 anos, já é pai de 12 filhos. Ele planeja abrir a quinta aldeia da terra, ainda sem data prevista para a inauguração. A grande maioria da população de Marãiwatsédé nasceu no exílio, como ele, sendo filhos ou netos de indígenas originários da Suiá-Missu.

As quatro aldeias têm uma precariedade similar às favelas dos centros urbanos, mas foram construídas seguindo o costume da etnia, com as ocas numa posição espacial circular, conforme o quadrante solar. Como foram erguidas numa área ocupada anteriormente por fazendas, as antigas estruturas ainda estão por lá, como currais, enormes pastos cercados, arados e tratores enferrujados. Nas BRs 158 e 242, que dão acesso às aldeias, não há nenhuma placa que indique ser aquela uma terra indígena.

Na A’öpa, onde vive Damião, as ocas têm um sofisticado sistema de circulação de ar. Mesmo com um fogo aceso no centro da oca, a temperatura interna é muito mais agradável que do lado de fora. As aldeias ainda têm um amplo espaço central, onde os indígenas adultos e homens se reúnem duas vezes por dia no chamado warã, quando discutem questões cotidianas e filosóficas.

O homem xavante é considerado extremamente machista, mas, sinal dos novos tempos, em Marãiwatsédé despontou, nos anos recentes de reocupação, a liderança da cacica Carolina Rewaptun, 56 anos, que foi uma das três mulheres de Damião. Agora separada dele, que continua casado com duas irmãs de Carolina, a cacica — formada em pedagogia — tornou-se a chefe de uma das aldeias recém-construídas, batizada de Madzabzé. “O machismo do xavante é muito forte, talvez pior que o dos brancos. Aqui também as mulheres querem mudar a cultura, querem mais liberdade”, disse Carolina, que em julho estava internada numa casa de saúde indígena, em Barra do Garças, para tratar de uma úlcera.

O fogo, aspecto importante na cultura xavante, ironicamente se transformou em um problema. Usado para cercar a caça na mata, ele muitas vezes sai do controle e se espalha. Nos meses de seca, como em julho, o céu desaparece em algumas áreas do Mato Grosso por causa das queimadas — o estado registra o maior número de focos de incêndio no país.

Uma das aldeias dentro da reserva Marãiwatsédé. São quatro ao longo do território
Uma das aldeias dentro da reserva Marãiwatsédé. São quatro ao longo do territórioRai Reis

Em Marãiwatsédé, a fumaça está presente no ar desde as primeiras horas da manhã. A reportagem da Pública presenciou queimadas, dentro ou fora da área, em todos os dias das três semanas de viagem. Segundo o Ministério Público Federal, os incêndios são criminosos, em sua maior parte, e provocados pelos ex-ocupantes da terra como forma de descaracterizá-la. Os antigos moradores negam. O órgão, no entanto, ajuizou ações penais contra 42 fazendeiros cobrando uma reparação de pelo menos R$ 91,5 milhões pelo desmatamento da área.

No município de Ribeirão Cascalheira, de 10 mil habitantes, cerca de 80 km da reserva, está a unidade da Funai responsável pela administração de Marãiwatsédé. O órgão funciona numa casa de três cômodos e tem poucos funcionários. A crise está exposta nas paredes, com alertas para a redução de gastos com diárias e combustíveis. “Apesar dos problemas, os índios estão começando a se virar sozinhos”, afirma o responsável pela unidade, Alexandre Croner de Abreu, 52 anos, que trabalha na Funai desde o início da década de 1980. “O grande câncer da terra é a BR-158. Enquanto a estrada cortar a área indígena, ela sempre estará ameaçada”, ressalta.

Há tratativas para alterar o curso da estrada, usada sobretudo pelos caminhões de gado e soja, com os quais a reportagem se deparou em todas as andanças pela estrada, mas não há perspectiva de mudança. Para compensar os impactos, a Aprosoja Brasil (Associação dos Produtores de Soja do Brasil), num gesto inédito, deu recentemente aos indígenas uma contribuição financeira — o presidente da entidade, Marcos da Rosa, não revela o valor.

A Opan, ONG que trabalha com os xavantes por meio de recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) transferidos via Fundo Amazônia, atua no reflorestamento a partir do cultivo de plantas e árvores originárias da região. Ela ajuda a etnia a elaborar um plano de gestão territorial.

As hortas criadas nas aldeias de Marãiwatsédé foram afetadas pela severa seca deste ano, frustrando a expectativa de boa colheita. Os indígenas ainda dependem de alimentos da cesta básica como arroz e feijão.

Há dez anos, quando os xavantes passaram a ocupar apenas 10% da área total de Marãiwatsédé, a alimentação era um aspecto crítico. Cerca de 90 crianças estavam desnutridas — quatro morreram durante os dez meses de vigília dos índios, entre 2003 e 2004, quando acamparam na beira da BR-158 para pressionar a volta à terra. Atualmente dez crianças estão desnutridas, segundo o centro de saúde local. As árvores de jatobá, com seus frutos moles de grande poder nutritivo, se multiplicaram nas aldeias, tornando-se um dos principais alimentos das crianças no combate à desnutrição.

“Muita gente pensa que índio vai reconstruir a natureza. Mas como? É um equívoco pensar assim, não se recupera uma área dessas nem com 100, 200 ou 500 anos”, afirma Damião Paridzané. Aos 64 anos e adepto das calças e camisas jeans, o cacique é a principal liderança política de Marãiwatsédé — muitos o comparam, brincando, a Moisés, que liderou a libertação dos hebreus. Toda a sua atuação externa, contudo, é referendada pelos anciões, que são sempre consultados sobre qualquer assunto.

Nascido na região da Suiá-Missu e retirado da área quando criança, no exílio forçado imposto a partir de 1966, ele lidera a luta dos xavantes pela reconquista da área desde os anos 1980, quando os indígenas se mobilizaram pela primeira vez.

“Na verdade, estamos sozinhos, e cada vez mais ameaçados”, ressalta Damião, que critica o abandono da Funai e de ONGs como a Opan, que, segundo ele, poderiam fazer mais pelos índios. A Aliança da Terra, outra ONG parceira fundada pelo empresário americano John Carter, que morou na região, doou cerca de 800 cabeças de gado aos xavantes. Metade do rebanho, mantido nos currais das antigas fazendas com o auxílio da ONG, já morreu. O apoio da entidade também escasseou nos últimos meses.

A sobrevivência dos quase 900 índios de Marãiwatsédé depende quase exclusivamente de benefícios sociais do governo federal — a média do repasse mensal para os indígenas da terra é de R$ 93.839, a maior parte proveniente do Bolsa Família — e das assistências de órgãos federais como Funai e Fundação Nacional de Saúde (Funasa), que dispõe de um posto de saúde para atendimento médico e odontológico na aldeia principal.

A marcha para o oeste não terminou

Na BR-158, em direção ao norte do Mato Grosso, os imensos campos de soja ou milho predominam na paisagem. Os resquícios da mata do cerrado surgem nas reservas indígenas presentes na estrada — o estado tem 58 áreas regularizadas, segundo a Funai.

A marcha para o oeste brasileiro, iniciada nos primeiros anos do século passado, ainda não terminou no Mato Grosso, o maior exportador de grãos do país — a soja é o principal produto da balança de exportação do Brasil, respondendo em 2015 por mais de US$ 20 bilhões. A presença da soja, que começou a despontar no Vale do Araguaia no final dos anos 1970, mas que nunca superou a pecuária, cresceu consideravelmente nos últimos anos.

“Essa região ainda tem um potencial muito grande. Se dobrarmos a área de cultivo, podemos chegar a 3 milhões de hectares de soja. O Mato Grosso produz atualmente 9 milhões”, conta Marcos da Rosa, presidente da Aprosoja e produtor gaúcho instalado na região desde a década de 1980.

No segundo sábado de julho, em Água Boa, município que é reduto dos produtores no Vale do Araguaia, Rosa ajudou a organizar a ExpoVale, feira do agronegócio que recebeu o governador Pedro Taques (PSDB) e equipe, além de deputados estaduais, federais, um senador e produtores do estado. No evento acompanhado pela reportagem da Pública, Pedro Taques exaltou o perfil produtor da região. Apoiado pelo “rei da soja” Blairo Maggi, ministro da Agricultura do governo Temer, Taques afirmou que sua gestão, mesmo não sendo ele um produtor, foi a que mais deu espaço para o agronegócio (seu vice, Carlos Fávaro, é produtor de soja e acumulou também a Secretaria de Meio Ambiente).

O Mato Grosso registrou uma das mais altas taxas de desflorestamento em 2014 e 2015, um salto de 40%, superior à média da Amazônia Legal (16%). No ano passado, em Paris, na conferência da ONU que buscou um acordo para reduzir o aquecimento global, o estado apresentou um ambicioso plano para zerar o desmatamento ilegal até 2020.

Apesar de diretamente relacionado à ocupação da terra, o desmatamento não foi sequer mencionado pelo governador na feira em Água Boa. Diante de aproximadamente 200 produtores, todos favoráveis ao impeachment de Dilma Rousseff, Pedro Taques lembrou que ele foi o primeiro governador do país a defender o impedimento da petista, nos primeiros meses de 2015, quando o Tribunal de Contas da União analisava as chamadas pedaladas fiscais.

A Pública tentou falar seguidas vezes com Pedro Taques sobre o desmatamento no estado. Em Água Boa, após o evento, ele não quis dar entrevista. A reportagem ainda enviou perguntas por e-mail, mas o governador não respondeu.

O processo de ocupação da Suiá-Missu, a partir dos anos 1950, foi marcado por uma prática que se popularizou na Amazônia: a limpeza da área e a subsequente distribuição da terra a posseiros, a maioria gente pobre que vinha dos grotões do país. O colonizador paulista Ariosto da Riva (1915-1992), que abriu cidades e fazendas no norte e no nordeste do Mato Grosso removendo índios, fundou a fazenda Suiá-Missu. A prática fez escola. Durante a ditadura, a ocupação do solo amazônico se tornaria política de Estado.

“É a velha prática do campo no Brasil. Muitos fazendeiros ficaram ricos assim, ocupando terra pública”, conta Mario Bordignon, de 69 anos, missionário espanhol que faz parte do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e vive no Mato Grosso há mais de 40 anos. A história se repetiu, segundo ele, na ocupação do território de Marãiwatsédé a partir de 1992, quando o governo federal iniciava o processo de demarcação da terra.

Nos anos 1970, a fazenda Suiá-Missu foi vendida para o grupo italiano Liquifarm, que depois se tornaria a Agip. Durante a Eco-92, a conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento, no Rio de Janeiro, a Agip anunciou a doação de 165 mil hectares da área para os índios. Parecia o final de uma luta de quase 30 anos. Quando a Funai iniciou a pesquisa de campo para fazer um estudo antropológico da área, em 1992, ela começou a ser invadida.

O processo de ocupação foi liderado por grandes fazendeiros, como Sebastião Prado, Renato Teodoro e Gilberto Luiz de Resende, o Gilbertão, apontado como o responsável pela distribuição ilegal de terras no início dos anos 1990. Eles participaram da criação da Associação dos Produtores Rurais da Suiá-Missu (Aprosum), entidade que representou por décadas os moradores e produtores da região.

Prado e Teodoro chegaram a ser presos em operação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal em 2014 por impedir o cumprimento de uma ordem judicial, incitar a invasão da terra indígena e cometer crimes ambientais. “O grande conflito alimentado pelo grupo criminoso somente arrefeceu com a prisão preventiva de parte dos denunciados […] após operação que permitiu desvelar a existência de um grupo criminoso voltado para a invasão da terra indígena, através da incitação de massas populares à prática de diversos crimes”, afirmou denúncia apresentada à Justiça.

O advogado Luiz Alfredo Abreu, defensor da Aprosum, nega os crimes, alegando que os antigos defensores da área só queriam defender os seus direitos.

Na homologação, a terra já estava ocupada

Em 1998, quando o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) publicou decreto de homologação, a terra já estava toda ocupada. O Posto da Mata, no entroncamento das BRs 158 e 242, cujo histórico de pistolagem é antigo, já tinha comércios. A chegada de centenas de pequenos posseiros de outras áreas, segundo investigação do Ministério Público Federal, tratava-se, na verdade, “de manipulação para atender os grandes produtores rurais e políticos da região, que tinham fazendas dentro dos limites da Marãiwatsédé”.

Até o trágico fim do Posto da Mata, mais de 15 anos depois, o distrito se tornaria a principal fonte de arrecadação para a economia de Alto Boa Vista.

“Há várias vítimas nesse processo. Os índios são as principais, mas não são os únicos”, afirma o procurador da República Wilson Rocha Assis, que atua no caso de Marãiwatsédé desde 2013. Ele usa termos como “agrobanditismo” ao falar sobre a atuação dos fazendeiros que ocuparam a região a partir de 1992.

“Moro na região há 52 anos e só agora estou vendo índio naquela área. Não houve má-fé no processo de ocupação”, garante Filemon Gomes (PSD), 64 anos, um maranhense que foi criado em São Félix do Araguaia, cidade da qual foi prefeito — e é candidato novamente nas eleições deste ano. Um dos processados pelo desmatamento, Filemon tinha terra dentro da reserva. “Somos o centro do Brasil e o progresso ainda não chegou aqui”, comentou. Segundo ele, os índios impedem o desenvolvimento do nordeste do Mato Grosso, opinião compartilhada por muitos produtores ouvidos pela reportagem.

Filemon e dezenas de outras pessoas e famílias que deixaram a região da Suiá-Missu consideram a ação federal um “roubo”, além de uma grande mentira que, para eles, ganhou um contorno incontrolável.

Em Alto Boa Vista, os antigos ocupantes da área indígena ficaram assustados com as prisões recentes do vereador Osvaldo Levino e Jovenil dos Santos, o Benil, marido da vice-prefeita Irene Maria Rocha Santos. Detidos uma semana depois do afastamento de Dilma da Presidência, eles só seriam liberados no mês passado, após três meses de prisão. Os dois também tinham negócios na área.

“Todo mundo na cidade tem medo de falar sobre o caso”, explica a vice-prefeita sobre o silêncio de muitos dos antigos ocupantes da área. “Estávamos nesse movimento porque queríamos defender o que era nosso. É a nossa história.”

Irene, 50 anos, conta que ela e o marido chegaram ao Posto da Mata em 1992, quando a área começava a ser avaliada pela Funai. “As prisões deixaram uma sequela muito grande. Perdemos tudo, terra, gado, o hotel e o restaurante que ficava no Posto da Mata”, afirmou. Ela ressalta que as prisões em maio foram injustas. “Os dois acabaram respondendo por algo que todo o povo passou”, disse.

José Antônio da Silva, 42 anos, outro ex-ocupante da área indígena, administra um posto de combustíveis na entrada de Alto Boa Vista onde, segundo a investigação do Ministério Público Federal, ocorriam reuniões de preparação para reocupação de Marãiwatsédé. Nascido em Goiás, ele mostra documentos como um parecer assinado pelo general Bandeira de Mello, então presidente da Funai, em 1977, que atesta não haver aldeamento na região da Suiá-Missu. Ele quer levar o caso a uma corte internacional. “Não podemos perder 20 anos de nossas vidas”, conta inconformado.

Ele e vários outros moradores da região, contrários à permanência exclusiva dos indígenas na terra, espalham mentiras sobre o passado de Dilma Rousseff, como a atuação dela na guerrilha do Araguaia (que se passou não muito longe dali) e o refúgio encontrado na casa de Pedro Casaldáliga, que deu proteção aos opositores da ditadura — a guerrilheira Dilma, presa em São Paulo em 1970, nunca participou da guerrilha rural, muito menos teve ligação com o PCdoB, responsável pela ação no Araguaia.

Os desamparados da desintrusão

Em Alto Boa Vista, cidade que tem mais tratores do que ônibus, toda a elite local, formada por políticos, funcionários públicos, pequenos empresários e produtores, teve algum envolvimento direto nos desdobramentos recentes. A economia do município levou um tombo com o fim do Posto da Mata e a consequente saída dos produtores. Segundo Leuzipe Domingues Gonçalves (PMDB), prefeito da cidade, a arrecadação encolheu quase 80%.

O laticínio Piracanjuba, que também foi retirado do Posto da Mata, produzia uma média diária de 40 mil litros de leite. Antes de 2012, a prefeitura de Alto Boa Vista tinha em seus cadastros cerca de 200 mil cabeças de gabo, 90% dentro da terra indígena. Atualmente são pouco mais de 14 mil.

A operação que retirou da área os não indígenas foi feita sem nenhum planejamento do governo federal. Os moradores pobres, abandonados pelos grandes produtores que foram embora, terminaram desamparados.

“Primeiro foi feita a retirada, para só depois promover o assentamento. Realmente o governo errou”, admite Alexandre Croner de Abreu, da Funai.

Segundo o Incra, 271 famílias foram cadastradas no órgão para serem reassentadas, mas, como não havia uma área definida entre 2012 e 2013, muitas se mudaram por conta própria para municípios e povoados da região ou foram abrigadas em escolas de Alto Boa Vista. De acordo com a prefeitura local, o município passou a gastar mais com assistência social e atendimento psicológico.

Somente em 2014 decidiu-se por uma área rural em Alto Boa Vista para reassentar as famílias retiradas da terra indígena. Chamado de Casulo, o reassentamento é um exemplo do descaso do poder público com as famílias. O investimento do Incra foi de R$ 310.400, mas no local não há saneamento, água ou energia. O órgão informou em nota que no Casulo há 97 famílias assentadas, mas a reportagem contou apenas sete casas construídas — algumas pelo próprio morador, sem contar com a ajuda do Estado.

É o caso do agricultor Jerônimo Lourenço da Silva, 77 anos, que vive só na área desde que ela foi aberta, em 2014. “Fui tapeado por muito tempo. Os grandes produtores seguravam os pequenos para fazer a vontade deles”, lamenta o agricultor, que viveu por 12 anos na área indígena. Vários posseiros disseram à Justiça que eram ameaçados pelos latifundiários caso eles quisessem sair das terras dentro da Marãiwatsédé.

Jerônimo conta ter chegado ao Posto da Mata em 2000, quando, afirma, adquiriu um pequeno pedaço de terra, de 16 alqueires, em troca de seis vacas prenhes. “Fizeram muitas travessias com a gente no Posto da Mata. Nossa ignorância era grande. Eu mesmo tive oportunidade de sair para outro assentamento, mas os produtores não deixavam ninguém sair de lá. Parecia uma escravidão”, diz resignado.

Nos últimos dois anos, Jerônimo viveu num barraco de madeira, levantado por ele, com uma cama improvisada, fogão e objetos de seu trabalho na roça, cuidada por ele — há frutas, legumes e raízes como mandioca, além das galinhas que ficam soltas pelo terreno. Na segunda semana de julho, quando a reportagem da Pública o visitou, ele tinha acabado de se mudar para um barracão de tijolos, de dois ambientes (sem banheiro e cozinha), que ele construiu no lote com a ajuda de amigos. A luz vem de um gato improvisado, e a água, ainda inexistente no bairro, ele pega dos caminhões da prefeitura que visitam o bairro semanalmente.

Em nota, o Incra afirmou que há processos em tramitação para obter dois imóveis rurais no município de Vila Rica, ao norte de Alto Boa Vista, para reassentar as demais famílias cadastradas.

“Para você ver como é o povo: foi Fernando Henrique Cardoso quem homologou a área, mas todo mundo põe a culpa na Dilma”, diz Leuzipe, prefeito de Alto Boa Vista, ao comentar o ressentimento local contra a ex-presidente, a mandatária que menos terras indígenas homologou no país desde a redemocratização.

Leuzipe foi um dos produtores atraídos para a área, chegando à região em 1994, após ter comprado o direito de posse de três posseiros. “Eram uns 400 hectares de uma terra onde ficava a fazenda Suiá-Missu”, conta. Ao deixar o local, vendeu suas 429 cabeças de gado. “Infelizmente só sobrou uma multa”, diz sobre a cobrança do Ibama, no valor de R$ 828 mil, por ele ter desmatado a área.

Apesar do ressentimento com o PT, a ação de retirada, cumprida pelo governo Dilma, foi autorizada pelo STF após parecer da Procuradoria-Geral da República. Segundo o pedido, os xavantes, por mais de 20 anos, “resistiram pacificamente ao esbulho de suas terras, sempre confiantes no Judiciário”, enquanto os invasores “reagiram de forma violenta ao primeiro sinal de execução do acórdão que lhes foi desfavorável”.

O ex-ministro do STF Carlos Ayres Britto, que concedeu a liminar determinando a retirada dos não indígenas, afirmou que, por mais de 50 anos, os xavantes sofreram com “atos de reconhecida má-fé por parte dos invasores”.

O advogado Luiz Alfredo Abreu, que é irmão da senadora Kátia Abreu (PMDB-TO) e defende mais de 800 pessoas que moravam na área, todas ligadas à Aprosum, afirma que a decisão do Supremo foi uma “jogada do PT, que contou com a mão da Igreja”. “Esse Ayres Britto é um indigenista de carteirinha”, diz o advogado, que considera um absurdo o fato de os ex-ocupantes não terem sido indenizados ao sair da área.

Como a Justiça reconheceu que a ocupação da área foi de má-fé, nenhum ex-morador teve direito a reparação. “Havia todo tipo de gente no Posto da Mata, mas muitos eram bons”, ressalta o advogado. “As pessoas que saíram de lá tinham posse ou título da terra. Quer dizer que isso não vale nada? Cadê a segurança jurídica? Espero que possamos reverter isso no STF”, completa.

Coesão xavante pela reconquista da terra

A fama de guerreiro dos xavantes funcionou, desde os primeiros anos do século 20, para frear — ou ao menos retardar — a expansão das fazendas de criação no Centro-Oeste brasileiro.

Os irmãos Villas-Bôas, que desbravaram o Mato Grosso no início da década de 1940, relataram, nos diários reunidos no livro A marcha para o oeste, os constantes ataques dos xavantes à medida que a expedição avançava na mata. Darcy Ribeiro, que estudou os povos brasileiros e publicou um clássico da antropologia, Os índios e a civilização, conta que, por causa da agressividade, os xavantes ganharam o título de uma das tribos mais aguerridas do Brasil, provocando temor nas etnias vizinhas e nos fazendeiros.

A coesão interna do grupo também foi importante para a reconquista da terra. O álcool não é para os xavantes um problema grave — Damião diz se preocupar muito com a integridade dos índios, e isso envolve também possíveis ataques dos fazendeiros que saíram da área. Até o momento não há registros de assassinatos, mas eles se deslocam em grupos, principalmente quando precisam ir às cidades limítrofes da aldeia, como Alto Boa Vista, Bom Jesus do Araguaia e São Félix do Araguaia. Eles passaram a vigiar os limites da terra com mais frequência.

Em etnias vizinhas, como a dos carajás, na ilha do Bananal, Tocantins, o álcool foi responsável por deteriorar as condições de vida dos índios. Históricos inimigos dos xavantes, os carajás vivem do outro lado da margem do rio Araguaia, em frente ao município de São Félix do Araguaia, que frequentam para se divertir, jogar futebol e trabalhar como barqueiros, servindo turistas na região. A aldeia, contudo, vive um surto de suicídio desde 2012, com a morte de mais de 70 índios, segundo lideranças locais. Os carajás atribuem os suicídios a um feitiço que, segundo eles, foi feito nas aldeias da ilha por um espírito maligno que continua a rondar o local.

Na iminência de ser afastada da Presidência, em maio, Dilma Rousseff publicou decreto com a homologação de várias terras indígenas pelo Brasil. Uma delas é a de Pequizal do Naruvôtu, que se destina à posse dos índios naruvôtus, vizinha a Marãiwatsédé, entre os municípios produtores de Canarana e Gaúcha do Norte. Mais uma vez, a demarcação da reserva de 27.878 hectares — em análise desde a década de 1990 — causou um choque com o agronegócio. O pecuarista Marcos Jacinto, de 52 anos, é um dos 12 fazendeiros atingidos — que produziam gado e soja. Ele conta que a área de mais de 2 mil hectares foi comprada pelo pai, nos anos 1950, diretamente do governo do Mato Grosso.

“Os direitos ilimitados dos índios provocam uma insegurança jurídica. É muito fácil a União tomar as terras. A ausência de Estado torna o Vale do Araguaia ainda mais conflituoso”, afirma Jacinto. Os produtores afetados se preparam para uma batalha jurídica.

Os conflitos na região não se restringem aos indígenas, mas o fator comum, quase sempre, é a terra. Caboclos conhecidos como “retireiros”, que vivem nas terras da União nas margens do rio Araguaia, no nordeste do Mato Grosso, já entraram em choque com grileiros e posseiros de Luciara por causa da proposta de criar uma reserva de desenvolvimento sustentável na região. No auge do conflito, há três anos, os posseiros que queriam a área bloquearam o acesso ao município, que tem pouco mais de 2 mil habitantes.

O procurador da República Wilson Rocha Assis, que acompanha a situação de Marãiwatsédé desde o município de Barra do Garças, afirma que no momento o órgão investiga a possível ocorrência do crime de genocídio do Estado brasileiro contra os xavantes. Ele aguarda a conclusão de um laudo que está sendo elaborado por psicólogos e antropólogos para decidir pela ação, que seria inédita no país.

Em julho, após uma romaria em Ribeirão Cascalheira que homenageou os mártires que morreram pela defesa da terra no campo, os xavantes de Marãiwatsédé receberam na aldeia central um grupo de 36 visitantes — eram 24 do Paraná e 10 da Alemanha, que foram conhecer a reserva. A visita foi organizada por um padre, Marcondes Barbosa, que fez parte da prelazia de São Félix do Araguaia.

Em trajes tradicionais e com os corpos pintados de urucum, os índios comandaram uma missa em xavante, na igreja indígena da aldeia, e ganharam presentes como pão com mortadela, balas e camisas de futebol.

Após a cerimônia, todos se sentaram ao redor do cacique Damião, que passou a contar a história de luta dos xavantes para a retomada da terra. O seu resumo deixou os visitantes desanimados: “Estamos há 12 anos ocupando a área, mas os benefícios ainda são poucos. Estamos preocupados com o que pode acontecer. Índio, aqui, precisa tomar cuidado para não ter o pescoço cortado pelos fazendeiros”.

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